Manifestantes em Porto Príncipe e outras cidades repudiam a corrupção, a carestia e os apagões. (Reuters/Andres Martinez Casares)

Manifestantes voltaram às ruas de Porto Príncipe na sexta-feira (4) para exigir a renúncia do presidente haitiano Jovenel Moise, o fim da corrupção, carestia, apagões e falta de combustível, enquanto a polícia usava gás lacrimogêneo e canhões de água para impedir que marchassem até à sede da força de paz da ONU, perto do aeroporto.

Os protestos já duram um ano e o Haiti está virtualmente sem governo. Os indignados manifestantes se confrontaram com a polícia com pedras e coquetéis molotov. Na semana passada, um senador governista sacou da arma, na frente do parlamento, ameaçando manifestantes. A ONU tem reiterado que “todas as partes” mantenham a “contenção”.

Com o escândalo do desvio dos empréstimos da PetroCaribe atingindo boa parte da cúpula governista e antecessores e inflação de dois dígitos, as barricadas de pneus em chamas se tornaram parte do dia a dia no país inteiro. As escolas estão sem aula.

Nos protestos da semana passada, delegacias da polícia nacional foram depredadas e duas viaturas foram incendiadas. Fontes da polícia falam em cinco mortos “nas últimas semanas”

Os protestos começaram em julho do ano passado, após o FMI mandar subir o preço dos combustíveis, medida da qual o governo teve de recuar parcialmente, mas custou a cabeça do então primeiro-ministro Jack Guy Lafontant.

Em fevereiro de 2019, já com o primeiro-ministro Jean-Henry Céant, os protestos cresceram em tamanho e intensidade, culminando com uma paralisação de 11 dias no país, de 7 a 17 – conhecida popularmente como ‘Ayiti Lòk’ (Haiti está trancado, em tradução livre). Foi no dia 7 que os haitianos derrubaram o ditador Baby Doc em 1986 e ainda o dia da posse de Moise em 2017.

Quarenta e um manifestantes foram mortos na violenta repressão aos protestos. Em março, caiu o primeiro-ministro, e desde então Moise não conseguiu nomear nenhum dos que apontou para o cargo.

Depois de várias semanas com o país sem combustível – por falta de pagamento do governo aos fornecedores -, manifestação em honra de Jean-Jacques Dessalines, o líder negro da independência do Haiti no século XIX, por ocasião do aniversário de seu nascimento, 20 de setembro, transformou-se em enorme repúdio a Moise e sua gangue, que se estendeu às cidades de Cap Haitien, Saint Marc, Gonaives e Mirelabais.

O repúdio ficou tão grande que Moise já não conseguia andar pela cidade de limousine de tanto que era hostilizado e sumiu por quase uma semana. Reapareceu no dia 25, mas pela tevê, em discurso previamente gravado, transmitido por volta de 2 horas da manhã, em que anunciou que não renunciaria e tergiversou sobre um “diálogo nacional tranquilo” no lugar.

A resposta do povo do Haiti foi lançar no dia 30 – 28 anos depois do sangrento golpe de estado em 1991, apoiado pelos EUA, contra o primeiro presidente democraticamente eleito do país, Jean-Bertrand Aristide -, a “Operação Ache Jovenel”, como registrou o jornal Haiti Liberté.

DESCASO

O Haiti Liberté descreve como é a vida em um país sem combustível e sem um transporte coletivo decente, onde é comum depender de mototaxis. “Ao longo da estrada, os fornecedores do mercado negro vendem combustível de jarros de plástico transparente por 500 gourde (US $ 5,22) por galão. O gás foi contrabandeado em frente à vizinha República Dominicana ou desviado dos tanques dos postos fechados. Às vezes, o combustível inclui água colorida, muitos dizem”.

Quando uma estação é aberta, imediatamente se torna o centro de um engarrafamento gigante, com moto-táxis, calhambeques amassasdos, SUVs de luxo com janelas escuras amassados e vendedores ambulantes do mercado negro carregando recipientes de plástico amarelo de 12 galões, todos brigando por um lugar em uma disputa caótica e conflituosa com a bomba antes que o suprimento acabe”.

Como a eletricidade é gerada por termelétricas, outra consequência da falta de combustível são os apagões.

No acordo PetroCaribe com a Venezuela, o Haiti tinha de pagar em 90 dias por 60% do petróleo fornecido e o restante em 25 anos a um juro de 1% ao ano. O fundo constituído pela venda de parte do petróleo a empresas privadas permitiu acumular US$ 4 bilhões, que deveriam ser usados para saneamento básico, saúde, educação, agricultura e infraestrutura.

Ao invés disso, sucessivos governos dilapidaram o fundo e encheram os bolsos. Segundo investigação do Senado haitiano de 2017, a maior parte do dinheiro foi para empresas ligadas ao atual presidente e para o partido de Michel Martelly, antecessor dele na presidência.

Assim que o governo de Jovenel rompeu o acordo com a PetroCaribe em outubro de 2017, para atender às pressões de Washington contra a Venezuela, a crise no Haiti se tornou explosiva.

Martelly havia sido posto no poder por ingerência direta da então secretária de Estado, Hillary Clinton, que queria ver pelas costas o presidente René Preval, com o qual Aristide tinha alguma interlocução. A própria Hillary foi em 2010 a Porto Príncipe para tirá-lo do caminho, o que garantiu com a imposição de um conselho eleitoral sob encomenda e supervisão de Washington.

Ao final do mandato dele, foi providenciada a ‘vitória’ de Jovenel e a continuação da pilhagem, em uma eleição em que só votou 26% do eleitorado e na qual metade dos votos foram considerados ‘não confiáveis”. Tamanha foi a fraude, que o próprio Conselho Eleitoral apontou um presidente interino e mandou repetir a eleição presidencial em novembro de 2016. A participação caiu para 21% e Jovenel foi declarado ‘vencedor’.

“PÉROLA DO CARIBE”

Primeira república negra da história, o Haiti, devido ao bloqueio imposto pela França, EUA e Inglaterra, aceitou um acordo leonino de reconhecimento da independência, que abriu caminho para a miséria que hoje existe: teve de pagar aos donos de escravos, um crime contra a Humanidade ainda hoje sem reparação. Seu nome provém do termo indígena para “Terra das Altas Montanhas” e os franceses a tratavam por “Pérola do Caribe”.

Tinha sido a mais rica colônia francesa do Caribe, responsável por 40% do açúcar. Foi o Haiti revolucionário que ajudou o Libertador Simon Bolívar no momento mais difícil, em troca do compromisso de libertação dos escravos.

Independente desde 1804, só foi reconhecido diplomaticamente no governo de Abraham Lincoln. Em 1915, os marines ocuparam o Haiti para garantir o pagamento a bancos norte-americanos e lá ficaram por 19 anos.

O ditador Duvalier, e seu rebento Baby Doc, pilharam o país por três décadas, sob o guarda-chuva norte-americano – além dos tonton macoutes. Washington armou o golpe que depôs Aristide em 1991 e repetiu a dose em 2004, impedindo que a derrota da ditadura desse origem a um renascimento do país. Aristide foi sequestrado por marines e levado à força para a África.

O conflito que se instalou foi usado para trazer a “força de estabilização” internacional, que essencialmente fez abafar os protestos. Em 2010, o terremoto trouxe mais sofrimento a uma terra tão desafortunada, e reforçou a as tenebrosas transações da Fundação Clinton no Haiti. O resto ficou por conta de Martelly e de Moise.