A gigante dos EUA optara em conectar um motor novo e maior a uma estrutura de cinco décadas

A Boeing foi acusada de fabricar “caixões voadores” e de cometer “ocultação deliberada” de erros de projeto durante audiência no Senado dos EUA sobre os 346 mortos do novíssimo modelo 737 Max, à qual pela primeira vez compareceu o executivo-chefe da corporação Dennis Muilenburg, agora concentrado em tentar salvar a abalada reputação da gigante aeronáutica e em arrancar o quanto antes a liberação dos aviões encalhados.

A audiência aconteceu ao se completar um ano do primeiro desastre, na Indonésia, do voo 610 da Lion Air, – seguido por outro, cinco meses depois, na Etiópia, o voo 302 da Ethiopian Airlines. No dia seguinte, a audiência foi na Câmara.

Os pilotos do novo modelo sequer sabiam da existência do sistema automatizado MCAS propenso a derrubar o avião e nos dois casos os pilotos lutaram desesperadamente para tentar impedir a tragédia. Os 737 Max estão aterrados no mundo inteiro desde março. “Ambos os acidentes eram totalmente evitáveis”, disse o presidente do comitê de Comércio do Senado, o republicano Roger Wicker.

Familiares das vítimas estavam presentes com fotos dos seus entes queridos, vítimas da ganância e estupidez da maior fabricante de jatos civis dos EUA e da conivência da autoridade reguladora norte-americana, a FAA, que delegava à Boeing se autofiscalizar.

As embromações e “coração partido” de Muilenburg não convenceram os familiares das vítimas. “Quero que ele diga inequivocamente que assume a responsabilidade pelas mortes de 346 pessoas porque os acidentes eram evitáveis”, disse Paul Njoroge, que perdeu cinco membros da família no desastre na Etiópia. Adnaan Stumo, cuja irmã Samya morreu no mesmo acidente, disse que o executivo deveria deixar o cargo “e ir para a cadeia”.

A situação de descalabro em que se encontra o setor de engenharia da Boeing foi descrita com precisão pelo senador democrata Richard Blumenthal ao chamar o projeto da nova aeronave de um “caixão voador”, em que uma gambiarra – cuja existência sequer fora informada aos pilotos, o chamado Sistema de Aumento das Características de Manobra (MCAS, na sigla em inglês), que tentava remendar a alteração estrutural no modelo anterior, decorrente da substituição por turbinas maiores e mais pesadas, situadas mais à frente e mudando o centro de gravidade e a sustentação – assumia autonomamente o controle do voo, sem que o piloto soubesse o que estava acontecendo ou como desligá-lo

Como denunciou o piloto Chesley ‘Sully’ Sullenberger – aquele famoso pela aterrissagem miraculosa no leito do Rio Hudson – e atualmente do Conselho Nacional de Segurança no Transporte dos EUA, as decisões da Boeing sobre o projeto tornaram o novo avião “fatalmente defeituoso”.

A gigante dos EUA optara em conectar um motor novo e maior a uma estrutura de cinco décadas, em vez de reprojetar o avião, o que resultou numa tendência de perda de sustentação, que o MCAS deveria corrigir. Sob leitura errada do único sensor, em certas circunstâncias o dispositivo mandava o avião mergulhar repetidamente, contra a vontade do piloto.

O objetivo de tal opção era de dizer se tratar essencialmente do “mesmo” 737 de sempre e sem necessidade de treinamento especial, para acelerar a certificação e reduzir custos. Em suma, uma fraude e um desastre esperando para acontecer.

OCULTAÇÃO DELIBERADA

Blumenthal também condenou “o padrão de ocultação deliberada” de parte da Boeing, que só na véspera do depoimento de Muilenburg fez chegar aos comitês do Congresso cópias dos e-mails de seus pilotos de teste alarmados com o defeito, e que já estavam na mídia faz tempo.

Blumenthal denunciou que os pilotos do 737 Max “nunca tiveram chance, os passageiros nunca tiveram chance”. “Eles estavam em caixões voadores como resultado da Boeing decidir que ocultaria o MCAS dos pilotos”, indignou-se.

