Mais de 500 mil crianças não foram vacinadas no País

“Há uma grave possibilidade de a pólio ressurgir no Brasil, como foi com o sarampo, em 2018. Por isso, precisamos chamar a atenção para o risco e para a necessidade de vacinação”. O alerta é do pesquisador Fernando Verani, epidemiologista da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz).

Mais de 500 mil crianças não receberam a vacina contra a doença no Brasil. O número alto fez com que a Opas (Organização Pan-Americana da Saúde) colocasse o país na lista de nações com elevado índice de infecção. Segundo a organização, se a cobertura vacinal nos países não for superior a 95%, o risco de casos torna-se maior.

Akira Homma, diretor de Biomanguinhos da Fiocruz, afirmou que só 67% das crianças brasileiras estão vacinadas, 28% a menos do que o ideal. Segundo Homma, a baixa adesão à vacina é preocupante, principalmente pela proximidade do Brasil com países como Haiti e Bolívia — que têm alto risco de infecção.

“Quanto mais um vírus circula, mais mutações ele sofre, podendo se tornar uma nova ameaça, como se fosse um vírus selvagem. Se a cobertura vacinal da população fosse de 95% não haveria problema. Mas com as coberturas tão baixas, passa a ser um risco”, afirmou o pesquisador em entrevista ao Estadão.

A poliomielite está oficialmente erradicada no Brasil e no continente americano desde 1994. O diretor da Fiocruz foi um dos responsáveis pela campanha de erradicação da doença no país durante os anos 80. Na época, Homma lembra que a introdução da vacina oral e das campanhas nacionais de vacinações foram fundamentais para eliminar a poliomielite. Segundo o pesquisador, outro fator fundamental para o sucesso da vacinação foi a alta adesão da sociedade. No entanto, com a baixa cobertura vacinal, o Brasil corre o risco de reintrodução da doença.

Apesar da gravidade das sequelas provocadas pela pólio, o Brasil não cumpre, desde 2015, a meta de imunizar 95% das crianças. Segundo o Sistema de Informações do Programa Nacional de Imunizações (SI-PNI), a cobertura vacinal com as três doses iniciais da vacina está muito baixa: 67% em 2021.

E quando se trata das doses de reforço, a de gotinha, a proteção é ainda menor: apenas 52% das crianças foram imunizadas. Nas regiões Nordeste e Norte, a situação é ainda pior, com percentuais de 42% e 44%, respectivamente, para o esquema vacinal completo com as cinco doses.

“Enquanto a poliomielite existir em qualquer lugar do planeta, há o risco de importação da doença. É um vírus perigoso e de alta transmissibilidade, mais transmissível do que o Sars-CoV-2, por exemplo. Estamos com sinal vermelho no Brasil por conta da baixa cobertura vacinal, e é urgente se fazer algo. Não podemos esperar acontecer a tragédia da reintrodução do vírus para tomar providências”, conclamou Verani, em comunicado.

Em fevereiro deste ano, as autoridades do Malawi, na África, declararam surto da doença depois que uma criança de 3 anos foi infectada pelo polivírus selvagem tipo 1. Essa cepa está geneticamente relacionada ao vírus circulante no Paquistão, um dos dois países do mundo, junto com o Afeganistão, onde a pólio continua endêmica.

A menina desenvolveu a forma mais grave da enfermidade, a paralisia flácida aguda, cujos efeitos, muitas vezes, são irreversíveis. O último caso de poliomielite no país africano havia sido notificado em 1992, e a África toda declarada livre da doença em 2020.

A vacinação completa evita, ainda, o perigo de mutação do vírus atenuado da pólio. No Brasil, essa vacina, popularmente conhecida como “gotinha”, é utilizada na rede pública nos reforços contra a doença. Vale ressaltar que a vacina não ocasiona risco para a criança, já que ela recebeu o imunizante inativado anteriormente. Mas para as não vacinadas há risco de transmissão.

“Quando a população está com baixa cobertura vacinal, há o risco de mutação do vírus, ao ser transmitido de pessoa para pessoa, tornando-se uma cepa agressiva”, explica o virologista Edson Elias, chefe do Laboratório de Enterovírus do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), em comunicado.

