O julgamento se tornou “um referendo sobre se a polícia é responsabilizada por matar negros na América”

Entrou pela segunda semana a parte decisiva do julgamento do ex-policial Derek Chauvin pelo assassinato, por asfixia com o joelho, do negro George Floyd, em Minneapolis, em maio do ano passado, crime abjeto que levou aos maiores protestos nos EUA contra o racismo desde Martin Luther King e estimulou a participação dos negros nas eleições, dando a vitória eleitoral a Joe Biden nos Estados decisivos.

Como já afirmou o advogado da família de Floyd, Ben Crump, o julgamento se tornou “um referendo sobre se a polícia é responsabilizada por matar negros na América em 2021”. “Esperamos que o (ex) oficial Chauvin seja condenado por torturar George Floyd até a morte”, enfatizou.

Uma questão que o julgamento já esclareceu é que o tempo da tortura de Floyd por Chauvin durou mais do que se pensava, e que inclusive se tornara um grito de guerra dos manifestantes no país inteiro e mundo afora: “8:46”. Multidões nas ruas faziam 8 minutos e 46 segundos de silenciosa homenagem.

Sabe-se agora, que mais vídeos foram examinados, que foram nove minutos e 29 segundos. Foi o tempo que Chauvin manteve o joelho sobre o pescoço de Floyd, que já estava no chão, dominado e algemado, depois de uma acusação de uso de uma ‘nota falsa de US$ 20.

À pífia argumentação em defesa de Chauvin, seu advogado, Eric Nelson, acaba de adicionar a de que as 27 vezes em que Floyd clamou que “não posso respirar” seriam nada menos que a prova de que estava “resistindo à prisão”.

Ainda segundo ele, Chauvin só fez “o que foi treinado” na polícia, e a morte de Floyd nada tem a ver com o longo estrangulamento com joelho, sendo mais um caso de “morte por overdose” de opioide.

O que só sublinha a precisão do diagnóstico do líder dos direitos civis Al Sharpton sobre o que está acontecendo no tribunal de Minnesota. “É Chauvin que está no banco dos réus, mas são os Estados Unidos que estão sendo julgados”.

Um após outro, os depoimentos de policiais ao tribunal vão derrubando as alegações de Chauvin e sua defesa de que só fizera “como aprendeu no treinamento” e que não houve “uso excessivo da força”.

A contenção de pescoço usada em George Floyd foi uma “violação absoluta” da política do departamento, disse o chefe de polícia de Minneapolis, Medaria Arradondo.

“Não faz parte do nosso treinamento e certamente não faz parte da nossa ética e dos nossos valores”, enfatizou Arradondo, acrescentando que o uso da força pelos oficiais deveria ter terminado “assim que o Sr. Floyd parasse de resistir”, e especialmente depois que ele “estava em perigo e verbalizou isso.”

Apesar de admitir como razoável que no início do encontro Chauvin e os outros policiais tentassem colocar Floyd “sob controle”, para o chefe de polícia isso só caberia “nos primeiros segundos”. Ele acrescentou que os policiais não diminuíram o arrocho a Floyd nem mesmo quando ele deixou de responder e não prestaram os primeiros socorros em tempo hábil, conforme determinam as normas do departamento.

“E é claro que quando o Sr. Floyd não está mais pronto para responder, e imóvel, continuar a aplicar esse nível de força a uma pessoa inclinada para fora e algemada nas costas, isso de forma alguma é apoiado pelas normas”, disse ele.

Um dia após a morte de Floyd, Arradondo demitiu Chauvin e os três outros policiais envolvidos no caso e chegou a dizer em um comunicado que “foi assassinato – não foi falta de treinamento”.

A inspetora do Departamento de Polícia de Minneapolis, Katie Blackwell, que anteriormente dirigia o programa de treinamento, negou ao tribunal que a restrição de pescoço usada contra Floyd fosse uma “técnica treinada”.

Embora o departamento ensine aos oficiais certos tipos de sustentação no pescoço, a posição ajoelhada empregada por Chauvin não está entre eles, acrescentou. “Não sei que tipo de posição improvisada é essa. Não é isso que treinamos”, disse Blackwell, que observou que conhece Chauvin há duas décadas.

O detetive de homicídios tenente Richard Zimmerman – que, com 35 anos de serviço, é o policial mais antigo no Departamento de Polícia de Minneapolis – testemunhou que nunca foi treinado para se ajoelhar no pescoço de um suspeito, e que tal ação era “totalmente desnecessária” no caso de Floyd.

“Segurá-lo no chão, de bruços e colocar o joelho no pescoço por tanto tempo é simplesmente desnecessário”, testemunhou Zimmerman. “Não vi razão para que os oficiais sentissem que estavam em perigo, se é o que sentiam. E é isso que eles deveriam ter sentido para poder usar esse tipo de força.”

“Se o seu joelho está no pescoço de uma pessoa, isso pode matá-la”, acrescentou o veterano agente da lei.

Um dos depoimentos mais emocionantes foi de Darnella Frazier, na época menor de idade, e que foi quem, ao filmar com o celular o martírio de Floyd, tornou possível que os Estados Unidos e o mundo soubessem do crime.

