Agência de notícias Xinhua: "EUA politizam a taxa de câmbio e usam táticas de intimidação contra a China mais uma vez”. (Thomas Ruecker/Getty Images)

Quatro dias após o Departamento do Tesouro dos EUA classificar a China como “manipuladora da moeda”, relatório do FMI desmentiu a acusação, comprovando que a cotação do yuan esteve “amplamente em linha com os fundamentos a médio termo” e assinalando ainda que o superávit chinês em conta corrente em 2018 “caiu cerca de um ponto percentual”, para 0,4% do PIB, patamar que deverá se repetir este ano.

De acordo com o relatório do FMI, embora o yuan aja se depreciado contra o dólar relativamente rápido de meio de junho ao início de agosto no ano passado, a moeda chinesa esteve “amplamente estável” contra uma cesta de moedas. O FMI acrescentou que a autoridade monetária chinesa tomou medidas naquele período para conter a pressão pela depreciação, inclusive ajustes contracíclicos.

Para analistas chineses, o principal fator que impulsionou a recente depreciação foi uma “reação normal de mercado” em decorrência das preocupações dos investidores diante da ameaça de Washington de tarifa adicional de 10% sobre US$ 300 bilhões em importações chinesas a partir de 1º de setembro.

O próprio Trump havia se encarregado de ecoar a investida do Departamento do Tesouro, em tuitada que dizia “a China reduziu o preço de sua moeda perto de uma baixa histórica. Isso é chamado de manipulação de moeda. Federal Reserve, você está ouvindo?”

O secretário do Tesouro, Steve Mnuchin, também anunciou que iria ao FMI para “eliminar a vantagem competitiva injusta criada pelas últimas ações da China”,

“ATO IMPRUDENTE DE UNILATERALISMO”

A acusação de Washington foi repelida pela Rádio Internacional da China, que a considerou um “ato imprudente de unilateralismo” que “prejudicará seriamente” a ordem internacional.

A cobrança de Trump ao Fed, para que corte as minúsculas taxas de juros para reduzir o valor do dólar – além de insuflar a bolha de Wall Street -, tem como implicação, segundo analistas, a passagem da guerra comercial à guerra cambial.

A tuitada de Trump se seguiu após a cotação da moeda chinesa ultrapassar pela primeira vez a barreira dos 7 yuans por dólar em mais de uma década.

Como comentou com ironia um veterano analista próximo ao ministério do Comércio chinês, Mei Xinyu, “os EUA rotularam a China como manipuladora de moedas na segunda-feira porque o banco central da China não interveio e defendeu a moeda chinesa [dos especuladores que apostavam na desvalorização], que interessante!”

Só no período de 2015-2016, o BC chinês gastou US$ 1 trilhão em reservas cambiais, um valor astronômico, para manter o valor do yuan, quando a moeda estava sob pressão de depreciação, mas nem por isso na época Washington denunciou a ‘manipulação da moeda’, já que atendia a seus próprios interesses.

A declaração de Mnuchin foi rebatida no mesmo dia pelo governador do BC chinês, Yi Gang, que enfatizou o compromisso de Pequim de não recorrer à depreciação do yuan para fins competitivos, nem usar a moeda como uma ferramenta para lidar com distúrbios externos, como o conflito comercial. A China “vai se ater a um sistema de câmbio determinado pelo mercado”, asseverou Yi.

Outra refutação é do Bank for International Settlements (BIS), também conhecido como o BC dos BCs, segundo o qual do início de 2005 a junho de 2019, a taxa de câmbio efetiva nominal do yuan valorizou 38% e a taxa de câmbio real efetiva 47%, tornando-se a moeda mais forte entre as economias do G20 e uma das moedas de maior valorização do mundo.

‘MANIPULAÇÃO’ É BODE EXPIATÓRIO

A agência de notícias chinesa Xinhua denunciou que os EUA “sem rodeios politiza a questão da taxa de câmbio e descaradamente usa táticas de intimidação contra a China mais uma vez” e reiterou que Pequim tem trabalhado para manter a taxa de câmbio “basicamente estável, razoável e equilibrada” com referência a uma cesta de moedas.

Em entrevista ao Global Times, jornal da China em língua inglesa, Yu Yongding, membro sênior da Academia Chinesa de Ciências Sociais, repeliu a acusação de “manipulação”.

Como assinalou Yu, o Tesouro dos EUA considera “três critérios” na definição de manipulação da moeda: “intervenção persistente e unilateral nos mercados de câmbio, superávits comerciais bilaterais significativos com os EUA e superávits em conta corrente relevantes”.

A China – destacou – atende “apenas ao critério de superávit comercial e não se enquadra nos outros dois critérios”. Por suas próprias regras, os EUA não deveriam ter designado a China como ‘manipulador da moeda’.

O acadêmico apontou que a oscilação do yuan maior do que o usual em relação ao dólar americano “ocorreu apenas em um único dia” e no mundo inteiro “flutuação de tal magnitude não é nada incomum”.

Yu destacou que se mover um pouco a cotação da moeda equivaler à “manipulação”, então o mundo inteiro supostamente está “manipulando” moedas. O iene japonês e won sul-coreano, assinalou, passaram por flutuações “muito mais selvagens” do que as do yuan. “A lira turca uma vez desvalorizou cerca de 46% nos primeiros oito meses de 2018” e as moedas dos países latino-americanos “também passaram por grandes movimentos nos dois sentidos”, apontou.

