A maior manifestação foi em Paris e os protestos se espalharam por Lyon, Bordéus, Lille, Marselha, Estrasburgo e outras

500 mil pessoas foram às ruas da França na “Marcha das Liberdades” neste sábado (28) para repudiar a “lei de segurança global” de Macron, que quer criminalizar a filmagem da violência policial com celulares e banalizar o reconhecimento facial de manifestantes por drones. Os manifestantes também exigiram a demissão do ministro do Interior, Gerard Darmanin, e do chefe de polícia de Paris, Didier Lallement.

A maior manifestação foi em Paris, com dezenas de milhares de pessoas na Praça da República, além de Lyon, Bordéus, Lille, Marselha, Estrasburgo e mais dezenas de cidades.

Partidos de oposição, sindicatos, entidades estudantis e de mulheres, coletes amarelos e jornalistas uniram forças.

O protesto ganhou força após a brutal agressão policial no sábado anterior, no centro de Paris, a um produtor musical negro, Michel Zecler, flagrada em vídeo, que indignou o mundo inteiro e desencadeou uma tempestade política na França.

Também repercutiu negativamente o violento desmantelamento de um acampamento pacífico de refugiados na capital francesa no meio da semana, no qual nem jornalistas ficaram a salvo. A violência policial contra os protestos dos coletes amarelos também ficou notória no ano passado.

O vídeo – enfatizou o líder do França Insubmissa e ex-candidato a presidente, Jean-Luc Mélenchon – é “uma prova terrível da natureza vital do direito de filmar a ação policial”.

Ele descreveu a polícia francesa como uma “milícia bárbara fora de controle”. No Twiter, outro parlamentar da FI, Manuel Bompard, zombou: “Então, Darmanin, ainda não queremos um vídeo?”

Do ponto de vista de Macron, o escândalo não poderia vir em hora pior, ao expor o absurdo da lei que criminaliza a filmagem de policiais violentos, sob a alegação de que os agentes receiam ser prejudicados física, ou psicologicamente, pela exposição nos vídeos. O vídeo do espancamento de Michel teve mais de sete milhões de visualizações.

A coordenação dos protestos reafirmou que deseja “a retirada dos artigos 21, 22 e 24” do projeto de lei e a “retirada do novo sistema nacional de manutenção da ordem” publicado em setembro, que durante as manifestações obriga a dispersão dos jornalistas quando as forças de segurança ordenarem, o que impede a cobertura do desenvolvimento dos eventos, com frequência turbulentos.

Ainda segundo as lideranças do ato, os artigos 21 e 22 devem ser retirados porque “organizam a vigilância em massa”, enquanto o artigo 24 criminaliza a divulgação de imagens de policiais cometendo atos de violação de direitos e violência.

“Será punido com um ano de prisão e multa de 45.000 euros ( cerca de R$ 288.000) o ato de difundir, por qualquer meio e em qualquer plataforma, e com o objetivo de atentar contra a sua integridade física ou psíquica, a imagem do rosto ou qualquer outro elemento de identificação de um agente da polícia nacional ou da gendarmaria nacional, exceto o seu número de identificação individual quando atua no âmbito de uma operação policial”, pretende o malsinado artigo.

Os sindicatos de jornalistas franceses e redações de 30 jornais se manifestaram contra a lei, que já passou em primeira leitura na Assembleia Nacional e terá de ir a votação em janeiro no Senado. A legislação também foi criticada por relatores de direitos da ONU e no Parlamento Europeu.

Em editorial, o principal jornal francês, Le Monde, advertiu sobre a “grave crise de comando” na polícia e assinalou que Darmanian, “escolhido pelo Presidente da República para apelar aos eleitores conservadores, ameaça arrastar o país para uma espiral de agitação terrivelmente perigosa, agravada pelas muitas tensões ligadas ao confinamento”.

Para o mais conservador Figaro, a lei de ‘segurança global’ não passa de uma “asneira político-institucional” que deixará marcas em Macron.

O jornalista David Dufresne, que fez a cobertura dos protestos dos coletes amarelos, recheada de fotos de feridos nas manifestações, assinalou que a mensagem que o governo quer passar é de “intimidação. “Trata-se de dizer aos jornalistas e cidadãos: Já chega’. É hipócrita dizer que você pode filmar, mas não transmitir”, acrescentou.

