Former Soviet President Mikhail Gorbachev speaks during his open lecture ''Does a man change history, or history change a man?” i in Moscow, Russia, Saturday, March 30, 2013. (AP Photo/Alexander Zemlianichenko)

Em maio de 1992, Mikhail Gorbatchov partiu com a esposa, Raisa, para uma temporada de descanso. O local escolhido não podia ser mais emblemático: o rancho de férias de Ronald Reagan, na Califórnia, Estados Unidos.

 

Passados menos de cinco meses do sepultamento da União Soviética, Gorbatchov, seu principal “coveiro”, confraternizava e posava para fotos com o ex-presidente norte-americano – um dos precursores do neoliberalismo. Cúmplices na derrubada do bloco socialista ao longo da década de 1980, haviam virado amigos. Ao deixarem as tarefas presidenciais, compartilhavam a intimidade.

 

Nesta semana, em 2 de março, Gorbatchov completou 90 anos. Instalado num hospital de Moscou para se prevenir da pandemia de Covid-19, o homem-bomba que explodiu a União Soviética reuniu amigos numa videoconferência pelo aplicativo Zoom. De algum ponto de seu isolamento, também recebeu mensagens de congratulação de líderes ocidentais e até do presidente russo, Vladimir Putin.

 

Nada disso tornou menos melancólico o aniversário do último presidente soviético. Ao atingir a nona década de vida, Gorbatchov permanece longe do louvor popular. Com a debacle socialista, os povos da antiga União Soviética passaram a viver sob um capitalismo dos mais predatórios. Se há nostalgia hoje, não é de Gorbatchov – mas do período soviético. Há quem a chame de “ressovietização”.

 

É na Rússia, em especial, que esse saudosismo mais resiste à passagem do tempo. Conforme levantamento feito em 2016 pelo Fundo de Opinião Pública, 58% dos russos dizem que Gorbatchov “desempenhou um papel negativo na história” do país. Ao mesmo tempo, pesquisas recentes apontam que mais da metade da população lamenta a queda da União Soviética – o número chegou a 66% numa sondagem de 2018 do Instituto Levada-Center. Curiosamente, a faixa etária em que o sentimento pró-soviético mais cresce é entre jovens de 18 a 24 anos – nascidos, portanto, após a extinção do país.

 

Da perestroika ao fiasco

 

Sente-se cada vez mais falta de uma história encerrada em 25 de dezembro de 1991, em cadeia nacional de TV. Naquele Natal, diante das câmeras, Gorbatchov anunciou o fim da mais épica das revoluções proletárias. No alto do Kremlin, a histórica bandeira vermelha com a foice e o martelo, símbolo da Revolução de 1917, foi substituída pela velha e empoeirada bandeira czarista.

 

O governo Gorbatchov – que prometia resolver a crise econômica da União Soviética com a “liberalização” do regime e um “socialismo modernizado” – fora um fiasco. A inflação crescia, os impostos também, a pobreza idem. Em 1990, a União Soviética entrou em recessão pela primeira vez em décadas. Uma e outra geração passaram a viver privações sem precedentes em suas vidas.

 

Como líder político, Gorbatchov igualmente fracassou. Não por acaso, quando ele foi à TV para renunciar a seu cargo, na prática já não havia mais União Soviética. Ao eliminar os pilares da experiência socialista, o que ele conseguiu de realmente notório foi desmantelar uma potência. Conflitos civis e políticos pipocavam pelo território. Numa onda separatista, a maioria das repúblicas que formavam o Estado soviético se tornou independente, incluindo a maior delas, a Rússia.

 

A União Soviética produziu algumas das imagens icônicas do século 20. É o caso do hasteamento da bandeira nacional, o “Estandarte da Vitória”, no Palácio do Reichstag, em maio de 1945, na 2ª Guerra Mundial – a “Grande Guerra Patriótica”. Ou das cenas memoráveis da corrida espacial, como o lançamento do primeiro satélite artificial (o Sputnik 1) e do primeiro “cosmonauta” no espaço (Yuri Gagarin). Ou ainda o “choro” do mascote Misha na cerimônia de abertura da Olímpiada de Moscou, em 1980.

 

Mas, sob Gorbatchov, as imagens que vinham da União Soviética eram invariavelmente desoladoras: a explosão do reator da Usina Nuclear de Chernobyl; as filas nos mercados e nas lojas, com suas prateleiras vazias (que traduziam o colapso da perestroika); o malsucedido “golpe de agosto” de 1991 (com direito a um esdrúxulo sequestro do presidente); a chantagem que Boris Yeltsin impôs a Gorbatchov para proibir o Partido Comunista; e o próprio anúncio do fim da União Soviética numa noite de Natal.

 

Herói?

 

Gorbatchov foi louvado pelo Ocidente capitalista e pelas elites internacionais. Mesmo no cenário da Guerra Fria, o líder “comunista” soube conquistar a guarida da Casa Branca, ganhou frequentes elogios do João Paulo 2º e recebeu até um Nobel da Paz – tudo como outro dissidente, o polonês Lech Wałęsa. Em 2018, o cineasta alemão Werner Herzog lançou um documentário chapa-branca, Encontrando Gorbatchov, para retratar o último presidente soviético como herói.

 

A verdade é que esses heróis do sistema, Gorbatchov e Wałęsa – um ex-agente da KGB e um ex-informante –, foram, são e continuarão a ser renegados por seus compatriotas. Em 1996, ao testar sua popularidade nas eleições presidenciais da Rússia, Gorbatchov não passou de 0,52% dos votos válidos – um desempenho tão humilhante que decretou o fim de sua carreira política.

 

Ainda assim, numa entrevista ao jornal alemão Der Spiegel, em 2001, o “coveiro” soviético fugiu a qualquer autocrítica, a não ser para reforçar o anticomunismo. “Eu faria a perestroika exatamente da mesma forma hoje”, afirmou. “Entrei para o Partido Comunista aos 19 anos, quando ainda estava na escola. Meu pai tinha estado na frente de batalha, meu avô era um velho comunista – e eu deveria explodir aquilo tudo? Hoje sei que deveria ter explodido.”

 

Como Gorbatchov, Wałęsa, hoje com 77 anos, volta e meia é paparicado pela grande mídia ocidental, embora tenha sido uma peça inegavelmente menor no tabuleiro de xadrez da Guerra Fria. Seu epílogo não foi menos vexatório. Ele tentou voltar à presidência da Polônia em 2000, mas terminou a eleição com 1,01% dos votos. A derrota antecipou sua aposentadoria.

 

Um e outro traidores da causa socialista ainda vivem, dão entrevistas, são saudados no Ocidente – mas amargam, ambos, os dissabores de não terem o respaldo dos povos que eles afirmavam libertar. De Lênin, principal ideólogo e construtor da União Soviética, ainda há cerca de 5.500 estátuas espalhadas pela Rússia. E de Gorbatchov?