Expandir Otan a leste, “um erro trágico”, disse ex-embaixador dos EUA
A estupidez de encurralar a Rússia com a expansão incessante da OTAN/EUA até às fronteiras russas – que está sendo colocada em xeque pela crise na Ucrânia e questão sobre a qual Moscou exige uma solução agora – esteve, desde sua gênese no governo de Bill Clinton e reiteração por todos os sucessores, sob condenação de altos escalões de Washington, que percebiam a gravidade e o desastre do que estava sendo desencadeado.
Como George Kennan, simplesmente considerado a figura que desencadeou a Guerra Fria com seu famoso ‘longo telegrama’ de 1947, e também o último embaixador dos EUA junto à União Soviética, prestes a colapsar, Jack F. Matlock Jr.
Aos 94 anos, quando o desastre da expansão da Otan era parido nas entranhas da capital norte-americana e em Bruxelas na década de 1990, Kennan disse achar que era “o início de uma nova Guerra Fria”, segundo registro do colunista do New York Times, Thomas Friedman.
“Acho que os russos reagirão gradualmente de forma bastante negativa, e isso afetará sua política. Acho que isso é um erro trágico”, sublinhou Kennan.
“Não havia razão para isso. Ninguém ameaçou ninguém. Essa expansão faria os fundadores deste país rolarem em seus túmulos. Nós nos inscrevemos para a proteção de vários países, embora não tenhamos recursos nem a intenção de fazê-lo seriamente. [A expansão da OTAN] foi apenas uma ação despreocupada de um Senado que não mostra interesse real em assuntos externos.”
“Fiquei especialmente preocupado com as referências à Rússia como um país morrendo de desejo de atacar a Europa Ocidental. As pessoas não entendem?”, questiona Kennan, segundo o qual as “nossas diferenças durante a Guerra Fria eram com o regime comunista soviético” e agora “estamos virando as costas para as mesmas pessoas” que o derrubaram.
“Claro, haverá uma reação ruim da Rússia, e então [os pró-expansão da OTAN] dirão que sempre dissemos a vocês que os russos são assim, mas isso é simplesmente errado”.
Após chamar Bill Clinton e Madeleine Albright de “liliputianos” por sua decisão de expandir a OTAN, o veterano diplomata disse que “esses titãs da política externa uniram forças e produziram . . . um rato”. “Era a minha vida, e me dói ver que acabou tão mal no final”, admitiu ao final.
Testemunha ocular em moscou
Outra testemunha ocular da história, Jack Matlock, que, como se apresentou em recente artigo, é “alguém que participou das negociações que puseram fim à Guerra Fria” como embaixador dos EUA na URSS de 1987 até 1991, “obviamente não haveria base para a crise atual se não houvesse expansão da aliança após o fim da Guerra Fria, ou se a expansão ocorreu em harmonia com a construção de uma estrutura de segurança na Europa que incluísse a Rússia”. O que é “óbvio, uma vez que a principal exigência de Putin é a garantia de que a OTAN não aceitará mais membros, e especificamente não a Ucrânia ou a Geórgia”.
Para o ex-embaixador, “a expansão da OTAN foi o erro estratégico mais profundo cometido desde o fim da Guerra Fria”.
Em 1997, quando o complexo industrial-militar dos EUA [de que falara o presidente Eisenhower] colocou na pauta a expansão da OTAN para leste, Matlock prestou um depoimento ao Comitê de Relações Exteriores do Senado:
“Considero equivocada a recomendação do governo de incluir novos membros na OTAN neste momento. Se for aprovado pelo Senado dos Estados Unidos, pode ficar na história como o erro estratégico mais profundo cometido desde o fim da Guerra Fria. Longe de melhorar a segurança dos Estados Unidos, de seus aliados e das nações que desejam entrar na Aliança, poderia muito bem encorajar uma cadeia de eventos que poderia produzir a mais séria ameaça à segurança desta nação desde o colapso da União Soviética.”
Ao Senado, ele disse ainda “ninguém está ameaçando redividir a Europa. Portanto, é absurdo afirmar, como alguns o fizeram, que é necessário incorporar novos membros à OTAN para evitar uma futura divisão da Europa”.
O que ele chamou de “reversão das políticas americanas que produziram o fim da Guerra Fria. O presidente George W. Bush havia proclamado a meta de uma “Europa inteira e livre”. Gorbachev havia falado de “nosso lar europeu comum” e ordenado “reduções radicais nas forças militares soviéticas, explicando que para um país ser seguro, deve haver segurança para todos”.
