Há 44 anos Orlando Letelier foi assassinado em Washington
Em 21 de setembro de 1976, Orlando Letelier, um ex-ministro do governo socialista de Salvador Allende, que vivia no exílio após o golpe apoiado pelos EUA que levou Augusto Pinochet ao poder no Chile, foi assassinado em Washington (EUA).
Por Alan McPherson (*)
O golpe de 1973 apoiado pelos EUA contra o presidente socialista democraticamente eleito do Chile, Salvador Allende, resultou na morte de Allende e na tortura e assassinato de milhares de democratas. Mas a brutalidade do regime, chefiado pelo general Augusto Pinochet, não parou com o golpe.
Em coordenação com outras ditaduras de direita na América do Sul, como Brasil e Argentina, Pinochet lançaria a Operação Condor, uma campanha hemisférica de violência política – apoiada pelos EUA – contra os opositores. As estimativas do número exato de mortes como resultado dessa operação variam amplamente, mas chegam a 60 mil.
Uma dessas mortes foi a de Orlando Letelier. Ele foi um embaixador do Chile nos EUA e ministro de Allende; foi preso no Chile após o golpe. Ele e sua família viviam no exílio nos EUA quando. em 21 de setembro de 1976, uma bomba escondida em seu carro explodiu enquanto ele dirigia pela Embassy Row de Washington, matando Letelier e sua colega Ronni Karpen Moffitt e ferindo seu marido Michael.
O historiador Alan McPherson conta a história do assassinato, sua preparação e consequências, em “Ghosts of Sheridan Circle: How a Washington Assassination Brought Pinochet’s Terror State to Justice” (“Fantasmas do círculo de Sheridan: como um assassinato em Washington levou o estado de terror de Pinochet à justiça”).
O texto a seguir foi adaptado do livro de Alan McPherson.
Muito antes de 21 de setembro de 1976, a esposa de Orlando Letelier, Isabel, havia passado por uma transformação política. Através de amigos da faculdade de direito, alguns da Venezuela durante a ditadura de 1948 a 1958, “recebi minha educação política”, lembrou Isabel Letelier recentemente. “Foi a primeira vez que realmente ouvi falar de ditadura e tortura, de empresas ficando com mais do que sua cota, de nacionalização de recursos naturais. O próprio Orlando falava do cobre pertencente aos chilenos…. Aquilo foi um despertar. ”
Ela disse a Orlando que se considerava da “esquerda cristã”, mas não conseguiu encontrar um partido para participar.
Letelier lembrou-se do segundo ano de universidade como seu próprio despertar. “A verdade é que, quando eu era jovem, a política pouco importava para mim, muito menos o socialismo.” À medida que lia mais e tinha longas discussões com Salvador Allende, então senador, e outros, ele desenvolveu uma consciência social e ingressou no Partido Socialista. No início do relacionamento, ele disse a Isabel que descobrir sobre a extração de cobre, o principal produto de exportação do Chile, por empresas estrangeiras. foi “um golpe no meu coração”.
Allende perdeu a eleição presidencial de 1958, mas continuou disputando na década de 1960. E a ligação de Letelier com o marxista foi um desastre pessoal. Ele não apenas foi demitido do departamento de cobre onde trabalhava, mas também lhe disseram: “Não perca tempo tentando encontrar um emprego neste governo. Você não vai encontrar um emprego de norte a sul. Você está sendo punido por ser um traidor de sua classe. Esta é uma lição que você deve aprender agora, quando é jovem.”
Os Leteliers eram engenhosos. Três meses depois de Letelier ter perdido o emprego, no final de 1959, ele e a família partiram para a Venezuela, onde seus amigos exilados estavam de volta, e no poder, e lhe ofereceram um cargo no Grupo Vollmer para fazer estudos de mercado. Logo depois, foi criado o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em Washington, e seu primeiro presidente foi o ex-professor de direito de Letelier, Felipe Herrera, que ofereceu um emprego a Orlando.
Às 3 da manhã de um dia no final de 1970, a família do Chile Chico, a casa dos Leteliers no vale de Shenandoah, na Virgínia (EUA), foi despertada pelos gritos de Isabel: “Allende venceu!”
Seu velho amigo chileno, o médico, senador e chefe da coalizão de esquerda chamada Unidade Popular, sendo claramente marxista, realizou a façanha de ganhar a presidência do Chile.
Letelier, seguindo os resultados de Washington, dirigiu-se imediatamente para o Vale do Shenandoah, buzinando ao se aproximar de casa. Isabel e ele se abraçaram.
“Decidi renunciar ao meu cargo no BID.”
Isabel o interrompeu: “-Vamos voltar para o Chile !?”
