Secretário da cultura de Fortaleza (Secultfor) entre abril de 2018 e dezembro de 2020, o sociólogo Gilvan Paiva*, apresentou balanço da gestão à frente da pasta, destacando conquistas e processos em entrevista concedida via telefone ao jornalista João Gabriel Tréz, do Vida&Arte , no último sábado (2).

Leia a entrevista na íntegra:

Professor e sociólogo, Gilvan Paiva* foi titular da Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor) por quase três anos na gestão do ex-prefeito Roberto Cláudio (PDT). Assessor de Políticas Culturais da pasta desde janeiro de 2017, foi nomeado secretário em abril de 2018, entregando o cargo no último dia 31 de dezembro. Assumindo como titular, encontrou cenário de ânimos exaltados por conta de problemas como descontinuidades de ações e falhas de execução de editais. Agora, tendo entregue o cargo, avalia que a secretaria “voltou a ter uma imagem positiva na Cidade” – muito a partir, ressaltou, de parcerias com o prefeito, as outras secretarias, a equipe da pasta, a Secult-CE e os conselhos de Política Cultural e Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural.

O POVO – Pautas em aberto da Secultfor foram realinhadas nos últimos três anos: a retomada do Salão de Abril, a reabertura do Teatro São José, a entrega da Casa do Barão de Camocim como Centro Cultural, a regularização do edital de incentivo às artes, entre outras. Um cenário de ânimos mais exaltados, consequentemente, adquiriu mais tranquilidade. A quais aspectos de gestão você credita tais encaminhamentos?

Gilvan Paiva – A consolidação da Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza não é um processo simples. Pode-se dizer que acontece, de forma plena, na gestão do prefeito Roberto Cláudio. Criada ainda no mandato da ex-prefeita Luizianne (PT) (em 2008), sombreando com a antiga Fundação (de Cultura, Esporte e Turismo de Fortaleza, a Funcet), ela passa, a partir da institucionalização inicial, a cumprir várias tarefas que eram vinculadas a uma época que tinha um projeto de cultura mais claro, nos governos Lula e Dilma: a lógica de um sistema nacional de cultura reproduzido nos sistemas municipais, a existência de conselhos, a sociedade civil no debate, luta por mais investimentos. Essa conjunção de fatores, para se consolidar nos municípios, não foi simples ou automática. Acontece com muita luta. Em Fortaleza, diferentemente de muitas capitais, a cultura foi se consolidando. A gente consegue, no segundo mandato do prefeito Roberto Cláudio – e a partir das experiências positivas, negativas, dificuldades, entraves -, colher e consolidar ações culturais. Fomos, no primeiro momento, questionados acerca da nossa capacidade de entregas, de resolver problemas. Tem que fazer a discussão cultural, mas o proponente, o artista, quer ver resultados também. Entramos numa fase de entregas mais precisas, dentro de cronogramas.

OP – Como vocês conseguiram isso?

Gilvan – Consolidamos a capacidade de execução da Secretaria e a regularização do pagamento dos editais é um fato imprescindível para a estabilidade do processo. Passamos a ter a regularização do calendário cultural da Cidade – inclusive passando a inovar, como foi com o surgimento da Virada Cultural, que aglutinou as ações de forma mais coordenada e demonstrou a grande pujança do setor na Cidade. Com uma agenda cultural permanente, houve impacto na economia. Tendo artistas e grupos onde estão fluindo recursos e projetos, o setor se desenvolve mais rápido. Se tem uma marca da gestão que se consolida no 2º mandato do Roberto Cláudio é a linha da valorização do artista local. Outra questão importante foi a ampliação dos espaços culturais. No 2º mandato, há um coroamento dos investimentos do 1º: o Centro Cultural Belchior, o surgimento das bibliotecas Cristina Poeta, no Autran Nunes, e Herbênia Gurgel, no Conjunto Ceará, a restauração, entrega e retomada das atividades após seis anos do Teatro São José. Houve, ainda, a revitalização e, diria, a consolidação de um dos equipamentos mais extraordinários que conheci na vida de gestor público, a Vila das Artes. Quando a gente começou, ela tinha duas escolas, de dança e audiovisual, e uma série de inseguranças e questionamentos. Usamos uma métrica essencial na gestão pública, o diálogo, e fizemos um seminário que foi, talvez, o mais estratégico que a Vila teve em 10 ou 12 anos, onde projetamos anseios e propostas e a partir do qual a transformamos em um complexo de artes, com o Centro Cultural Casa do Barão de Camocim, revitalização do espaço, biblioteca. O surgimento de novos equipamentos se junta ao fortalecimento do calendário cultural, que se junta à valorização dos artistas, que se junta a um diálogo transparente e ao cumprimento de metas e entregas. É isso que faz a diferença. A Secretaria voltou a ter uma imagem positiva na Cidade e isso só foi possível graças ao trabalho coletivo da nossa equipe, às parcerias e conversas com outros setores e, claro, o apoio da gestão municipal.

