O papa, o secretário-geral da ONU e líderes mundiais se solidarizam com o povo francês | Foto: AFP

Três pessoas foram mortas a facadas e uma delas foi degolada em ataque realizado por um desconhecido em uma igreja católica em Nice, na Riviera francesa, nesta quinta-feira (29). Há feridos. Segundo testemunhas o ataque foi perpetrado aos gritos de “Allahu Akbar” [Alá é Grande]. Policiais abateram a tiros o assassino, que chegou a ser levado a um hospital.

Na véspera, o Relator da ONU para o Encontro das Civilizações, e ex-ministro das Relações Exteriores da Espanha, Miguel Ángel Moratinos, havia advertido que “insultar religiões e símbolos religiosos sagrados provocam ódio e extremismo violento, levando à polarização e fragmentação da sociedade”.

Declaração que se seguiu a protestos em muitos países islâmicos contra insultos ao profeta Maomé, cometidos sob o pretexto de ‘defesa da liberdade de expressão’. Moratinos defendera, ainda, “o respeito mútuo por todas as religiões e crenças”.

Nessa quinta-feira era comemorado um feriado muçulmano dedicado ao aniversário de Maomé.

O presidente Emmanuel Macron foi a Nice para expressar a solidariedade do povo francês às famílias atingidas. O Conselho de Defesa foi convocado e o alerta antiterrorismo foi elevado para nível máximo.

Segundo a imprensa local, as vítimas são um homem e uma mulher – esta, decapitada. Uma terceira vítima, conseguiu fugir da igreja e se esconder em um comércio ali perto, mas morreu em decorrência dos ferimentos.

Em Paris, os deputados na Assembleia Nacional observaram um minuto de silêncio em solidariedade com as vítimas. A prefeita da capital, Anne Hidalgo, disse que o povo de Nice “pode contar com o apoio da cidade de Paris e dos Parisienses”.

Em paralelo, um homem de origem afegã, que tem problemas mentais, foi detido na parte da manhã na cidade de Lyon, na França, com uma faca de 30 centímetros, enquanto tentava entrar em um bonde. Ele relatou aos policiais ter ouvido vozes ordenando matar pessoas.

Na Arábia Saudita, um homem que atacou com um objeto cortante um guarda de segurança do Consulado da França na cidade de Jeddah foi preso.

ATAQUE “ODIOSO E BRUTAL“

O secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, condenou o atentado em Nice e manifestou solidariedade à população e ao governo da França, declarou seu porta-voz, Stéphane Dujarric, em Nova York.

“Toda Europa está com vocês”, afirmou o presidente do Conselho europeu, Charles Michel. A presidente da Comissão Europeia, o órgão executivo da União Europeia, Ursula von der Leyen, rechaçou “o ataque odioso e brutal” e pediu unidade dos países do bloco contra “a barbárie e o fanatismo”.

O presidente russo Vladimir Putin enviou a Macron mensagem de condolências em que assinala “particular indignação particular pelo crime cínico e cruel cometido dentro das paredes de uma igreja”. “O conceito de moralidade humana é absolutamente estranho aos terroristas”, enfatizou o líder russo. “É óbvio que a luta contra o terrorismo internacional requer uma real união de esforços de toda a comunidade mundial”.

Anteriormente Moscou havia se solidarizado com os franceses sobre o caso do professor decapitado, mas alertado sobre os insultos a símbolos religiosos.

O governo turco – que tem estado em uma queda de braço com Paris ao condenar a islamofobia – rechaçou “energicamente” o crime.

“Aqueles que “organizaram um ataque tão brutal em um lugar sagrado de culto não respeitam os valores religiosos, humanitários e morais”, acrescentou o comunicado, que repudiou o “terrorismo e a violência”.

O Papa Francisco manifestou “solidariedade à comunidade católica de Nice, em luto pelo ataque que semeou morte em um lugar de oração e consolação”. “Rezo pelas vítimas, por suas famílias e pelo amado povo francês, para que possa reagir ao mal com o bem”, afirmou o sumo pontífice.