O acadêmico chinês lembrou o gasto fabuloso das reservas da China para manter o valor do yuan entre 2015 e 2016. Agora – sublinhou Yu -, “quando o yuan está desvalorizado e o banco central da China não conseguiu intervir para sustentar a taxa de câmbio do yuan, o governo dos EUA acusou a China de ‘manipulação cambial’”.

‘CRESCENTE PESSIMISMO”

Para Yu, o que desencadeou a desvalorização foi o “crescente pessimismo do mercado”, o que considerou ser “provavelmente” resultado da ameaça de Trump de impor tarifas adicionais de 10% sobre as exportações chinesas no valor de US$ 300 bilhões.

O acadêmico não entrou nessas questões, mas no período também o FMI andou emitindo alertas sobre a desaceleração da economia no plano mundial, o próprio PIB dos EUA voltou para o patamar pífio de 2,1% anualizado no segundo trimestre, a economia da zona do euro e a da Grã-Bretanha vivem o espectro do divórcio em 31 de outubro, a economia da Alemanha murchou e o Deutsche Bank está com água pelo nariz, o impasse no estreito de Ormuz lança sombras sobre 20% do comércio mundial de petróleo e, para completar, “a síndrome da retirada” dos EUA irrompeu de novo com a saída do Tratado INF e o chefe do Pentágono falou em instalar mísseis nucleares intermediários apontados para a China. Assim, não há otimismo que aguente.

GUERRA CAMBIAL?

Para Yu, a designação da China como “manipulador de moeda” significa que “a guerra comercial se transformou em uma guerra cambial e se transformará em uma guerra financeira”. Choque entre as duas maiores economias do mundo que – apontou – “trará inevitavelmente um grande golpe à já frágil economia mundial”.

Yu ressaltou que a escalada em curso “não depende da questão da moeda, o que é meramente uma desculpa”.

O cientista tentou avaliar o que mais o regime Trump poderia cometer. “Quanto mais tarifas os EUA querem impor aos produtos chineses” após essa rotulagem de ‘manipulador da moeda’, questionou o cientista. Aumentar de 10% para 25% a última sobretaxa anunciada (a sobre US$ 300 bilhões em importações). Tarifas adicionais de 45% sobre todos os produtos chineses? Acabar com as relações comerciais China-EUA? “Impor restrições ao investimento chinês? Seja como for, os próximos movimentos que o governo dos EUA pode considerar vão além da esfera monetária”.

IRRACIONALIDADES DE TRUMP

“A experiência no último ano e meio ensinou à China que o governo Trump é capaz de fazer movimentos insensatos e irracionais. Portanto, tudo pode acontecer no futuro. Qual seria o pior cenário? O sequestro dos ativos em dólar da China. Certamente, ainda não chegou a esse ponto. Mas se os EUA forem fiéis ao seu rumo, teremos que nos preocupar com o pior acontecer”.

Para Yu, uma guerra financeira contra a China certamente prejudicaria a economia dos EUA e a credibilidade do dólar – mas, muitas das políticas em curso dos EUA provaram que Trump “não se importa se uma política prejudicará a economia americana ou não, desde que possa prejudicar os rivais”. Não podemos descartar nada, mas devemos tentar o melhor para manter os vários laços existentes com os EUA. A China não deve ter pressa para agir em retaliação.

“Imagine como seria agora se tivéssemos aberto totalmente a conta de capital?”, questionou o acadêmico, que assinalou que nas circunstâncias atuais é de extrema importância “confiar mais na demanda interna, elevar a reestruturação econômica interna e concentrar-se mais na segurança financeira”. “Temos que nos preparar para o pior, a fim de lutar pelo melhor” e trabalhar com afinco para “estabilizar o crescimento econômico”.

DO OUTRO LADO DO PACÍFICO

Do outro lado do Pacífico, o que não falta são indícios do desastre que Trump está incubando. Economistas do Morgan Stanley (um dos gigantes norte-americanos da especulação) advertiram que se o conflito EUA-China durar mais quatro a seis meses, a economia global estará em recessão em nove meses.

A demanda por Treasuries (títulos do governo norte-americano) disparou – a ‘fuga para a segurança’ -, com o rendimento dos papéis de 10 anos caindo para 1,735% – o maior declínio desde 2012. Mais alarmante, a diferença entre o rendimento dos títulos de três meses e de 10 anos sofreu uma inversão na segunda-feira (5), o que é considerado um marcador da chegada da recessão.

Porta-vozes dos bancos e monopólios também têm expressado temor que as táticas próprias do submundo imobiliário e dos cassinos, ambiente de onde Trump provém, que talvez ajudem a fechar ‘negócios’ nesse meio, não sejam aplicáveis à economia mundial.

À Bloomberg, um ex-integrante do Conselho de Assessores Econômicos de W. Bush disse que os EUA não entraram nessa guerra comercial especialmente com a China “com um plano claro sobre como sair dessa situação”. “O plano de saída parece ser: “Nós os ameaçaremos, eles se renderão e ficaremos muito felizes””, advertiu Philip Levy. “Até agora, ninguém falou ainda sobre o que deve ser feito caso não funcione”, concluiu.

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