A conivência entre a Boeing e a FAA também ficou evidenciada durante a audiência. O FAA autorizou a gambiarra mortal da Boeing basicamente com base nos testes e relatos da própria Boeing – o que há anos se tornou no modus operandi no setor, graças à desregulamentação, que atravessa vários governos, republicanos e democratas. A raposa, como se sabe, é sempre a mais indicada para fiscalizar o galinheiro.

Wicker reconheceu que os e-mails entre os pilotos de teste da Boeing sobre os problemas no sistema MCAS revelavam “um nível perturbador de pouco caso e insensatez” na gigante da aviação.

Como salientou o senador Jon Tesler, a Boeing recebeu permissão da FAA para não instalar novos alertas em relação ao sistema MCAS nos 737 MAX porque “ficaria caro”. “Vocês me contaram meias verdades várias vezes”, afirmou a senadora democrata Tammy Duckworth, retrucando a Muilenburg sobre a ocultação, pela Boeing, dos problemas no sistema supostamente de ‘estabilização’.

O engenheiro-chefe da Boeing, John Hamilton, contestou as acusações de compadrio entre a corporação e a FAA, asseverando que as relações eram “estritamente profissionais”.

Apesar do alerta, feito no Congresso do Sindicato dos Profissionais de Segurança da Aviação, que representa os trabalhadores da FAA, em 2016 de que a desregulamentação havia chegado a tal ponto que os reguladores só seriam capazes de intervir em problemas com um avião “depois que um acidente acontecesse e as pessoas fossem mortas”.

OPÇÃO

Assim, a mea-culpa de Muilenburg não passa de um biombo quanto a que a Boeing decidiu, nos mais altos escalões, colocar em serviço uma aeronave com erros de projeto e problemas de segurança de voo. Na corrida para lançar seu modelo à frente da Airbus, todos os protocolos padrão de segurança estavam sendo ignorados. “Cometemos erros”, admite agora, para minimizar as responsabilidades.

Há até um e-mail de um gerente sênior para Muilenburg, chamando a encerrar todo o Programa 737 Max. “Todos os meus avisos internos estão disparando, e pela primeira vez na minha vida, hesito em colocar minha família em um avião da Boeing”, registrou em vão.

Outra advertência de que o sistema MCAS estava fora de controle partiu do principal piloto de testes da Boeing, Mark Forkner.

Quanto ao MCAS propriamente dito, as decisões da Boeing só podem ser consideradas criminosas. Foi removida dos manuais de treinamento de voo qualquer menção à gambiarra, enquanto o treinamento de pilotos era reduzido a um vídeo de uma hora em um iPad. Alterações feitas no MCAS sequer foram comunicadas à FAA.

Já o citado profissionalismo das relações entre a Boeing e a FAA devia realmente ser exuberante, já que, mesmo após a queda do voo 302 da Ethiopian Airlines, só aceitaram aterrar o avião após as demais autoridades aéreas do mundo já o terem feito.

RACHADURAS NAS ASAS

Na segunda-feira, Muilenburg esteve na embaixada da Indonésia em Washington, véspera do desastre da Lion Air, para outro exercício de relações públicas. No país, uma solenidade homenageou as 189 vítimas e flores foram jogadas no mar.

No ano passado, o executivo da Boeing abiscoitou US$ 30 milhões, uma parte disso em ações que vendeu após o desastre da Lion. No Senado, Wickers asseverou que o 737 Max não retornaria aos céus dos EUA “até que 99,9% do público americano” e os congressistas estejam convencidos de que “está seguro”.

Muilenburg não tem descanso: esta semana a Boeing, para a qual a nossa Embraer e seu departamento de Engenharia estão sendo entregues na bacia das almas, se defrontou com problema em outro modelo 737, o Nova Geração, NG. 50 aviões estão aterrados após descoberta de rachaduras estruturais numa parte que prende a estrutura da asa à fuselagem da aeronave. Em torno de 1000 aviões desse modelo, com 30 mil horas de voo, têm de ser inspecionados.

O estrago continua e provavelmente o que tiro o sono do executivo é que, no terceiro trimestre, o lucro da Boeing caiu 51%. Além de que a entrega de aviões da Boeing no primeiro semestre do ano despencou 37%, para 289 unidades. Enquanto Airbus crescia 28% (para 389 unidades) no mesmo período.