Não exatamente. Ao retornar a Washington, ele anunciou uma mudança de planos. “Que bom que você tem tudo pronto, mas a viagem será um pouco mais curta do que o planejado. Em vez de mudar de país, estamos mudando de estado: de Maryland a Washington! ”
Allende o havia nomeado, entre seus seguidores mais leais, como o novo embaixador do Chile nos EUA. Em fevereiro de 1971, os Leteliers se mudaram do subúrbio de Bethesda para a residência do embaixador no Distrito de Columbia, na Avenida Massachusetts, começando três anos tumultuados que refletiam o que acontecia no Chile.
A agenda marxista de Allende estava em rota de colisão com a de Washington. Sua própria vitória mostrou um caminho democrático para o socialismo que desafiou os interesses dos EUA. Uma vez no cargo, ele tornou-se amigo de Cuba e de outros regimes comunistas. Allende também planejava nacionalizar as minas de cobre, que eram de propriedade de empresas dos EUA.
Em retaliação, o governo Richard Nixon, por meio da CIA e de seu conselheiro de segurança nacional, Henry Kissinger, primeiro tentou impedir a confirmação de Allende como presidente; planejou o sequestro do comandante-chefe do exército chileno. Nixon também disse à CIA para “fazer a economia gritar”.
Quando a jogada falhou e Allende ascendeu ao Palácio La Moneda, a equipe de Nixon instalou o que Allende chamou de “bloqueio invisível” com a ajuda de empresas dos EUA. A campanha implacável de propaganda, pressão diplomática e sabotagem econômica, alimentada por dezenas de milhões de dólares em fundos da CIA, tinha o objetivo de virar os chilenos contra seu presidente e fomentar um golpe contra ele.
Letelier, como embaixador, aconselhou Allende a evitar confrontos com os EUA, que fornecia metade dos suprimentos industriais do Chile e quase todo o seu equipamento militar. Ele era o homem certo para o trabalho, sendo – como a CIA avaliou em 1971 – “um democrata razoável e maduro, com uma profunda crença de que Allende revolucionaria a estrutura do Chile sem interferir nas liberdades ou tradições fundamentais”.
Washington pareceu responder na mesma moeda. Nixon afirmou respeitar a autodeterminação do Chile. Kissinger classificou as reportagens da imprensa mostrando que a Casa Branca tentava confrontar o Chile, como “absurdas” . Um diplomata dos EUA lembrou que a maioria dos especialistas em América Latina “tinha opiniões muito boas sobre Letelier”. Mesmo Kissinger disse de Letelier: “Eu o conhecia. Gostava dele pessoalmente.”
Mas o governo Nixon sentiu uma pressão tremenda das empresas dos EUA. E também estava em pé de guerra contra o comunismo.
Primeiro, demorou vários meses para aceitar a nomeação de Letelier como embaixador. Em julho de 1971, o Chile nacionalizou três minas de cobre pertencentes a empresas dos EUA. E, em outubro, anunciou que não ofereceria nenhuma compensação por causa dos “lucros excessivos” ao longo dos anos.
A retaliação foi rápida. Em meados de agosto, o presidente do US Export-Import Bank, Henry Kearns, havia chamado Letelier ao seu escritório. Kearns sorria ao dar uma notícia assustadora: o banco não financiaria US $ 21 milhões em aviões da Boeing enquanto o Chile não compensasse as empresas de cobre. Em 1972, um acordo para reescalonar US $ 300 milhões em dívidas com bancos dos EUA, fracassou.
Para piorar as coisas, segredos sobre os esforços dos EUA para manter Allende longe da presidência vazaram, e a residência do embaixador e a chancelaria foram invadidas. Dois dos ladrões, que aparentemente procuravam documentos confidenciais, também estiveram envolvidos no caso Watergate. Letelier passou a guardar documentos em casa.
Em setembro de 1973, Orlando foi nomeado ministro da Defesa por Allende e os Leteliers voltaram ao Chile. Às 6h22 do dia 11 de setembro, o telefone dos Leteliers acordou Isabel. Ela atendeu e virou-se para Orlando: “É Salvador”. Seu marido havia adormecido apenas três horas antes, preocupado com os relatórios da inteligência sobre um golpe. Os avisos foram precisos.
“A Marinha se revoltou”, disse Allende. “Seis caminhões de tropas da marinha estão a caminho de Santiago e de Valparaíso. Os Carabineros são as únicas unidades que respondem. Os outros comandantes em chefe não atendem ao telefone. Pinochet não responde. Descubra o que você puder,” disse.
Um almirante do Ministério da Defesa tranquilizou Letelier: “É algum tipo de ataque, nada mais.” Allende estava cético. “Assuma o controle do Ministério da Defesa, se puder chegar lá.”
