Governo cortou orçamento e sufocou programa de cisternas no Nordeste
Um dos mais importantes projetos sociais de combate à seca no Nordeste, o Programa Nacional de Apoio à Captação de Água de Chuva e outras Tecnologias Sociais (Programa Cisternas), é alvo de cortes no orçamento, provocando uma redução drástica no número de instalações no sertão nordestino.
Em 2019, o programa entregou 30,5 mil reservatórios, caindo drasticamente em 2020 – o menor desde a sua criação – com apenas 8.300 cisternas concluídas. Neste ano, a previsão é de que o número despenque mais ainda já que o Ministério da Cidadania prevê a construção de menos de 3 mil unidades – o menor número desde a inauguração do projeto, há 18 anos, quando foram lançadas 6.603 obras.
De janeiro a agosto, apenas 1.632 equipamentos foram entregues para o consumo de água potável, assim como outras 354 para produção de alimentos e 57 em escolas.
De acordo com a Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), há, porém, pelo menos 350 mil famílias que aguardam na fila de espera pelas cisternas para acessar água própria ao consumo. Os recursos para o programa vêm “literalmente secando” desde 2014.
Lançado em 2003, com 6.603 obras iniciais, o projeto se expandiu de forma rápida, evoluindo para 36 mil unidades em 2004, 71 em 2006, até atingir o patamar de 149 mil em 2014, o maior de sua história.
Em 2009, o Cisternas recebeu o Prêmio Sementes, da ONU, e, em 2017, o “Future Policy Award” (Política para o Futuro), da World Future Council, em cooperação com a Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação.
Segundo o Ministério da Cidadania, de janeiro a outubro de 2021, foram criados 7 mil reservatórios, e a expectativa é construir 3 mil unidades até o fim do ano. Esses números representam 64% a menos que os 8.310 de 2021, e 98% a menos que 2014.
Isso se justifica pelos cortes orçamentários que o projeto, braço do programa Alimentação e Nutrição, vem sofrendo. Até o momento, foram destinados R$ 728.739 em pagamentos para esse setor, cifra 97% menor que os R$ 30 milhões destinados no ano passado, que já havia sido o pior resultado da série histórica, e 99% inferior que em 2011, quando houve o recorde de R$ 642 milhões investidos.
Além das baixas orçamentárias e de valores e quantidades de equipamento, o projeto sofreu mudanças nos critérios de distribuição. Segundo os agentes sociais envolvidos no programa, as regras de deixaram de ser técnicas e passaram a ser quase políticas.
A revista Carta Capital cita que segundo esses agentes, quem definia as localidades contempladas com as cisternas eram os conselhos municipais, formados quase que exclusivamente por integrantes da sociedade civil. A equipe visitava as famílias e checava se elas tendiam aos critérios do programa antes de validar a entrega dos reservatórios. As pessoas também recebiam capacitação para manutenção dos equipamentos.
O governo então abandonou esse modelo e passou a condicionar a entrega das cisternas às emendas de relator, que sustentam o orçamento secreto. As emendas fazem parte do esquema montado pelo governo Bolsonaro para ‘comprar’ apoio parlamentar aos seus projetos no Congresso.
“Por emendas parlamentares, cada congressista vai aportar o recurso nos governos que lhe são favoráveis e depois vão querer certamente apontar dentro dos estados quais municípios e comunidades onde têm seus redutos para serem beneficiados”, denuncia Alexandre Pires, coordenador executivo da ASA.
Enquanto o atual governo faz farra com o dinheiro público e barganhas no Congresso, o povo enfrenta dificuldades tremendas para ter acesso à água. A situação ocorre justamente em um período de estiagem, o que aumenta o drama da população do semi árido nordestino. O agricultor Joel dos Santos, de 26 anos, por exemplo, sai de casa diariamente, com dois baldes em busca de água emprestada dos vizinhos.
