Uma lenda da resistência à ocupação nazista, à reciclagem de colaboracionistas pelas tropas britânicas na Guerra Civil que se seguiu, à ditadura dos coronéis pró-americanos nos anos 1960 e à pilhagem da Troika/Berlim desta década, faleceu em Atenas aos 97 anos Manolis Glezos, um daqueles homens dos quais Bertold Brecht disse serem “imprescindíveis”.

Ele estava hospitalizado desde 18 de março devido a uma gastroenterite e uma infecção urinária e não resistiu a uma parada cardíaca, registrou a televisão estatal grega ERT. Já havia sido internado em novembro passado por problemas respiratórios.

Ao longo de sua vida, foi condenado 28 vezes por sua militância e ideias – três vezes à morte. Da II Guerra Mundial à ditadura dos coronéis, passando pela Guerra Civil Grega, permaneceu 11 anos e 4 meses no cárcere e 4 anos e 6 meses no exílio.

Várias vezes deputado, foi jornalista e escritor, autor de dois avantajados volumes sobre a resistência ao nazismo.

Tinha apenas 18 anos quando, junto com o amigo Apostolos Santas, arrancou da Acrópole a bandeira nazista em 31 de maio de 1941 e hasteou a bandeira grega, um feito que serviu de alento a todos os que resistiam à ocupação hitlerista na Europa inteira.

Aos 95 anos, apesar de um dia chuvoso de novembro de 2017, Glezos ainda se fazia presente à homenagem aos mortos da Revolta da Escola Politécnica, o levante de 1973 que abriu caminho para a derrocada da ditadura.

Poucos poderiam, como ele, ter como galardão, ser aos 90 anos preso em um protesto contra a ‘austeridade’, em meio ao gás lacrimogêneo, ao lado de outra lenda, o compositor Mikis Theodorakis, de Zorba o Grego.

A primeira vez em que foi condenado à morte foi por ter afanado o trapo com suástica. Como os nazistas não sabiam quem fora, não puderam fazer a execução.

Um ano mais tarde, em 1942, Glezos e Santas foram presos pelos nazistas e torturados, por outras atividades da resistência. Depois de um mês, foram soltos, mas os maus tratos fizeram Glezos pegar uma tuberculose.

Em 3 de março de 1948, em meio à Guerra Civil Grega, ele foi julgado por suas convicções políticas e condenado à morte pelo governo de direita, imposto sob as tropas britânicas após a derrota nazista.

Condenação transformada em prisão perpétua em 1950. Ainda encarcerado, Glezos foi eleito membro do parlamento grego em 1951, sob a legenda da Esquerda Democrática Unida (EDA).

Iniciou uma greve de fome que só encerrou quando conseguiu a libertação de sete deputados do partido que estavam presos ou exilados. Ele foi libertado da prisão em 16 de julho de 1954.

Quatro anos depois, foi novamente preso, sob o pretexto de “espionagem”, uma acusação comum contra militantes de esquerda durante a Guerra Fria, na Grécia saída da Guerra Civil.

Na verdade, um preso político, que foi libertado em 15 de dezembro de 1962, em razão de protestos na Grécia e de uma campanha de solidariedade no mundo inteiro, que incluiu a conquista do Prêmio Lenin da Paz.

Ainda preso, fora reeleito deputado pela EDA nas eleições de 1961. No golpe de Estado de 21 de abril de 1967, Glezos foi preso juntamente com o restante dos líderes políticos. Só foi libertado em 1971.

Após a restauração da democracia na Grécia em 1974, Glezos participou da reconstrução da EDA.

Nas eleições de outubro de 1981 e junho de 1985, ele foi eleito novamente deputado, agora pelo Pasok (socialistas gregos). Ainda sob essa legenda, foi eleito eurodeputado em 1984. Foi presidente da EDA de 1985 a 1989.

Já nonagenário, se tornou um gigante na luta contra a feroz austeridade imposta à Grécia, pela União Europeia, Banco Central Europeu (BCE) e o FMI – a tristemente famosa Troika -, para salvar bancos alemães e franceses que especularam com títulos da dívida grega.

A Grécia – denunciava – “é a cobaia das políticas exigidas por governos cujo único Deus é dinheiro”,

Em 2011, quando o amigo Santas faleceu, em entrevista à AFP Glezos lembrou como os dois tinham arriado a bandeira nazista na “madrugada de 30 para 31 de maio de 1941”.

