EUA usou Dinamarca como cúmplice para espionar líderes europeus
O grampo dos ‘aliados europeus’ por Washington, denunciado em 2013 por Edward Snowden, voltou à tona com a revelação, por um consórcio de emissoras e jornais europeus, da participação do serviço secreto dinamarquês na bisbilhotagem de Angela Merkel e outros dirigentes de países europeus pela Agência de Segurança Nacional norte-americana (NSA).
“Não é aceitável entre aliados, muito menos entre aliados e sócios europeus”, reagiu o presidente Emmanuel Macron no final de um conselho de ministros franco-alemão na segunda-feira (31). Repúdio ao qual se somou Angela Merkel: “Só posso me juntar às suas palavras”.
Entre os meios de comunicação que participaram da denúncia estão a tevê estatal dinamarquesa DR, a alemã NDR, a sueca SVT, a norueguesa NRK e os jornais Le Monde (francês) e Suddeutsche Zeitung (alemão), com base em relatórios internos e fontes do próprio serviço secreto dinamarquês.
O Forsvarets Efterretningstjeneste (FE) dinamarquês colaborou com os Estados Unidos e permitiu que a NSA utilizasse uma de suas estações de escuta, afirmaram esses jornais e emissoras. O grampo do NSA atingiu os cabos submarinos de internet entre a Dinamarca e vários países, como Alemanha e Suécia, interceptando ligações de celular, mensagens de SMS e buscas e chats na Internet.
A novidade, em relação ao que Snowden denunciara, é que ruiu o acobertamento da cumplicidade de países europeus, no caso a Dinamarca, no grampo de líderes europeus. A Casa Branca, o Departamento de Estado e a NSA se recusaram a fazer comentários.
Pelo Twitter, Snowden, cujas revelações foram feitas quando Biden era o vice de Obama, postou que o atual presidente norte-americano “está bem preparado” para falar sobre a questão e pediu transparência “total” dos EUA e da Dinamarca.
“Biden está bem preparado para responder por isso quando visitar a Europa já que, é claro, ele estava profundamente envolvido neste escândalo da primeira vez”, tuitou Snowden. “Deve haver um requisito explícito de divulgação pública total não apenas da Dinamarca, mas também de seu parceiro sênior.”
De acordo com a investigação, líderes políticos na Alemanha, Suécia, Noruega, Holanda e França foram visados e nem mesmo o setor financeiro dinamarquês escapou.
Com Biden prestes a desembarcar em continente europeu para “restaurar laços” abalados por Trump, antes da cúpula com o presidente russo Vladimir Putin, o vazamento, exatamente nesse momento, e partindo de onde partiu, revela um certo desconforto dos europeus para com o abraço de urso de que o octagenário norte-americano se faz portador.
Além de Merkel, os personagens de maior calibre grampeados são o presidente alemão e ex-ministro das Relações Exteriores, Frank-Walter Steinmeier, e o ex-líder da oposição, Peer Steinbrück. “Um escândalo”, este disse à emissora alemã ARD. “É grotesco que serviços de inteligência amigos estejam de fato interceptando e espionando representantes importantes de outros países”, acrescentou.
A cumplicidade de seu próprio serviço secreto com Washington para espionar líderes de países vizinhos é conhecida pelo governo de Copenhagen há anos, mas só no ano passado a direção da FE foi forçada a renunciar. No entanto, nada foi relatado aos aliados da União Europeia.
Dois países que têm recentemente reforçado laços militares com Washington, Noruega e Suécia, não tiveram como não comentar. “Estamos levando as alegações a sério”, garantiu o ministro da Defesa norueguês, Frank Bakke-Jensen. Já seu homólogo sueco, Peter Hultqvist, disse exigir “informações completas sobre essas coisas”.
Pegos no contrapé, e com eleições se aproximando, também Macron e Merkel tiveram de se pronunciar. “Não há espaço para suspeitas entre nós. É por isso que esperamos clareza total. Pedimos aos nossos parceiros dinamarqueses e norte-americanos para fornecerem todas as informações sobre essas revelações e sobre esses fatos passados. E aguardamos as respostas”, disse o presidente francês.
“Só posso associar-me às palavras de Emmanuel Macron. Fui tranquilizada pelo fato de o governo dinamarquês, incluindo o ministro da Defesa, também ter deixado muito claro o que pensa sobre este tema (…) É uma boa base, não
só para esclarecer os fatos, mas também para estabelecer relações de confiança”, acrescentou Merkel, que está com data marcada para deixar de ser primeira-ministra.
As revelações do canal DR estão baseadas em um relatório confidencial de maio de 2015 de título “Operação Dunhammer”. Sem mencionar diretamente a questão, a ministra da Defesa da Dinamarca, Trine Bramsen, considerou “inaceitável”, em um breve comunicado, “a espionagem sistemática de aliados próximos”.
Em agosto do ano passado, o diretor da FE, Lars Findsen, seu antecessor, Thomas Ahrenkiel, e outros três agentes foram destituídos, após criticados por terem “ocultado informações essenciais e cruciais” e por “apresentação de informações incorretas”.
As investigações mostraram que o próprio governo dinamarquês foi grampeado, para favorecer a compra dos aviões F-35 norte-americanos em substituição aos F-16, em detrimento dos Eurofighters de projeto e fabricação europeia.
A propósito, em uma entrevista de 2014 Snowden esclarecera que não só líderes políticos eram alvo, também era cometida espionagem industrial. Como ele disse então: “Se houver informações na Siemens que sejam benéficas para os interesses nacionais dos Estados Unidos – mesmo que não tenham nada a ver com segurança nacional -, elas serão recebidas mesmo assim.”
Na época, entre os alvos comprovados da NSA estavam a então presidente brasileira Dilma Rousseff e a Petrobrás.
Espelho
O Global Times, uma espécie de porta-voz oficioso de Pequim, registrou a evidente ligação entre o grampo cometido pelos EUA contra aliados e suas acusações contra a Huawei, a gigante chinesa da tecnologia de comunicação, de que é esta que espiona ou vai espionar seus clientes.
“Os EUA estão se esforçando para retratar a China à sua própria imagem”, sublinhou.
É o “verdadeiro caráter moral de Washington sendo revelado ao mundo”, em que o que é tido como uma das maiores democracias surge ao vivo como “chefe de uma quadrilha sinistra”, concluiu o GT.