“E agora está mais difícil, porque as barragens (represas) estão secando”, queixa-se. “Esse ano está ruim de chuva. A gente só planta no inverno, mas esse ano choveu muito pouco aqui”, completa. Joel vive na comunidade quilombola de Cajá dos Negros, em Batalha, um dos municípios mais afetados pela seca.
Ele explica ainda que 10 casas da comunidade – que tem 600 habitantes – aguardam as cisternas. “A última vez que vieram aqui tem 4 anos. Estamos todos esse tempo esperando”, diz. “A cada dois, três meses vem um carro pipa, que ajuda”. Segundo o agricultor, “já furaram uns quatro poços, mas só deu água salgada por enquanto”, explica.
Estoque de equipamentos
Denúncia da Folha de São Paulo na segunda-feira (6) dão conta de que o governo Bolsonaro mantém em estoque dezenas de equipamentos usados para amenizar os impactos provocados pela seca – cisternas, caixas-d’água, tratores, implementos agrícolas e tubos de irrigação – comprados com recursos de emendas parlamentares. A intenção é usar os equipamentos como moeda de troca no Congresso.
Os estoques são mantidos amontoados em depósitos da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) em Petrolina (PE), a 713 km do Recife, e já apresentam sinais de desgaste com o tempo. Alguns deles, como canos e reservatórios de água, estão lá há mais de um ano, segundo relato de moradores.
Eles acreditam que os produtos estejam sendo guardados para distribuição no ano eleitoral de 2022. O agricultor Pedro Ronilton Alencar de Sousa que passa com frequência pelo local, destaca a situação dos tubos armazenados no depósito. “Pela cor do material, isso aí já está exposto há mais de um ano. Há lugares como represas, açudes, se isso fosse para as comunidades, dava para fazer uma adutora para suprir um vilarejo ou as casas mais próximas”, avalia. “Tem muita coisa parada aí, muita coisa que era para estar nas comunidades, nas associações”, completa.
Em outro depósito da companhia na área conhecida como perímetro irrigado senador Nilo Coelho, visitado pela reportagem, há dezenas de caixas-d’água com capacidade para 5.000 litros. Destampadas, elas acumulam água, condição propícia para proliferação do mosquito Aedes aegypit, responsável pela transmissão de doenças como dengue, zika e chikungunya.
Em um terreno na frente do depósito, também estão armazenados equipamentos agrícolas adquiridos pela Codevasf. Vale destacar que a companhia é um dos eixos de distribuição de recursos das emendas usadas como moeda de troca política.
O maior número de bens, porém, mantidos pela Companhia está em um depósito que pertence ao órgão, dedicado a um projeto de irrigação chamado Pontal Sul, que fica a cerca de 70 quilômetros do centro de Petrolina.
Lideranças rurais da região denunciam que a saída de equipamentos dos depósitos ocorre de forma pontual. Os favorecidos são associações escolhidas pelos “padrinhos” das emendas parlamentares que financiaram a compra dos itens.
No local, o que mais chama a atenção são dezenas de caixas-d’água com capacidade para 5.000 litros que estão destampadas e acumulando água. Em um terreno na frente do depósito, também estão armazenados equipamentos agrícolas adquiridos pela Codevasf.
Segundo líderes rurais da região, a saída de equipamentos dos depósitos ocorre de forma pontual, com a distribuição feita para pessoas e associações escolhidas a dedo pelos congressistas “padrinhos” das emendas parlamentares que financiaram a compra dos bens.
Nos anos de 2019 e 2020, a superintendência regional da Codevasf gastou cerca de R$ 490 milhões oriundos de emendas parlamentares, apresentadas por 26 integrantes da bancada pernambucana, governistas e da oposição. Os dados constam de um relatório enviado pelos congressistas à Câmara Municipal, por solicitação do vereador Gilmar dos Santos Pereira (PT).
Porém quase 70% das verbas foram destinadas pelo líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE). Do total, pelo menos R$ 125 milhões foram endereçados pelo senador por meio das chamadas emendas do relator, de acordo com documentos do Ministério do Desenvolvimento Regional.