A poliomielite é uma doença infecto-contagiosa aguda causada pelo poliovírus selvagem responsável por diversas epidemias no Brasil e no mundo. Ela pode provocar desde sintomas semelhantes a um resfriado comum a problemas graves no sistema nervoso, como paralisia irreversível. Crianças com menos de cinco anos de idade são as mais afetadas.

Outro fator de preocupação para o retorno da doença, segundo Verani, é a baixa eficiência nas estratégias de vigilância da doença para a contenção de possíveis surtos. O pesquisador explica que há cerca de três anos (desde que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência da República), os protocolos de vigilância epidemiológica ficaram enfraquecidos no Brasil.

“Eles têm a finalidade de detectar e prevenir as doenças transmissíveis. As amostras de esgoto das cidades não têm sido recolhidas com a frequência esperada, e não há a notificação e investigação constante de possíveis casos de paralisia flácida aguda. O país possui os recursos e a expertise para manter a polio erradicada, mas não está tomando as ações necessárias”, alertou o cientista.

Ele contou que no Malawi, o caso da menina infectada foi rapidamente identificado e a população local foi revacinada contra a poliomielite o que impediu uma epidemia viral. O especialista teme que, caso haja importação da doença, o sistema de saúde não consiga agir com a rapidez necessária para reprimir sua disseminação.

“Se o vírus for reintroduzido e não houver uma notificação rápida do caso, podemos ter uma epidemia. Com as baixas coberturas vacinais que temos hoje, as crianças estão desprotegidas. Podemos ter centenas ou milhares de crianças paralíticas como consequência”, advertiu o pesquisador da ENSP/Fiocruz.

A pesquisadora Dilene Raimundo do Nascimento, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz, diz que a pandemia do Coronavírus mostrou que o mundo não tem fronteiras atualmente.  “A pandemia veio acentuar ainda mais a vulnerabilidade das populações em relação às doenças infecciosas. Hoje, o deslocamento de pessoas é muito mais fácil e rápido, logo, a possibilidade de circulação do vírus aumenta”.

“Há uma grave possibilidade de a pólio ressurgir no Brasil, como foi com o sarampo, em 2018. Por isso, precisamos chamar a atenção para o risco e para a necessidade de vacinação”, alerta a especialista.

Com o objetivo de implementar ações para reverter a trajetória de queda nas coberturas vacinais dos Calendários Nacionais de Vacinação – da Criança, do Adolescente, do Adulto e ldoso, da Gestante e dos Povos Indígenas, o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz) e a Secretaria de Vigilância e Saúde do Ministério da Saúde (SVS/MS) assinaram um protocolo de intenções para implementar um programa de Reconquista das Altas Coberturas Vacinais.

Estudos recentes indicam que a aplicação de alguns imunizantes na população infantil chegou a ter queda de 65% em alguns estados brasileiros em 2020. No mundo, a redução foi de cerca de 30% nos primeiros meses daquele ano. De 15 vacinas que deveriam ser aplicadas até o quarto ano de vida e sobre as quais há mais informações disponíveis publicamente, pelo menos nove alcançaram índices inferiores aos recomendados pelas autoridades da saúde.

São imunizantes que protegem contra cerca de 17 doenças infecciosas graves. Algumas delas altamente contagiosas, como o sarampo e a coqueluche, ou incapacitantes, como a meningite e a infecção pelo vírus da poliomielite.

“[…] O impacto de algumas (condicionantes) parece ter sido reforçado nos últimos anos com a intensificação da atividade de grupos antivacina e espalhadores de notícias falsas nas redes sociais e a manifestação de autoridades públicas brasileiras falando abertamente contra os imunizantes”, afirma o pediatra e epidemiologista Fernando Barros, professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel )e da Universidade Católica de Pelotas (UCPel), que acompanha a evolução da vacinação infantil no país, para explicar a adesão insuficiente às campanhas de vacinação infantil no país.

EDIÇÃO: Guiomar Prates