Ildo Sauer e Guilherme Estrella, cientistas e ex-diretores da Petrobras
Os ex-diretores da Petrobras Ildo Sauer, professor titular de Energia do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP, e Guilherme Estrella, geólogo e exsuperintendente do Cenpes (centro de pesquisa da Petrobras), divulgam Nota Técnica denunciando que “o Brasil perderá até R$ 1,2 trilhão com o leilão da Cessão Onerosa previsto para o próximo dia 6 de novembro.”
A nota do IEE embasa as medidas que estão sendo tomadas no campo jurídico, e em outros, para barrar o leilão. Com a nota, o Brasil é alertado da gravidade do crime contra a soberania e os interesses nacionais que o governo Bolsonaro cometerá com a realização do leilão.

Cessão onerosa possui reservas de 15,2 bilhões de barris

“Para se ter uma ideia de sua magnitude, atualmente as reservas brasileiras de petróleo, oficialmente reconhecidas, todas do pós-sal, alcançam 13 bilhões de barris. Porém, os anúncios de recursos comprovados indicam quantidade da ordem de 100 bilhões de barris, o que coloca o País numa posição de relevância internacional, somente abaixo da Venezuela e Arábia Saudita, e próxima do Canadá, Irã, Iraque, Rússia, Kuwait e Emirados Árabes”, diz um trecho da nota técnica. “Os Campos da Cessão Onerosa, localizados na região do Pré-sal brasileiro e descoberto pelos esforços da Petrobras, possuem reservas recuperáveis estimadas em torno de 15,2 bilhões de barris, podendo chegar a montantes superiores”, acrescenta a nota.

“Portanto, os recursos objeto da proposta do leilão, 15% do País, ao lado dos contratos já outorgados, tem relevância para a produção internacional de petróleo, fragilizando ainda mais a posição estratégica do País na geopolítica mundial, além de reduzir a geração de renda à sociedade”, prosseguem os autores. “Em face do que foi definido por meio do edital, parece pertinente expor, a partir da perspectiva técnica e econômica, os prejuízos que tal opção representa ao Estado brasileiro e sua população, em face de outras alternativas previstas também em lei”, dizem eles.

O professor Ildo Sauer esclarece que “o primeiro objetivo desta nota técnica é demonstrar a afronta ao interesse público e à soberania nacional, promovida pelo leilão proposto”. Segundo ele, isto se dá “pelo fato de serem outorgados contratos de natureza microeconômica, com duração superior a três décadas, sem retenção, por parte da União, da capacidade de ordenar a redução ou aumento do volume de produção de petróleo, segundo as necessidades de acordos geopolíticos visando a manutenção dos preços do petróleo no mercado internacional, em patamar compatível com a maximização dos benefícios para a Nação”.

Contrato de produção com a Petrobras

O documento sustenta que “para garantir a soberania nacional e o interesse público, a forma possível, prevista em lei, é a outorga direta de contrato para produção pela Petrobras dos volumes de petróleo, em regime de prestação de serviços, mediante regulação e controle pela Petróleo Pré-sal S.A e pela Agência Nacional do Petróleo (ANP), e não os contratos de partilha adotados na proposta de leilão”.

Ildo Sauer esclarece que o segundo objetivo da nota é “apresentar a simulação do desenvolvimento da produção dos campos objeto do leilão, segundo premissas compatíveis com o atual estágio da tecnologia, bem como apresentar a simulação dos resultados econômicos associados à produção simulada para cada forma de contratação: a) contratos de partilha propostos para o leilão e, b) contratação direta da Petrobras, pelo regime de prestação de serviços; demonstrando, a superioridade da contratação direta da Petrobras em termos de geração de recursos para a União”.

O professor acrescenta que a contratação direta da Petrobrás pelo regime de prestação de serviço, “além de ser aquele regime que permite à União manter a soberania sobre o ritmo de produção do petróleo, de forma a poder pactuar acordos de cotas de exportação de petróleo com a OPEP+ (14 países membros da OPEP mais Rússia, México e Cazaquistão) A OPEP+mantém acordo operativo para regular as cotas de produção e promover a manutenção dos preços do petróleo em patamar de interesse dos países exportadores”.

Os autores alertam para o fato de que “a outorga de contratos de partilha e de concessão estabelece compromissos do Governo por prazos superiores a três décadas”. “Os contratos já outorgados sob esses regimes, assim como da cessão onerosa, já restringem a soberania nacional sobre fração relevante dos recursos descobertos. O leilão proposto vai aprofundar este ataque à soberania. Os Governos atuais criam inflexibilidades por mais de três décadas, impedindo assim que Governos futuros possam exercitar a soberania e pactuar eventuais acordos sobre o ritmo ou cotas de produção, visando garantir um retorno justo para a atual e futuras gerações no que diz respeito à exploração do petróleo”, denuncia a nota técnica.