NEGRO ESPANCADO

Foi nesse quadro que se deu a agressão gratuita de policiais a Michel Z – como o produtor é conhecido nos circuitos de hip-hop -, ocorrida no sábado passado. Os vídeos que vieram a público são de um circuito interno de monitoramento e o tirado por vizinhos. O estúdio existe há 15 anos e Michel é bem conhecido na vizinhança.

Ao deixar à noite seu estúdio, ao perceber que estava sem máscara facial, como exigem as normas de confinamento em vigor, retornou, mas sem qualquer aviso policiais que estavam nas imediações entraram logo atrás dele e o atacaram.

Conforme relato de Michel ao portal Loopsider, “antes de ouvir qualquer coisa senti uma mão que me empurrou, ou me puxou, e depois me pediram para sair. Eu disse que estava no meu lugar… aconteceu tão depressa que me perguntei se eles eram realmente policiais”. Um dos agentes estava em roupa civil.

Após a invasão, os policiais começaram uma sessão de agressões, que durou vários minutos. Michel foi atingido por pontapés, socos e bastonadas, principalmente no rosto e na cabeça.

Além do espancamento, a verbalização do racismo: “crioulo sujo”. Sem que os policiais percebessem, tudo estava sendo gravado por um circuito interno de segurança.

A aparição de um grupo de músicos adolescentes que estavam no porão do estúdio de gravação interrompeu momentaneamente a brutalização do produtor. “Eram garotos de 16 anos”, disse Michel. “Perguntaram-me o que aconteceu, e eu disse que não fazia ideia. Estava coberto de sangue”.

Diante das inesperadas testemunhas, os agentes recuaram, para em seguida quebrarem uma janela e atirarem uma granada de gás lacrimogêneo, forçando as vítimas a saírem. “Disse a mim mesmo que era o meu último dia”, relembrou o produtor musical negro.

Conforme outro vídeo, filmado das sacadas por vizinhos, assim que Michel saiu, foi cercado pelos policiais, e espancado novamente por todos os lados.

Dois agentes entraram no prédio para acossar os garotos, que se haviam escondido, depois das granadas de gás lacrimogêneo. Começa o espancamento também dos garotos. A brutalidade só parou quando os policiais percebem que estão sendo filmados pelos vizinhos com celulares.

“Câmera, câmera”, ouviu um dos garotos. “Desde o momento em que ouvi isso, eles deixaram de nos bater”.

Michel ficou preso por 48 horas, acusado de ter “arrastado” os policiais para dentro do estúdio e de ter tentado subtrair suas armas. Falso fragrante só retirado quando o vídeo da câmera de vigilância do estúdio foi mostrado. “Sem este vídeo, eu estaria hoje na prisão”, reiterou Michel.

RACISMO

Como denunciou o jornalista David Perrotin, do Loopsider, apenas quando o advogado apresentou os vídeos é que Zecler foi libertado e inocentado da acusação feita pelos policiais agressores de “rebelião” e “violência contra uma pessoa que detém autoridade pública”. A promotoria instaurou uma investigação contra “violência cometida por detentores de autoridade pública” e “falsificação de BO”.

O atacante do PSG Mbappé se solidarizou com Michel, clamando que “basta de racismo” e que “minha França tem valores”. Ele denunciou a violência policial como “intolerável”. Outro craque da seleção francesas, Antoine Griezman, disse que “estão machucando a minha França”.

O primeiro-secretário do Partido Socialista, Olivier Faure, afirmou que “é hora de sair da negação” e “concordar em tratar o tema do racismo na polícia”. Ele também criticou a lei de segurança abrangente de Macron, que chamou de “liberticida”, lembrando que foi só com o vídeo que foi possível “evitar mentiras”.

“Nem uma palavra à vítima, nem uma palavra sobre a importância capital das imagens”, condenou a deputada do FI, Mathilde Panot, que chamou o ministro do interior de “vergonha da nossa República”.

O deputado verde David Cormand advertiu que “como demonstrado em muitos casos, o vídeo protege as vítimas da violência policial. Persistir em querer impedir o seu uso pelos cidadãos não pode ter outro significado senão o desejo de encobrir e, portanto, incentivar as atrocidades de certos policiais”.

Para contenção de danos, o ministro Darmanin se disse “a favor da demissão” dos espancadores flagrados e três policiais foram suspensos. Também foi anunciada uma investigação sobre a repressão aos refugiados. Na sexta-feira, após o escândalo, o presidente Emmanuel Macron, cujo governo está tentando impor a proibição de filmar policiais, cinicamente se disse “chocado” com os vídeos.