Isabel acompanhou o marido até o carro. Seu guarda-costas ligou dizendo que estava doente, mas o motorista estava esperando. Isabel segurou o homem pela lapela: “Cuida para que nada aconteça com ele”.
Às 7h30, Letelier chegou, desarmado, a seu ministério, em frente ao palácio presidencial. As tropas cercavam o prédio, e oficiais e alguns civis armados usavam lenços laranja, denotando conspiradores golpistas. Um guarda na porta não o deixou passar, mas uma voz de dentro gritou: “Deixe o ministro entrar.”
Ao entrar, Orlando sentiu o cano de um rifle cutucar suas costelas. Seu guarda-costas, supostamente doente, segurava o rifle.
Isabel só soube onde Orlando foi parar apenas algumas semanas depois do golpe. “Ilha Dawson, é um lugar terrível. Está muito frio, venta muito… e por causa da corrente fria, a Corrente de Humboldt… Ninguém mora lá.”
O campo de concentração onde Letelier e seus companheiros prisioneiros políticos foram mantidos era cercado por uma fileira dupla de arame farpado e por guardas armados com armas antiaéreas em torres de vigia. Letelier foi alojado em um cômodo de 2,5 x 5 metros com sete outros homens. Para aliviar o clima, eles o batizaram de “El Sheraton”.
A Comissão de Direitos Humanos da ONU classificou o tratamento dos prisioneiros de Dawson de “sadismo bárbaro”. O intermediário decisivo para libertar Letelier foi o governador de Caracas, Diego Arria. Ele era o braço direito do presidente venezuelano Carlos Andrés Pérez e amigo de longa data de Orlando.
A estatura de Arria havia subido ao ponto em que, em 1974, a revista “Time” o incluiu num seleto grupo de líderes mundiais. Mesmo assim, não havia precedentes para um governador assumir uma missão diplomática. Ele voou para Santiago em 10 de setembro de 1974 e se encontrou com Pinochet.
O venezuelano falou pela primeira vez na venda de petróleo a preços reduzidos de seu país para o Chile. “Isso depende de você libertar Orlando Letelier,” disse a Pinochet.
Um mês depois Letelier voou de Santiago para Caracas. Richard Barnet, do Institute for Policy Studies (um grupo de reflexão progressista de Washington), escreveu ao “Compañero Letelier”.
Atendendo a um telefonema de Saul Landau, ele lhe ofereceu uma bolsa de estudos “para trabalhar com o grupo de trabalho latino-americano e desenvolver ideias sobre segurança hemisférica”. Letelier aceitou.
Letelier informou a Barnet que se concentraria nos assuntos chilenos. E logo recuperou sua grande energia para trabalhar. Apesar dos capangas de Pinochet alertando-o para ficar quieto e lembrando-o de que o ditador poderia punir “não importa onde more”.
Em 21 de setembro de 1976 Orlando ligou para a esposa. “Isabel, tenho uma surpresa para você. Almoce comigo.”
“Hoje vai ser difícil. Eu tenho trabalho.”
“Mas você vai adorar essa surpresa”, insistiu Orlando. “Venha me buscar às 12h30 e deixe o trabalho à tarde.”
Isabel concordou. Afinal, seu marido era um encantador. O casal, pais de quatro adolescentes, havia se reunido recentemente após uma separação de meses provocada pela infidelidade de Orlando. “Uma segunda lua de mel”, disse Isabel.
Além disso, não havia tempo para discutir. Eram 9h do dia 21 de setembro de 1976, hora de Orlando ir trabalhar no Institute for Policy Studies em Washington.
Dois colegas de Orlando estavam com ele naquele dia. Michael e Ronni Moffitt, ambos com 25 anos e recém-casados. Tendo se tornado amigos de seu mentor e sua esposa, eles desfrutaram de um jantar tardio na casa dos Leteliers e depois voltaram para casa no carro de Orlando. Eles voltaram na manhã seguinte para buscá-lo.
Os Moffitt esperaram enquanto Letelier, sempre atrasado, tomava banho e se vestia, pulava o café da manhã e saía correndo porta afora. Isabel mal teve tempo de lhe dar um beijo de despedida. Michael se ofereceu para continuar dirigindo, mas Orlando assumiu o volante de seu Chevelle Malibu Classic 1975, um carro incomum para um homem tão sofisticado. Por galanteria, Michael abriu a porta do passageiro da frente para Ronni. E se jogou no banco de trás.
Era uma chuvosa e enevoada em Washington. Em menos de uma hora, Orlando e Ronni estariam mortos. Michael ficaria traumatizado. “Nunca soube qual foi a surpresa”, recordou Isabel, mais de quarenta anos depois.
(*) Alan McPherson é professor de história na Temple University.
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(BL)