Roubo às gerações futuras

Ildo Sauer adverte que “eticamente na verdade estes recursos pertencem às gerações futuras e, se extraídos agora, devem proporcionar riqueza superior às gerações futuras do que o próprio petróleo representaria caso ainda estivesse disponível. Do contrário estamos fraudando o direito das futuras gerações”. “A dívida social com a população brasileira, titular segundo a constituição dos recursos do petróleo, em termos de investimentos em saúde e educação públicas, em infraestrutura urbana e produtiva, em proteção ambiental, em ciência e tecnologia e na transição energética para fontes renováveis, somente será resgatada se estes recursos forem desenvolvidos de forma a maximizar o retorno para o interesse público”, prossegue.

“Nenhum dos países detentores de grandes reservas, com potencial impacto na Geopolítica do petróleo, quando os recursos naturais pertencem ao Estado, como no Brasil, promovem leilões deste tipo: ou exploram os recursos mediante empresa 100% estatal, ou outorgam contratos de prestação de serviços, quando necessário, como os propostos aqui em contraposição ao leilão”, adverte o professor da USP.

Privatizações e meio ambiente

Ele critica ainda o fato dos últimos governos não terem até agora quantificado a totalidade das reservas e estarem vendendo uma riqueza cuja dimensão não é de todo conhecida. Por outro lado, a nota chama a atenção também áreas os riscos das privatizações da exploração de recursos naturais. “Embora não seja objeto de análise nesta nota técnica, está na ordem do dia uma reflexão sobre a atuação das empresas privadas no caso de exploração de recursos naturais, especialmente o minério de ferro, pela Samarco (associação da Vale com a BHP Billinton) em Mariana e pela própria Vale privatizada em Brumadinho, e para o petróleo no Brasil e no mundo”, adverte.

“Em 2011 ocorreram exsudações de óleo por fissuras nos poços de perfuração do Campo Frade sob responsabilidade da Chevron, fonte da mancha de 163 km quadrados de óleo na superfície do mar. Em contraposição a Petrobras, depois de ter aprendido com as lições do afundamento da P36 e dos vazamentos da Baía da Guanabara e do Rio Iguaçu, antes de 2002, realização investimentos em prevenção e capacitação para emergências, tendo mantido desde então um desempenho exemplar em escala mundial”, acrescenta a nota.

Guilherme Estrella acrescenta as vantagens do fortalecimento da Petrobrás na exploração da Cessão Onerosa “para o interesse nacional e para o desenvolvimento social, econômico, científico e tecnológico nacional”.

A integração da Petrobrás com o sistema universitário e de desenvolvimento científico e tecnológico brasileiro; as operações de produção de O&G do pré-sal brasileiro englobam um grande conjunto de conhecimentos geocientíficos , de projetos de engenharia naval, de equipamentos, materiais, eletrônica e serviços de inspeção, manutenção e reparos especiais; como a cena operacional do pré-sal localiza-se em águas ultra-profundas, abaixo dos 2 km de lâmina d’água, depara-se com condições totalmente novas – em termos mundiais – em todos estes aspectos.

É especialmente nestes ambientes limítrofes do conhecimento científico e da tecnologia latu sensu – inclusive em tecnologias sensíveis, aplicadas à defesa nacional – que ocorrem concretas oportunidades de inovação industrial que se refletirão nas atividades industriais envolvidas de maneira muito positiva.

Desindustrialização

“O Brasil ocupa a 9ª posição no ranking das economias e o acachapante 40º lugar em inovação, em todo o mundo”, denuncia Estrella. “Paralelamente”, adverte, “o Brasil enfrenta, desde muitos anos, um ameaçador ciclo de desindustrialização cujo prosseguimento comprometerá a soberania nacional em C&T, engenharia, eletrônica, novos materiais e serviços especializados.”

“Somente a preservação dos contratos União x Petrobrás, mantida a empresa estatal brasileira como operadora, interromperá este ciclo perverso de retrocesso da participação industrial no PIB nacional. Nos anos 1980 o parque industrial de transformação contribuía com 33% do PIB, em 2017, com 13% (IEDI, 2017).

