Flávio Dino e Bolsonaro – caminhos diferentes para o Brasil
Por José Carlos Ruy*
Em seu discurso perante quase duzentos chefes de Estado, chanceleres e representantes nacionais na Assembleia da ONU, Bolsonaro foi o falastrão costumeiro. Faltou com a verdade em assuntos como as queimadas da Amazônia, o papel dos médicos cubanos no Brasil, o desempenho da economia brasileira, a defesa da soberania de nosso país.
Talvez Bolsonaro só tenha sido sincero quando falou das privatizações que seu governo pretende promover, ou somente nos momentos em que se referiu às fantasias ideológicas que povoam sua mente, como a tese de que o Brasil estaria à beira do socialismo, ou quando se referiu ao que chama de “ideologia de gênero.” Ele iniciou seu discurso falando em “um novo Brasil, que ressurge depois de estar à beira do socialismo” – uma dupla falácia: o Brasil nunca se aproximou sequer do avanço civilizatório significado pelo socialismo, nem é novo sob o comando das forças de extrema direita que comanda, mas o velho, atrasado e arcaico Brasil das oligarquias que dominam o Estado brasileiro desde o Império, que terminou em 1889, e fazem do país uma enorme fazenda para a produção de commodities para o mercado mundial.
Ele falta com a verdade quando diz que seu governo trabalha para diminuir o desemprego e a violência – quando o número de trabalhadores sem ocupação ultrapassa os 13 milhões, e no momento em que o país assiste, consternado, ao assassinato da menina Agatha Felix, de 8 anos de idade, com um tiro de fuzil disparado por um policial militar, na periferia do Rio de Janeiro. Fala essa desfaçatez sem rubor nas faces! Não ruboriza sequer quando diz um absurdo como “Meu país esteve muito próximo do socialismo” – uma afirmação cara à direita que considera a ação estatal na economia, a existência de empresas públicas estratégicas, com socialismo – fantasia ideológica de direita já usada no passado, em plena ditadura militar, para descrever a ação estatal do governo do general Geisel e justificar a chamada “desburocratização”, de forma semelhante à que Bolsonaro faz agora, com a “novidade” de culpar a essa natureza da ação estatal as costumeiras acusações de corrupção. Em seu delírio direitista chegou a acusar como agentes políticos “infiltrados” aos profissionais cubanos do programa Mais Médicos – que tantos e reconhecidos serviços prestaram ao povo brasileiro! Atacou Cuba e a Venezuela, na cantilena provocativa de seus patrões estadunidenses.
A verdade também escasseou em sua defesa do “livre mercado” e das privatizações, e na afirmação de que a economia brasileira está reagindo – onde? como? Não há verdade quando fala que “a gestão competente e os ganhos de produtividade são objetivos imediatos do nosso governo”. Escasseia também – e o mundo sabe disso, informado pela imprensa costumeiramente atacada por Bolsonaro – quando alude ao compromisso de seu governo com a preservação do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável – palavras ilusórias que são um pobre biombo para encobrir a ação, tolerada e incentivada por seu governo, de incendiários e depredadores da Amazônia – ação registrada pelos olhos de satélites meteorológicos e pelos olhos humanos dos moradores de cidades brasileiras que a fumaça das queimadas recentemente transformou o dia em noite.
Enfim, um rosário de afirmações de escassa verdade e excessiva ideologia de extrema direita orientou a apresentação feita perante a ONU – e o mundo – pelo ex-capitão que dirige o governo de extrema direita no Brasil – afirmações que ele não teve a coragem política de fazer claramente durante a campanha eleitoral de 2018 pois se o fizesse com a mesma clareza, com certeza teria perdido votos de eleitores democratas.
Tom diametralmente oposto teve a entrevista do governador Flávio Dino (PCdoB-MA), no Roda Viva, da TV Cultura.