OP – Qual das entregas ou processos você destacaria como a mais importante?

Gilvan – Correndo o risco de ser injusto com as demais, destacaria ações que são bem representativas do período em que a gente esteve na gestão. É inequívoco o grande salto que deu o Ciclo Carnavalesco em Fortaleza. Hoje a gente não tem um Carnaval qualquer, mas sim um que tem impacto na rede hoteleira, nos serviços. Conseguimos colocá-lo num outro patamar. Uma segunda ação se desdobra em duas. Nós, do segundo mandato, tivemos nossa cota de colaboração, mas a primeira gestão teve muito mais, em um dos marcos da gestão cultural da Cidade que é a retomada do Teatro São José, um dos equipamentos mais extraordinários e referenciais, cabeça de um sonhado sistema municipal de teatro. Precisa-se ainda desenhar plenamente o seu desenvolvimento, e certamente a próxima gestão fará isso, mas é um patrimônio de grande porte. Associo, ainda, a Vila das Artes. É um orgulho muito grande ter colaborado com melhorias na ordem de fortalecimento das ações, e considero que ela precisa ser ainda mais fortalecida pois tem uma das linhas mais importantes da cultura, a formação.

OP – E, no sentido oposto, que projeto gostaria de ter entregue ou fortalecido?

Gilvan – Executei parcialmente e não conseguimos ir adiante por razões diversas o Bom de Fortaleza, que acho que precisa ser retomado com outra cara. Ele tinha o pressuposto de ocupação dos espaços públicos com ações culturais para reconhecimento e pertencimento das comunidades em relação a seus espaços e artistas. Mas o projeto que mais me dá vontade de ter concluído – mas que fico muito feliz de ter iniciado e feito a fase “preparatória” – é o Centro de Memória Frei Tito de Alencar (cuja previsão de entrega era o 1º semestre de 2020). Muito mais do que um equipamento, é um centro de referência das lutas pelos direitos humanos e liberdades. Fizemos um processo, a pedido do prefeito e em concordância com a família do Frei Tito e com o desejo de movimentos sociais, um grupo de trabalho que produziu uma concepção que gerou a necessidade de tombamento da casa do Frei Tito como patrimônio do município e, ainda, a produção do projeto executivo que vai orientar o restauro. O processo já está em plenas condições de seguir para licitação e penso que assim que o ano iniciar mesmo o projeto estará na mesa da futura gestão para ser encapado. É um equipamento aguardado no Brasil afora, porque a experiência de um centro de referência como esse é aguardada por muitos setores. Não será um espaço somente numa lógica museológica, mas ser de fato um centro de referência da história e memória de todos aqueles que lutaram pela democracia na nossa cidade e a relação que isso tem com a perpetuação dos valores tão fundamentais de defesa dos direitos humanos, democracia e liberdade.

Secultfor executou pagamentos para mais de 96% dos contemplados pela Lei Aldir Blanc

A maior parte dos quase três anos de gestão de Gilvan Paiva à frente da Secretaria da Cultura de Fortaleza foi em um contexto conhecido. 2020, no entanto, trouxe desafios sem precedentes com a pandemia – que, por sua vez, acentuaram problemas anteriores, na visão do gestor. Mesmo destacando o caráter estratégico e pioneiro da Lei Aldir Blanc, voltada para mitigar impactos do cenário de covid-19 na cultura, Gilvan observa falhas no processo, como a demora da regulamentação federal e o tempo exíguo de execução da lei.

“A Lei Aldir Blanc foi um dos maiores desafios postos para os setores culturais do Brasil, que já tinham um contexto extremamente desfavorável. A pandemia agravou uma situação que a gente vem sofrendo desde 2016, um desmonte da estrutura de articulação nacional da cultura. Queria cruzar esses dois contextos porque fora deles não dá pra perceber o que foi o desafio de implantar a lei”, afirma o ex-secretário.