Estes números adquirem significado negativo muito maior quando se considera que a atividade industrial é fator central de níveis salariais mais elevados e, em consequência, de distribuição de renda, temas da maior importância social num país como o Brasil, que está entre os 10 mais desiguais do planeta”, informa nota técnica

“Entre 2013 e 2016, cerca de 13.000 empresas industriais de transformação brasileiras fecharam as portas e os investimentos na indústria caíram 24%. Os órgãos reguladores brasileiros do exercício profissional da engenharia (CREA’s) calculam que, atualmente, mais de 50 000 engenheiros brasileiros estão desempregados”, prossegue o documento.

“Empresas estrangeiras, com a legislação de forte atenuação tributária já aprovada e propostas que estão em discussão, certamente darão preferência a empresas fabricantes e fornecedoras situadas em seus países e (ou) suas regiões econômicas originárias”.

“Estará o Brasil, portanto, através de contratação destas empresas, transferindo reais e concretas oportunidades de inovação industrial, cada vez mais raras no cenário mundial de C&T, para outros países e suas empresas no exterior. Este aspecto será tão mais prejudicial ao Brasil na medida em que empresas operadoras estrangeiras tenderão a importar mão de obra especializada, técnica e de engenharia, necessária em todo o amplo espectro coberto pelas operações de produção do pré-sal”, explica Guilherme Estrella.

“Portanto”, prossegue a nota técnica, “depreende-se com total clareza que o pré-sal brasileiro representa, afinal, a grande oportunidade de desenvolvimento integral da sociedade brasileira. Descoberta por brasileiros, em território nacional, através de uma empresa estatal brasileira que enfrentou e superou riscos operacionais superelevados, na fronteira mundial das atividades de exploração e produção, com gigantescos investimentos financeiros bancados majoritariamente pelo seu principal acionista, a União, que representa o povo brasileiro”.

“Com este leilão dos excedentes da cessão onerosa, a revogar um contrato aprovado após exaustivas e completas avaliações de toda ordem, o atual governo brasileiro passa ao largo de todos estes fatos, desconsidera e subestima esta oportunidade histórica única para o Brasil se desenvolver de forma soberana, segura e sustentável por todo este século XXI e transfere todos os benefícios que, por direito, pertencem ao povo brasileiro para interesses de empresas estrangeiras, de seus países e sociedades de origem”, defendem os autores.

O documento reafirma o interesse nacional em não realizar o leilão proposto para o óleo excedente dos campos da cessão onerosa, e a União exercer sua obrigação e direito de contratar diretamente a Petrobras para realizar o desenvolvimento desses campos, quando for do interesse da União.

Conforme demonstrado por meio de simulações técnico-econômicas, seguindo as disposições do edital publicado pela ANP e parâmetros realistas praticados na indústria do petróleo, a ação de leiloar os recursos do campo de Objeto do leilão fere o interesse nacional, ao passo que transfere aos agentes que venham a vencer o certame um montante substancial de recursos que poderiam ser utilizados em benefício da sociedade brasileira. A não contratação direta e única da Petrobras para explorar o campo implica em um ganho para as demais empresas que venham a ser contratadas no consórcio, em detrimento da União e do interesse nacional”, argumentam Ildo Sauer e Guilherme Estrella.

Perdas chegama R$1,2 trilhão

Para o cenário mais provável de volume máximo dos campos e preço do petróleo de 60 dólares por barril, a perda da União seria da ordem de 300 bilhões de dólares ao longo dos 30 anos da operação dos campos, sendo que a maior parte destes recursos são gerados nos anos iniciais do desenvolvimento da produção. Uma perda esperada para este caso, pelo fato da União se omitir de um investimento estimado em 111 bilhões de dólares, já abatidos dos 300 bilhões líquidos. Como esse investimento estimado é conservador, as perdas potenciais poderão ser ainda maiores. Ao câmbio atual esses 300 bilhões de dólares correspondem a 1,2 trilhão de reais, uma vez e meia a economia preconizada pela Reforma da Previdência.

“Considerando todos os dados aqui expostos, a presente nota técnica conclui que o leilão programado para ocorrer no próximo 06 de novembro de 2019, para oferta dos recursos dos campos, fere a soberania e avilta o interesse nacional, na medida em que promove a renúncia do direito e da obrigação do Governo de manter o controle sobre ritmo de produção do petróleo, visando manutenção de seu preço no contexto geopolítica,e ainda causa prejuízos econômicos de grande magnitude à União e, consequentemente, à sociedade brasileira, que perderá recursos que poderiam estar disponíveis para avançar rumo ao seu desenvolvimento”, concluem seus autores.

(Sérgio Cruz)

Íntegra da Nota Técnica do IEE-USP