“Escolhemos esse dia porque havíamos escutado na rádio que Adolf Hitler, num discurso que pronunciou no Reichstag, disse que com a ocupação da ilha de Creta toda a Europa estava libertada. O que quis dizer é que a Europa estava completamente sob o poder do fascismo. Então, nós decidimos mostrar-lhes que a luta começava agora, que a Europa não estava libertada como ele dizia”, relatou.

Nessa entrevista, ele lamentou que depois da guerra a Grécia “tenha conquistado a sua liberdade mas não a sua independência”.

Ao ser perguntado, em uma comparação histórica, que bandeira “teria que ser baixada hoje do mastro que ocupa”, a resposta de Glezos foi “a dos súditos e hasteada a bandeira da independência e da soberania nacional”.

Ele se lembrou de uma afirmação de Goebbels, o ministro da informação de Hitler, de que no ano 2000 se veria uma Europa dominada pela cultura alemã. “Só errou em 10 anos. Hoje a Alemanha domina política e economicamente toda a Europa”, alertou.

Em 2012, foi novamente eleito deputado grego, agora pela Coalizão de Esquerda Radical (Syriza, na sigla em grego) – então, Alex Tsipras ainda não mostrara sua verdadeira face.

Dois anos depois, com 430 mil votos, foi eleito para o parlamento europeu, onde se dedicou durante um ano a desancar os defensores da pilhagem da Grécia. Era o mais idoso eurodeputado, com 92 anos.

Chegou uma hora em que, cansado do parlatório e de tantos neoliberais afetados de Bruxelas, e com problemas cardíacos que dificultavam o deslocamento até lá, deixou de lado o mandato.

Jamais parou de denunciar a pilhagem emanada de Berlim. “Peço desculpas ao povo grego por ter participado nesta ilusão”, afirmou assim que se completou a traição de Tsipras ao plebiscito do ‘Não’ e posterior deriva neoliberal em 2015.

“A mudança de nome de ‘Troika’ para instituições, de memorando [de entendimento] para acordo e de credores para parceiros não altera a realidade anterior”, enfatizou.

Também manteve sua campanha para obrigar a Alemanha a pagar à Grécia indenização de guerra e a devolver o dinheiro roubado durante a ocupação.

Ficou famoso o episódio em que ele, então eurodeputado, fulminou o arrogante presidente do Parlamento Europeu, o alemão Martin Schulz, com duas frases, uma em latim e outra em grego antigo.

Disse ao ex-dono de livraria Martin Schulz, citando São Tomás de Aquino, temer “o homem de um só livro”.

E Euripedes, de As Suplicantes: “Antes de mais nada, estranho, você começou com um erro quando perguntou quem é o tirano daqui, esta cidade não é governada por um homem, é livre. Aqui governa o povo e os magistrados são escolhidos a cada ano, as mais altas honrarias não são designadas aos mais ricos, pois os mais pobres partilham delas”. É a frase do rei de Atenas, Teseu, ao arauto enviado pelo rei de Tebas, Creonte.

Uma aula sobre democracia e sobre a contribuição da Grécia à civilização, enquanto os alemães, como se nada devessem pela aventura nazista, viviam dando aulas de frugalidade às “cigarras” gregas, enquanto cuidavam de salvar seus bancos, cujos porões estavam entupidos de derivativos podres desovados por Wall Street, e mandavam a conta para gregos, espanhóis, italianos, portugueses e outros europeus.

Na homenagem prestada pelo portal Keep Talking Greece, é reproduzida uma declaração de Glezos, de 2014, que por si só é um autorretrato marcado pelo profundo compromisso com a luta e com a humanidade.

“Por que eu continuo? Por que estou fazendo isso quando tenho 92 anos e dois meses? Afinal, eu poderia estar sentado em um sofá de chinelos com os pés para cima. Então, por que eu faço isso? Você acha que o homem sentado à sua frente é Manolis, mas está errado. Eu não sou ele. E eu não sou ele porque não esqueci que toda vez que alguém estava prestes a ser executado [durante a II Guerra Mundial], ele dizia: ‘Não me esqueça. Quando você disser bom dia, pense em mim. Quando você levantar um copo, diga meu nome. E é isso que estou fazendo conversando com você, ou fazendo algo disso. O homem que você vê diante de você é todas essas pessoas. E tudo isso é sobre não esquecê-los”.

Como observaram os amigos gregos, “agora ele descansa em paz, tendo vivido uma vida plena”.