Frente aos desafios, Gilvan reforça a importância dos movimentos e articulações que reuniram “parlamentares, conselhos municipais e estaduais de cultura, secretarias municipais e estaduais, artistas, grupos”. “A Lei Aldir Blanc é, antes de qualquer coisa, produto dessa resistência e da necessidade de colocar a cultura na pauta do País”, avalia. Mesmo assim, o ex-gestor aponta “problemas” que, na visão dele, “agravaram o desafio da execução”.

“Esse é o maior volume em certo tempo que os setores culturais no Brasil receberam, foram R$ 3 bilhões. Essa dimensão de recursos nunca foi vista em um tempo tão curto de execução, o que produziu uma pressão muito grande nas gestões administrativas, nos aparatos institucionais”, pondera, acrescentando que a demora da regulamentação federal da lei – que ocorreu somente em setembro, para execução até 31 de dezembro – impactou no processo como um todo.

“Se a gente tivesse uma regulamentação mais rápida, os municípios e estados poderiam ter mergulhado mais rapidamente em resolver a lei, porque muitos aparatos institucionais não estavam preparados. A demora na regulamentação e a falta de clareza do que podia e não podia produziu muitas inseguranças. Cada município e cada estado ia fazendo sua leitura”, aponta.

Uma das maiores questões referentes à lei era, justamente, a data limite da execução. Na avaliação de Gilvan, o ideal era não ter havido um período específico tão curto. “Uma lei como essa deveria ter sido de vigência para toda a situação da pandemia. A lei colocou até 31 de dezembro, como se dissesse que nessa data ia se resolver o problema. Mas continua”, opina. Diversos movimentos foram construídos pela prorrogação do prazo.

Uma Medida Provisória (MP) editada pelo presidente Jair Bolsonaro no dia 29 de dezembro permitiu o pagamento de recursos já empenhados, mas, na avaliação de Gilvan, essa prorrogação não foi “efetiva” como o esperado. “A gente imaginava que viria uma MP que estabelecesse um novo cronograma, prorrogação mesmo”, divide.

“Era para ser pelo menos um ano, o que não colocaria a gente em dificuldades. Na reta final, muitos municípios programaram recursos, abriram editais e não estão conseguindo executar. Outros abriram editais e tiveram que interromper processos de execução”, afirma.

Fortaleza sofreu com algo do tipo. A Secultfor lançou três editais, um referente ao inciso II, de execução somente dos municípios, para subsídio de espaços culturais, e os dois referentes ao inciso III, executado por municípios e estados, que consistam em fomentos gerais à arte e cultura. Os recursos totais foram de R$ 17,82 milhões.

Para o edital do inciso II, a pasta previu 800 beneficiados, mas os selecionados não chegaram a 300. A partir daí, houve remanejamento de recursos. “O primeiro que fizemos foi abrir um novo edital, para tentar aumentar a quantidade de beneficiários no subsídio. Remanejamos, também, recursos para o fomento, para que os aprovados classificáveis pudessem ser contemplados”, contextualiza Gilvan.

No total, foram 1120 contemplados nos três editais iniciais. Destes, 1074 foram pagos, representando pouco mais de 96% do total. “Quem não foi pago foi porque desistiu ou porque não estava habilitado por ausência de alguma documentação que não foi possível sanar no tempo”, explica o ex-secretário.

O edital aberto após remanejamento de recursos – Chamada Complementar de Concessão de Subsídio a Manutenção de Espaços Artísticos e Culturais – não foi concluído porque, segundo Gilvan, a MP editada no fim do ano só permite dar sequência em processos cujos recursos já estivessem empenhados – ou seja, reservados para efetuar pagamento.

Dos recursos totais recebidos pelo município, foram executados R$ 13,194 milhões, o que equivale a 74%. Os 26% – ou R$ 4,626 milhões – restantes têm destino incerto. Em tese, devem ser devolvidos à União, mas ainda há espaço para desdobramentos em relação à prorrogação da execução da lei.

A torcida do ex-secretário é que a discussão em torno da MP no Legislativo seja tocada nos primeiros meses do ano e que os recursos possam ser executados, e não devolvidos. “A questão deve ser apreciada pela Câmara dos Deputados. Se ocorrer, a nova gestão vai com certeza dar sequência ao edital”, acredita.

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Fonte: Mais o povo

(BL)