Com mais de 120 mil casos de Covid-19 até sábado, os EUA já são o novo epicentro da pandemia do coronavírus, após superar a Itália e a China em contágios, e em apenas 24 horas o número de enfermos aumentou em 17 mil. A Organização Mundial da Saúde (OMS) havia previsto que isso iria ocorrer, em decorrência da aceleração dos casos nos EUA.

Em novo sintoma de agravamento, o número de mortos nos EUA pelo coronavírus dobrou em três dias. Atingiu 1.000 mortes no dia 25 e chegou a 2.010 no sábado (28), enquanto o risco de colapso no sistema de saúde de Nova Iorque – que concentra quase a metade dos casos no país – cresce a cada hora. Todos os 50 estados já têm contágios, que passam de 1.000 em 17 deles.

Horas após subitamente começar a falar em decretar uma “quarentena obrigatória” no estado de Nova Iorque, em Nova Jersey e em partes de Connecticut, o presidente Donald Trump recuou diante dos problemas causados pelo anúncio da medida sem qualquer articulação prévia com os governadores, que têm arcado com o peso central do combate à pandemia, diante da incúria e despreparo do governo Trump.

Seja como for, na sexta-feira, indagado por um repórter, Trump havia dito que as crianças não deveriam voltar às aulas, mas sim “ficarem em casa para se protegerem”.

Apesar do governo Trump, o governo de Nova Iorque decretou o fechamento das escolas há dez dias e das atividades não essenciais, dois dias depois. O primeiro contágio foi detectado há 27 dias.

A inesperada menção de Trump à “quarentena obrigatória”, menos de uma semana após ter falado em “reabrir os negócios” até “a Páscoa”, sem nenhuma articulação anterior com os estados, soou mal para os governadores já que acentua a linha errática da Casa Branca, a falta de uma estratégia nacional para enfrentar a pandemia.

100 milhões de norte-americanos estão sob algum tipo de confinamento, sem o que o combate à pandemia fracassa rotundamente. A luta pelo “fique em casa” tem se desenrolado de costa a costa, com governadores e prefeitos jogando o papel principal.

Quando Trump e Cuomo se falaram no sábado, a conversa foi só sobre o navio-hospital que está chegando e quatro hospitais de campanha. Horas depois, Trump largou o balão de ensaio em dois atos públicos, à revelia de Cuomo.

Apenas quatro dias antes, a conversa de Trump era de que tudo deveria voltar a funcionar e até conclamou a que as igrejas “ficassem lotadas” na Páscoa, em 12 de abril. Depois remendou para “alguns lugares” pouco afetados pela pandemia.

Como Cuomo alertou, o pico da pandemia no seu estado chegará em “duas a três semanas” e é preciso correr para preparar o sistema de saúde.

Relatos de Nova Iorque revelam uma falta aguda de equipamentos essenciais, como respiradores e até máscaras cirúrgicas, enquanto hospitais de campanha são instalados às pressas e caminhões frigoríficos são estacionados nas imediações dos principais centros de saúde, já prevendo a escalada de mortos.

Depois de ter batido boca com governadores que exigiam uma resposta mais adequada à pandemia, no sábado Trump afinal aceitou a decretação de estado de emergência em 15 estados, o que facilita a liberação de recursos federais.

Também, depois que a General Motors anunciou que iria passar a produzir ventiladores médicos, Trump assinou lei determinando que isso seja feito, após dias de inércia, ordem também dada à Ford, com base em legislação da época da Guerra da Coreia.

O republicano que preside a Associação Nacional de Governadores, Larry Hogan, de Maryland, disse que as mensagens de Trump sobre a pandemia eram “confusas” e que sua entidade iria se ater “à ciência e aos fatos”.

Por região, apesar das diferenças partidárias, governadores democratas e republicanos tentam chegar a medidas de contenção o mais conjuntas possível para não piorar a desarticulação econômica local.

“A colcha de retalhos continua sendo uma colcha de retalhos, desde que o governo federal não intensifique e reconheça que é uma guerra (à pandemia)”, enfatizou o governador de Illinois, JB Pritzker. Para ele, Trump está olhando “para o mercado de ações, não para a ciência”.

Foi de Trump, durante a semana, a tuitada de que “o remédio (a quarentena) não podia ser pior (de longe) que a doença”, após encontro com capos dos fundos de hedge que haviam acorrido à Casa Branca para pedir pressa no resgate, antes que a vaca fosse para o brejo.

Ao que se somava o tsunami de três milhões de trabalhadores sumariamente demitidos país afora, em meio à paralisação de tudo que não era essencial.

Além do que, nesse momento, ainda não haviam sido fechados no Congresso os termos do pacote de US$ 2 trilhões e do bailout de Wall Street, estimado em US$ 500 bilhões (mais o que já ficara garantido via torneiras do Fed).

Já são seis as grandes cidades dos EUA atingidas por surtos: Nova Iorque, Detroit, Miami, Nova Orleans, Los Angeles e Seattle.

Segundo o New York Times, que publicou gráfico sobre as curvas de contágio, várias metrópoles dos EUA poderiam ter surtos “piores que Wuhan”, cidade chinesa onde o coronavírus foi primeiro detectado e até então a mais sofrida com a pandemia.

Em total de mortos, são cinco os países com maior perda de vidas pelo novo coronavírus do que os EUA: Itália (10 mil mortos), Espanha (5,9 mil), China (3,4 mil), Irã (2,5 mil) e França (2,3 mil) – embora os EUA ainda estejam em uma fase preliminar na curva de contágio.

