EUA: Senado aprova elevação do teto da dívida do governo até dezembro
O Senado dos EUA votou na noite de quinta-feira (7), autorização para elevar o teto de endividamento do governo até dezembro, evitando temporariamente um calote federal sem precedentes, que causaria o fechamento de boa parte da máquina da união a partir do dia 18 de outubro, como alertado insistentemente pela secretária do Tesouro, Janet Yellen, e devastaria a recuperação da economia, prejudicaria milhões de norte-americanos, ameaçando jogar o país na recessão, com repercussões no mundo inteiro.
A elevação do teto do endividamento, no patamar atual de gastos, foi aprovada por 50 votos a 48, com 11 senadores republicanos concedendo o quórum para contornar o ‘filibuster’, mecanismo que exige que qualquer matéria para ir a votação precisa antes de 60 votos, em um Senado de 100 cadeiras, e que está dividido 50-50.
A elevação corresponde a uma extensão em US$ 480 bilhões. Já está programada, para a próxima terça-feira, uma sessão da Câmara para aprovar a medida, para que possa ser assinada em lei pelo presidente Joe Biden.
Apenas na quarta-feira, após pronunciamentos de Biden e de líderes empresariais e alertas de Yellen, o líder da minoria republicana no Senado, Mitch McConnell, recuou da intransigência com que vinha tratando a questão e aceitou chegar a um acordo temporário.
Segundo o portal Axios, McConnell “piscou primeiro”. A dívida pública norte-americana está perto de US$ 29 trilhões.
Sem o acordo, e com o ano fiscal encerrado em 30 de setembro, em poucos dias o governo teria de interromper seus pagamentos a milhões de pessoas e a maioria das agências federais, com exceção do aparato militar/inteligência, seria obrigada a paralisar os serviços ou operar com equipes reduzidas.
O tesouro também teria de administrar o que seria pago e o que não seria, devastando a recuperação da economia frente à pandemia. Sem autorização para tomar novos empréstimos, até mesmo os cheques da Previdência Social que devem ser enviados em 20 de outubro estariam em risco.
Yellen havia advertido que até 18 de outubro o Tesouro iria esgotar suas ferramentas de “medidas extraordinárias”, o que, sublinhou, teria “consequências catastróficas”. Incluindo uma enorme crise econômica global, disparada nas taxas de juros e ameaça ao status do dólar como moeda de reserva de fato do mundo.
No mês passado, o Financial Times havia publicado a carta de Yellen ao Congresso dos EUA como notícia principal, alertando para o “risco crescente de uma crise da dívida soberana dos EUA”. “Um atraso que ponha em causa a capacidade do governo federal de cumprir todas as suas obrigações provavelmente causaria danos irreparáveis à economia dos EUA e aos mercados financeiros globais”, ela acrescentou.
Por causa da pandemia, o limite de endividamento estava suspenso, mas foi restabelecido em agosto. Antes do recuo, McConnell dizia que não iria votar a elevação do teto do endividamento, porque a proposta de orçamento do governo Biden incluía “tudo o que somos contra”, em referência ao pacote de ampliação dos gastos sociais que está sobre a mesa.
Outro aspecto importante é que isso ocorre em um momento em que boa parte dos republicanos segue insistindo na mentira de que a eleição foi “roubada”, persiste no discurso de ódio, mantém o negacionismo e nas assembleias estaduais promove abertamente legislações para dificultar o voto, particularmente de negros e latinos.
Crise fabricada
“Agradeço aos meus colegas democratas por mostrarem unidade na resolução desta crise fabricada pelos republicanos”, disse o líder da maioria no Senado, Chuck Schumer. “Apesar da imensa oposição do líder McConnell e dos membros de
sua conferência, nossa bancada se manteve unida e puxamos nosso país da beira do penhasco do qual os republicanos tentaram derrubá-lo.”
Além das razões apontadas, a elevação do teto de endividamento é necessária para cobrir medidas já autorizadas pelo Congresso e as reduções de receita, cuja origem está nos cortes de impostos decretados por Trump em 2017, bem como os pacotes de desoneração dos monopólios realizados durante seu mandato.
A última grande batalha sobre a elevação do teto de endividamento foi em 2011, no governo Obama, que, apesar de finalmente resolvido, desencadeou turbulência significativa nos mercados financeiros e levou a um rebaixamento da classificação de crédito do governo dos Estados Unidos, pela primeira vez na história. De AAA para AA+, pela Standard and Poor’s.
“Mcconnell se dobra de novo”, diz Trump
O recuo de McConnell foi prontamente recriminado pelo ex-presidente Donald Trump, que postou que o líder republicano no Senado “está se dobrando para os democratas, de novo”.
“Ele tem todas as cartas com o teto da dívida, é hora de jogar a mão”, acrescentou o ex-presidente, concluindo com uma encenação: “não os deixe destruir nosso país!”.