Ela disse ao tribunal que fica acordada à noite “se desculpando” com Floyd “por não ter salvado sua vida”.

“Quando eu olho para George Floyd, eu olho para meu pai”, disse Frazier. “Eu olho para meus irmãos. Eu olho para meus primos, meus tios, porque eles são todos negros. Eu tenho um pai negro. Eu tenho um irmão negro. Eu tenho amigos negros. E eu olho para isso, e vejo como poderia ter sido um deles.”

Também foi ouvida a bombeira de Minneapolis, Genevieve Hansen, que implorou repetidamente aos policiais para verificarem o pulso dele enquanto Floyd agonizava. Em uma gravação da ligação de Hansen para o 911 [telefone de emergência nos EUA], mostrada ao tribunal, ouve-se ela dizer a um atendente que “a polícia matou” Floyd.

Em seu depoimento, ela afirmou que teria corrido para administrar os primeiros socorros salva-vidas a Floyd, mas “os policiais não me deixaram entrar no local”.

Foi apresentada ainda ao tribunal a gravação da ligação de outra testemunha ocular para o 911, Donald Williams, em que este diz ao atendente que o policial Chauvin “praticamente matou esse cara que não resistia à prisão”.

Quando o advogado de Chauvin – que tentou retratar Williams como “irado” – perguntou por que ele havia ligado para o 911, Williams respondeu: “Porque acredito que testemunhei um assassinato.”

Williams, que treinou e competiu em artes marciais mistas profissionais, também apresentou uma análise de especialista condenatória do “choque de sangue” – que causa inconsciência ao privar o cérebro de sangue – que Chauvin aplicou no pescoço de Floyd.

“O joelho estava na diagonal da garganta”, testemunhou Williams. “O oficial em cima estava se mexendo para realmente conseguir o estrangulamento final enquanto estava por cima, o estrangulamento mortal.”

Foram exibidas as cenas dentro da loja Cup Foods, em Floyd aparece interagindo inofensivamente com clientes e funcionários. Christopher Martin, o caixa de 19 anos da loja disse que sentia “descrença e culpa”, porque se simplesmente não tivesse aceitado a nota, tudo poderia ter sido evitado. Ele relatou ainda que Floyd era “muito amigável” e que considerou aceitar a nota falsa de US$ 20 e cobrá-la em sua conta.

Na quinta-feira, Courteney Ross, namorada de Floyd há quase três anos, desatou a chorar ao dizer ao tribunal que ele era um parceiro amoroso, um pai dedicado e tinha um amor tremendo pela mãe. Ross também testemunhou sobre a luta compartilhada do casal contra o vício em opioide – fato que, para os promotores, ao estabelecer que Floyd tinha uma alta tolerância ao fentanil e metanfetamina, ajuda a refutar as alegações da defesa de que ele morreu de overdose. “Nossa história, é uma história clássica de quantas pessoas se viciam em opioides”, disse Ross. “Nós dois lutamos contra a dor crônica. A minha estava no meu pescoço e a dele nas costas.”

Blackwell

Ao júri, o promotor Jerry Blackwell relatou o crime: “Vocês poderão ouvir o Sr. Floyd dizendo: ‘Por favor, não consigo respirar. Por favor, cara. Por favor. ‘ Você verá que como o Sr. Floyd está algemado lá no chão, ele está verbalizando 27 vezes … ‘Eu não consigo respirar. Por favor, eu não consigo respirar.’ “

“Vocês verão que o Sr. Chauvin está ajoelhado no pescoço e nas costas do Sr. Floyd”, continuou Blackwell. “Vocês vão ouvir o Sr. Floyd chorando. Vocês o ouvem em algum momento clamar por sua mãe … Vocês vão ouvi-lo dizer: ‘Diga aos meus filhos que eu amo eles.’ Vocês vão ouvi-lo dizer … ‘provavelmente vou morrer assim … Eles vão me matar ..’”

“Enquanto ele clama, o Sr. Chauvin nunca se move”, disse Blackwell, “o joelho permanece em seu pescoço”. “Você ouvirão suas palavras finais, sua voz ficar mais pesada. As palavras dele ficando mais distantes. A respiração cada vez mais superficial e, finalmente, para, quando ele pronuncia suas últimas palavras, ‘Não consigo respirar’.”

O julgamento está seguindo e deve ir até maio, sob as vistas da população norte-americana e dos povos do mundo inteiro. Na semana passada, uma ativista do movimento Black Lives Matter, a modelo e blogueira Maya Echols, postou nas redes sociais que “o inferno vai explodir se o ex-policial Derek Chauvin for absolvido do assassinato de George Floyd”. “Não se surpreenda quando os edifícios estiverem em chamas. Apenas dizendo”.

Posteriormente, sob a torrente de condenações de trumpistas e conservadores em geral, Maya retirou a postagem sem um único comentário. Como diz o dito popular, quem avisa amigo é. Nos Estados Unidos, é muito raro condenar um policial por matar um negro desarmado. O que não impede a Casa Branca, todos os anos, de fazer preleções sobre “direitos humanos” a todos os demais povos do planeta, anualmente.