O radical contraponto entre os dois apareceu logo no início do programa, quando Flávio Dino foi anunciado como o intransigente defensor da democracia, do progresso social e da soberania nacional. Durante a entrevista, ele defendeu um “novo projeto nacional democrático e social”, que incorpore duas “grandes tradições” progressistas do país, o “trabalhismo” de Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola, e o “lulismo” dos governos Lula e Dilma.
Flávio Dino é um radical defensor do diálogo entre as forças democráticas e progressistas, sem veto a qualquer partido ou personalidade desde que voltados à defesa da democracia, da soberania brasileira e dos direitos do povo, sobretudo os mais pobres. Nesse sentido, defendeu o diálogo e a convergência: “é dever de todo patriota” tentar unir estas duas grandes tradições, o trabalhismo e o lulismo. Seria errado , disse, fazer um discurso que negue o papel do PT, “que é imprescindível”. E, com veemência, pregou ser preciso colocar acima de tudo “a unidade, o diálogo, a união, não por conta de partidismo – não temos o direito de colocar interesses parciais, partidários, na frente da perspectiva de retomar o Brasil para uma perspectiva progressista”, numa “política que represente fraternidade, solidariedade, esperança, num programa transformador” que agregue inclusive segmentos além da esquerda e junte todos os democratas, progressistas e patriotas. As palavras- chaves deste programa são, disse, “democracia política, soberania nacional, direitos dos mais pobres”.
Flávio Dino, que se proclama “católico, apostólico, romano”, admirador do papa Francisco e devoto de São Francisco de Assis, citou o profeta Isaías na defesa de um programa avançado para o Brasil, ao dizer que a paz verdadeira só existe quando há Justiça.
Fase lembrada no contexto da argumentação sobre um tema do qual, disse, a esquerda deixou a direita se apropriar – a bandeira política da segurança pública. Foi enfático – cabe ao poder público proteger os cidadãos e a sociedade nos termos da lei, sem exageros repressivos mas com a força da lei.
Segundo Flávio, a esquerda e as forças democrática e progressistas precisam ter mais nitidez programática; é urgente atualizar o programa, reconectar o discurso com os segmentos populares que sofrem com a recessão e o desemprego. “Vivemos – acusou – uma era de retrocesso político, social; de inércia econômica naquilo que é o principal, que é cuidar das pessoas”.
É preciso, disse, retomar os investimentos públicos pois, sob um padrão de concentração nas mãos de poucos – como ocorre neste governo de extrema-direita – o governo não cuida das pessoas mas apenas dos muito ricos.
Como financiar a ação do Estado e do governo num programa capaz de atender a todos? Flávio lembra que o Brasil tem 380 bilhões de dólares em reservas internacionais, valor que corresponde a 20% do PIB. Em sua opinião poderia ser criado, com base nessas reservas, um Fundo garantidor de parcerias público-privadas, para garantir e fomentar o investimento privado na economia. Além disso, referiu-se à injusta e concentradora situação fiscal brasileira, que privilegia aqueles que tem rendimentos mensais acima de 40 mil reais – que pagam menos impostos do que os demais. Ele defende uma reforma tributária baseada mais na tributação do lucro, da renda e da propriedade. e menos na tributação do consumo, que é concentradora de renda e injusta. É preciso, insiste, eliminar o que foi adotado em 1995, no governo de Fernando Henrique Cardoso – a isenção de impostos sobre lucros e dividendos – algo inédito no mundo.
Isto é, Flávio Dino – em contraponto ao direitista rancoroso Jair Bolsonaro – defende a união dos brasileiros em torno de um governo capaz de atender a todos, que cuide do povo e das pessoas e não somente dos muito ricos, da ganância do capital e dos interesses imperialistas. É esta a disjuntiva em que o Brasil se encontra hoje, e que neste começo de semana foi exposta claramente na apresentação das ideias de Flávio Dino, que se contrapõe fortemente à falta de compromisso com a verdade manifestada por Jair Bolsonaro.
*José Carlos Ruy é jornalista, tradutor e escritor.