O Conselho Francês para a Fé Muçulmana condenou veementemente o ataque. “Em sinal de luto e solidariedade para com as vítimas e seus entes queridos, apelo a todos os muçulmanos na França para cancelar todas as celebrações do feriado de Mawlid [aniversário do profeta Maomé].”

A Universidade Al Azhar do Egito, o milenar centro de ensino dos muçulmanos sunitas, repudiou o incidente como um “ataque terrorista odioso” e alertou contra “discurso violento e de ódio” em uma referência à exibição de charges obscenas do profeta Maomé na França.

Em convocação ao “respeito mútuo”, o relator especial da ONU Moratinos havia registrado acompanhar “com grande preocupação as crescentes tensões e casos de intolerância desencadeados pela publicação de caricaturas satíricas do profeta Maomé, que os muçulmanos consideram um insulto e profundamente ofensivo”.

“As caricaturas incendiárias também provocaram atos de violência contra civis inocentes que foram atacados por sua religião, crença ou etnia”, lamentou.

Na França, o Islã é a segunda religião com maior número de fiéis. São seis milhões de imigrantes e seus filhos nascidos na França, que vivem na maior parte segregados nos subúrbios pobres de Paris e outras grandes cidades.

A existência dessa numerosa comunidade é uma consequência direta da dominação colonial francesa no norte da África e no Oriente Médio retalhado pelo acordo Sykes-Pikot, assim como da imposição de políticas neoliberais aos países então libertados.

O ministro das Relações Exteriores da Jordânia, Ayman Safadi, ressaltou a decisão de 2018 da Corte Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) de que insultar Maomé “não constitui liberdade de expressão”. Ao contrário do que alegou o presidente francês.

Declarações de Macron equiparando as charges obscenas do Charlie Hebdo aos “valores seculares e republicanos” e à “liberdade de expressão” têm causado enormes protestos nos países islâmicos e conclamações de boicote aos produtos franceses também se espalharam no norte da África e na Ásia.

Governos, entidades e partidos islâmicos no mundo inteiro denunciaram como uma nova onda de islamofobia a escalada de medidas contra o que Macron chama de ‘separatismo islâmico’.

Liberdade de expressão não implica, em absoluto, “em lançar insultos aos valores do Islã e às crenças dos muçulmanos”, observou o portal iraniano HispanTV. Um porta-voz de Ancara disse que essa política é “estranhamente familiar”, apontando que lembra a “demonização dos judeus europeus na década de 1920”.

Para o chefe da diplomacia iraniana, Mohammad Javad Zarif, insultar quase 2 bilhões de muçulmanos e suas crenças “pelos crimes abomináveis de tais extremistas é um abuso oportunista da liberdade de expressão e só alimenta o extremismo”.

Não se sabe exatamente porque os “valores franceses” citados por Macron os “valores franceses” estariam representados por um ‘Maomé’ nu, agachado em direção a Meca, e com uma estrela amarela acoplada ao ânus, com a legenda ‘nasce uma estrela’.

Menos ainda onde isso tem a ver com a “liberdade de expressão”.

É difícil crer que, em pleno século 21, charges ofensivas a outras minorias, como negros, judeus ou gays – ou seja, racistas e discriminatórias -, passariam ilesas na França como “liberdade de expressão”.

Ao que se soma que não há como esconder a própria responsabilidade da França para com o agravamento do extremismo sob tal fachada ‘islâmica’, como fizeram contra a Líbia e contra a Síria, só para citar os casos mais recentes.

E que consistiu em generalizar o ‘experimento’ do Islã made in USA – a transformação de uma seita extremista, o wahabismo, em uma arma para deter a revolução no Afeganistão na década de 1980.

Um extremismo cuja criatura, a Al Qaeda, depois sairia do controle do seu criador, a CIA, como voltou a acontecer com o Estado Islâmico.

Enquanto as cabeças degoladas eram de soldados iugoslavos e sírios, tudo parecia ir bem, sob o ângulo de Paris e Washington: dano colateral. Agora, como diria o líder negro Malcolm X, “as galinhas da CIA e da Otan voltaram para ciscar em casa”.