Por sua vez, o senador Bernie Sanders se disse “feliz que Mitch McConnell finalmente haja visto a luz”. Os republicanos “finalmente fizeram a coisa certa e pelo menos agora temos mais alguns meses para obter uma solução permanente”.
Já McConnell se escudou contra as críticas de Trump, asseverando que seu recuo “poupará o povo americano de qualquer crise de curto prazo” e enterrará “a desculpa da maioria [democrata] de que faltou tempo para resolver o limite da dívida (por meio da ‘reconciliação’)”. Endossando a recriminação de Trump, o senador Ted Cruz disse que “infelizmente, ontem, os republicanos piscaram”.
Queda de braço
Na véspera, Biden convocara líderes empresariais para intensificar a pressão sobre os republicanos e comparou o risco de default a um “meteoro” que poderia esmagar a economia e os mercados financeiros. Antes ele já dissera que os republicanos estavam “jogando roleta russa” com a recuperação econômica.
O presidente também ameaçou aderir à proposta dos setores democratas mais progressistas de acabar com o mecanismo de obstrução no Senado [‘filibuster’], que na prática tem funcionado como um ‘direito’ de veto.
No evento na Casa Branca, executivos-chefes do Citi, JP Morgan Chase e da Nasdaq instaram a uma solução imediata. “Não podemos esperar até o último minuto para resolver isso”, disse Jane Fraser, executiva-chefe do banco Citi.
“Estamos, simplesmente, brincando com fogo agora, e nosso país tem sofrido muito nos últimos anos. O custo humano e econômico da pandemia tem sido exorbitante, e não precisamos de uma catástrofe de nossa própria autoria”, acrescentou a banqueira.
Também os Consultores Econômicos da Casa Branca advertiram em relatório que a inadimplência do governo federal “enviaria ondas de choque nos mercados financeiros globais e provavelmente faria com que os mercados de crédito em todo o mundo congelassem e os mercados de ações despencassem”. “Os empregadores em todo o mundo provavelmente teriam que começar a despedir trabalhadores.”
Diante das óbvias conseqüências para as pretensões republicanas de retomar o Congresso, no todo ou em parte, nas eleições intermediárias do próximo ano, que em geral favorecem a oposição, caso essa catástrofe se confirmasse, McConnell se decidiu por dar um passo atrás no bloqueio que promovia.
Quando dezembro chegar
Como assinalou o senador democrata Chris Murphy, supondo que os detalhes finais na legislação de emergência estejam em ordem, “nos próximos três meses, continuaremos a deixar claro que estamos prontos para continuar a votar para pagar nossas contas e os republicanos, não. ”
Mas ainda está sem solução a aprovação do orçamento para 2022 e aí o problema vai além dos opositores trumpistas. Dois senadores democratas e nove deputados vêm se opondo ao plano de US$ 3,5 trilhões em dez anos [‘Build Back Better’ (BBB), Reconstrua Melhor] que amplia os gastos sociais. O próprio Biden já admitiu em público que o valor terá que encolher, para algo em torno de US$ 2 trilhões.
Por causa do ‘filibuster’ e do empate em vigor, no Senado os democratas não podem dispensar nenhum voto, para poder por em prática o mecanismo da ‘reconciliação’ orçamentária, segundo o qual são necessários todos os 50 votos democratas, para que a vice Kamala Harris, que na legislação norte-americana preside o Senado, dê o voto de minerva e garanta a aprovação.
A bancada progressista na Câmara chegou a exigir que a votação do plano de ampliação dos gastos sociais e com o meio ambiente ocorra conjuntamente com o plano de ampliação da infraestrutura, já aprovado no senado e negociado com os republicanos, de US$ 550 bilhões – inclusive ameaçando votar contra. Como já havia sido aprovados US$ 450 bilhões para a infraestrutura, são US$ 1 trilhão em investimento.
O plano BBB destina US$ 1 trilhão para creches, universalização da educação pública para crianças entre três e quatro anos de idade (hoje inexistente na maior parte dos EUA) e gratuidade de dois anos de estudo nas chamadas Community College, faculdades locais – mais baratas e com bem menos prestígio do que as renomadas universidades americanas – que costumam atender os alunos mais pobres.
Distribuído ao longo de dez anos, o pacote de gastos sociais é menos da metade das somas gigantescas destinadas ao Pentágono, que no nível atual de gastos chegariam a quase US $ 8 trilhões nesse período.
O plano não cria nenhum novo programa social, mas estende alguns benefícios federais a mais famílias, como o crédito tributário para crianças, que se torna permanente, ao invés de prorrogado ano após ano. A elegibilidade para o Medicaid seria expandida e o Medicare passaria a incluir tratamento odontológico, oftalmológico e de audição, ainda que gradativamente, e ao longo de vários anos.