Ele lembrou ainda a promessa de Bush Pai a Gorbachev na reunião em Malta em dezembro de 1989, que “se os países da Europa Oriental pudessem escolher sua orientação futura por processos democráticos, os Estados Unidos não iriam ‘tirar vantagem’ desse processo, não haveria movimento da jurisdição da OTAN para o leste, ‘nem uma polegada’”.
“Embora não houvesse motivos para ampliar a OTAN depois que a União Soviética reconheceu e respeitou a independência dos países do Leste Europeu, havia ainda menos motivos para temer a Federação Russa como uma ameaça”, acrescentou, em referência à devastação ali vivida.
Foram as políticas adotadas pelos presidentes George W. Bush, Barack Obama, Donald Trump e Joe Biden que nos trouxeram a “este ponto”, reconheceu em seu artigo.
A adição de países da Europa Oriental à OTAN continuou durante o governo de George W. Bush, mas isso não foi a única coisa que estimulou a objeção russa.
Fim dos tratados de controle de armas
“Ao mesmo tempo, os Estados Unidos começaram a se retirar dos tratados de controle de armas que haviam amainado, por um tempo, uma corrida armamentista irracional e perigosa e eram os acordos fundamentais para o fim da Guerra Fria. A mais significativa foi a decisão de se retirar do Tratado de Mísseis Antibalísticos (ABM), que havia sido o tratado fundamental para a série de acordos que interromperam por um tempo a corrida armamentista nuclear”, afirmou Matlock.
Após o 11 de setembro – salientou o ex-embaixador -, Putin foi o primeiro líder estrangeiro a ligar para o presidente Bush e oferecer apoio. “Ele cumpriu sua palavra ao facilitar o ataque ao regime talibã no Afeganistão. Ficou claro naquela época que Putin aspirava a uma parceria de segurança com os Estados Unidos, já que os terroristas jihadistas que estavam atacando os Estados Unidos também estavam atacando a Rússia”.
“No entanto, Washington continuou seu curso de ignorar os interesses russos (e também aliados) ao invadir o Iraque, um ato de agressão ao qual não apenas a Rússia se opôs, mas também a França e a Alemanha”.
Embora o presidente Obama tenha inicialmente prometido melhorar as relações por meio de sua política de ‘reinicialização’, a realidade é que seu governo “continuou a ignorar as preocupações russas mais sérias e redobrou os esforços americanos anteriores para separar as ex-repúblicas soviéticas da influência russa e, de fato, encorajar a ‘mudança de regime’ na própria Rússia”.
As ações americanas na Síria e na Ucrânia foram vistas pelo presidente russo e pela maioria dos russos “como ataques indiretos a eles”.
E no que diz respeito à Ucrânia, “a intrusão dos EUA em sua política doméstica foi profunda, apoiando ativamente a revolução de 2014 e a derrubada do governo ucraniano eleito em 2014”.
As relações azedaram ainda mais durante o segundo mandato do presidente Obama após a anexação russa da Crimeia. “Então as coisas pioraram durante os quatro anos de mandato de Donald Trump. Acusado de ser um tolo pró-russo, Trump aprovou todas as medidas anti-russas que surgiram, enquanto ao mesmo tempo lisonjeava Putin como um grande líder”.
Para Matlock, a saída da crise é inteiramente possível. “Afinal, o que Putin está exigindo é eminentemente razoável. Ele não está exigindo a saída de nenhum membro da OTAN e não está ameaçando nenhum. Por qualquer padrão de senso comum, é do interesse dos Estados Unidos promover a paz, não o conflito. Tentar separar a Ucrânia da influência russa – o objetivo declarado daqueles que agitavam as ‘revoluções coloridas’ – era uma tarefa tola e perigosa. Será que esquecemos tão cedo a lição da crise dos mísseis cubanos?”
Matlock observa que “dizer que aprovar as exigências de Putin é do interesse objetivo dos Estados Unidos não significa que será fácil fazê-lo”.
“Os líderes dos partidos Democrata e Republicano desenvolveram uma postura tão russofóbica que será necessária grande habilidade política para navegar em águas políticas tão traiçoeiras e alcançar um resultado racional”.
Para o ex-diplomata, a crise que se enfrenta hoje entre os Estados Unidos e a Rússia era “previsível” e “evitável”, tendo sido “precipitada deliberadamente”, mas pode ser resolvida pela “aplicação do bom senso”.