Los Angeles parece que vai pelo mesmo caminho de Nova Iorque: o número de caso subiu 50% na quinta-feira e outros 20% até o meio-dia de sexta-feira. A diretora de saúde Barbara Ferrer diz que espera ver a contagem de casos em Los Angeles dobrar a cada quatro dias nas próximas duas a três semanas. “Não importa onde você esteja, isso está chegando”, disse o prefeito de Los Angeles, Eric Garcetti. “Tome todas as medidas possíveis para garantir que as pessoas estejam em casa”.

O temor é que se repita, em Nova Iorque, o desastre em curso na Itália, em que decisões políticas alheias aos fatos científicos e supostamente preocupadas com a “proteção à economia”, acabaram por causar o colapso do sistema de saúde e até dos crematórios.

Giuseppe Sala, prefeito do centro financeiro italiano, veio a público pedir desculpas por sua responsabilidade pela campanha contra a quarentena “Milão não vai parar”.

A orientação da OMS de confinamento em geral, testagem e isolamento para tratamento dos doentes – para achatar a curva de contágio e evitar implodir o sistema de saúde em decorrência da falta de leitos para os casos graves -, foi escanteada. Quando a quarentena foi afinal adotada pelo governo de Roma, o quadro sanitário já estava fora de controle, o sistema de saúde italiano entrou em colapso e, ao final, o país já tem um número de mortos quase o triplo da China, que tem uma população mais de 20 vezes maior.

A ação sem precedentes da China, isolando, testando e tratando, ganhou um tempo precioso para os demais países, que foi desperdiçado por considerações estúpidas e míopes.

Antes de começar a falar de “quarentena obrigatória”, Trump já havia feito o remendo de dizer que a reabertura dos negócios seria “nas áreas sem doença” – mas sua campanha temia que um súbito surto em uma dessas áreas em que ele prometera fazer a economia voltar a funcionar poderia custar sua reeleição.

Houve resistência também de parte do principal consultor científico do combate federal da pandemia, o dr. Anthony Fauci, que retrucou à insanidade da “volta na Páscoa” com o evidente argumento de que “quem determina a duração é o vírus, não somos nós”.

Outras autoridades médicas rechaçaram a ideia de jerico. “Agora é a hora de apertar as restrições sobre os contatos que poderiam transmitir o vírus, não soltá-las”, afirmou ao Washington Post o diretor do Centro de Harvard para Doenças Transmissíveis Dynamics, Marc Lipsitch.

“Se desistirmos agora, podemos ter praticamente certeza de que os cuidados com a saúde serão sobrecarregados em muitas, senão em todas as partes do país. Esta é a visão de todo epidemiologista infeccioso bem informado que conheço”, reiterou.

Economistas também advertiram o bilionário-em-chefe da Casa Branca de que o tiro poderia sair pela culatra e, ao invés de reativar a economia, ao agravar a pandemia, arriscava desencadear uma depressão econômica.

O economista-chefe da Moody’s Analytics, Mark Zandi, disse à CNN que a proposta era “uma receita para a depressão econômica” e uma aposta “sem a ciência do lado dele”.

Como ele salientou, o objetivo das restrições é retardar o surto, adquirindo um tempo precioso para impedir que os hospitais e os médicos do país fiquem completamente sobrecarregados. “Se as pessoas entrarem em pânico porque os hospitais estão transbordando e os entes queridos estão morrendo, o impacto na economia será ainda pior do que se continuarmos confinados”, afirmou.

Opinião semelhante à do economista-chefe da consultoria RSM, Joe Brusuelas, de que “se a economia for reaberta antes do término do vírus, estará se criando uma probabilidade maior de segunda e terceira ondas (de contágio) que fecharão a economia novamente”.

O estado de Nova Iorque – que está sob quarentena desde o dia 20 de março – é o mais atingido, com 52.318 enfermos – 47% do total de casos nos EUA na sexta-feira – e 728 mortos. A cidade de Nova Iorque, com 9 milhões de habitantes, tem mais casos do que a França inteira, com 67 milhões de habitantes, e que é o sexto país do mundo mais afetado pela covid-19.

A taxa de contágios per capita de Nova Iorque também é maior do que a da Itália.

O governador Andrew Cuomo disse que a prioridade é “achatar a curva” de novos casos na área metropolitana de Nova York. O estado possui 53 mil leitos hospitalares, está empenhado em aumentar sua capacidade em 50%, com a meta de dobrar, para 140 mil, o que teria que ser alcançado em 20 dias, quando se avalia que o pico da epidemia chegará a NY.

Nessa situação crítica, Trump teve a desfaçatez de dizer em público que “não acreditava” que Nova Iorque precisasse de “30 mil a 40 mil ventiladores médicos”, como Cuomo pedia.

Os profissionais da saúde estão se virando como podem. “Estamos com medo”, disse à Reuters Arabia Mollette, do Hospital e Centro Médico da Universidade Brookdale, no Brooklyn. “Estamos tentando lutar pela vida de todos os outros, mas também lutamos por nossas vidas, porque também corremos o maior risco de exposição”.

Um médico de pronto-socorro em Michigan disse que estava usando uma máscara de papel durante todo o turno devido à escassez e que os hospitais na área de Detroit logo ficariam sem ventiladores. “Temos sistemas hospitalares aqui na área de Detroit que estão chegando ao fim de seu fornecimento de ventiladores e precisam começar a dizer às famílias que não podem salvar seus entes queridos porque não têm equipamento suficiente”, explicou o Dr. Rob Davidson em vídeo postado no Twitter.

Marney Gruber, uma médica de emergência que trabalha na cidade de Nova Iorque relatou que os medicamentos mais usados estão em falta e os hospitais estão ficando sem tanques de oxigênio. “Estes são os alimentos básicos na medicina de emergência e nas UTIs – esses são o seu pão e manteiga, realmente, os seus fundamentos básicos”, concluiu.