EUA condena a 45 meses de prisão ex-analista que expôs chacinas
O ex-analista de inteligência da Força Aérea dos EUA, Daniel Hale, que expôs ao mundo os crimes de guerra dos EUA com drones, foi condenado a quase quatro anos de prisão (45 meses), na primeira sentença contra denunciantes, sob a Lei de Espionagem, no governo Biden.
“The Drone Papers” foram publicados pelo Intercept em outubro de 2015. Conforme os documentos que Hale vazou, das 200 pessoas mortas entre janeiro de 2012 e fevereiro de 2013, nos ataques de drones, apenas 35 eram os alvos pretendidos. Ou seja, quase 90% dos mortos eram inocentes, que mesmo assim foram classificados como ‘inimigos mortos em ação’.
Em suma, um crime de guerra, cometido sob ordens do então presidente Barack Obama, dadas nas assim batizadas pelo New York Times “Terças da Morte”.
O denunciante, Hale, numa inversão da ‘Jurisprudência de Nuremberg’, depois de ser perseguido sob Obama e processado sob Trump por “espionagem”, se torna o primeiro prisioneiro de consciência do presidente Biden.
Como postou o também denunciante, Edward Snowden, “Quando expor um crime é considerado cometer um crime, estamos sendo governados por criminosos”.
Ao proferir a iníqua sentença, o juiz Liam O’Grady asseverou que a sentença de 45 meses era necessária para “impedir que outros revelassem segredos do governo”.
Sob a coação de ser condenado a 50 anos por espionagem, Hale se declarou culpado em março, admitindo “retenção e transmissão de informações de segurança nacional”, como parte de um acordo para sua pena não superar dez anos.
“Crimes de guerra”
“Ele fez isso porque estava denunciando um crime de guerra. Ele não tem permissão para dizer isso. E não tem nenhuma chance de absolvição”, assinalou o ex-agente da CIA, e denunciante da tortura, John Kiriakou, ele próprio encarcerado por 2,5 anos por isso.
O ‘tribunal’ em que Hale foi julgado é o mesmo que espera Assange, praticamente uma dependência do braço ‘jurídico’ da CIA/Pentágono, e que já condenou Chelsea Manning, Kiriakou e outros.
Hale recebeu manifestações de solidariedade também de Daniel Ellsberg, o autor do ‘Pentagon Papers”, e do WikiLeaks. Após a sentença, a Associação Americana pelas Liberdades Civis (ACLU) afirmou que o denunciante “ajudou o público a saber sobre um programa letal que nunca deveria ter sido mantido em segredo. Ele deveria ser agradecido, não sentenciado como espião”.
V-2 dos tempos modernos
Investigação sobre os assassinatos com drones, realizado pelo Bureau de Jornalismo Investigativo (TBIJ), comparou os drones norte-americanos às V-2 dos tempos modernos. O relatório denunciou que entre junho de 2004 e meados de setembro de 2012, ataques de drones mataram entre 2.562 e 3.325 pessoas no Paquistão, das quais cerca de 474 a 881 eram civis, incluindo 176 crianças.
No relato desses investigadores, os drones pairam 24 horas por dia nos céus do Iraque, Somália, Iêmen, Afeganistão, Paquistão e Síria, operados remotamente desde bases norte-americanas e, sem avisar, bombardeiam casas, veículos e até funerais e casamentos.
É comum atacar as equipes de resgate. Nem crianças são poupadas. Os assassinatos são tratados pelos operadores como se fossem um tipo de videogame. Os mísseis disparados pelos drones matam ou ferem por meio de incineração,
estilhaços e liberação de ondas de explosão poderosas, capazes de esmagar órgãos internos. Os sobreviventes frequentemente sofrem queimaduras desfigurantes, amputações de membros, bem como perda de visão e audição.”
No documentário de 2016 ‘National Bird’, Hale fala de sua infância miserável e o que o levou a se alistar. “Antes de entrar para o exército, eu estava bem ciente de que o que estava prestes a entrar era algo do qual discordava. Eu entrei de qualquer maneira por desespero. Eu estava sem teto. Eu estava desesperado. Eu não tinha outro lugar para ir. Eu estava na minha última perna. A Força Aérea estava pronta para me aceitar.”
Havia, ainda, a expectativa de que algo fosse mudar com a vitória de Barack Obama. Ele recebeu treinamento em idiomas e inteligência em Fort Bragg, e trabalhou com a NSA no Afeganistão como analista de inteligência, identificando alvos para os drones. O que o fez ter acesso à vasta guerra global com drones escondida da vista do público e às “listas da morte” secretas de Obama.
No Afeganistão, Obama procedeu a uma escalada de tropas e intensificou maciçamente o programa de assassinatos com drones. Pior: como registrou o New York Times, para maquiar o enorme número de vítimas civis, o governo Obama passou a usar o ‘critério’ de que qualquer indivíduo masculino em idade militar vitimado por um ataque de drone passaria a ser considerado ‘combatente’. Um ‘falso positivo’ made in USA.
Carta ao tribunal
Pouco antes da sentença, Hale enviou ao tribunal uma carta manuscrita de 11 páginas, que começa com a citação do almirante americano Gene La Rocque, que disse em 1995 que “agora matamos pessoas sem nunca as ver. Agora você aperta um botão a milhares de quilômetros de distância … Já que é tudo feito por controle remoto, não há remorso”.
Agora com 33 anos, Hale revela viver “com depressão e transtorno de estresse pós-traumático”. “A primeira vez que testemunhei um ataque de drones foi poucos dias depois de minha chegada ao Afeganistão”, contou. “Naquela manhã, antes do amanhecer, um grupo de homens se reuniu nas cordilheiras da província de Patika ao redor de uma fogueira carregando armas e preparando chá. O fato de eles carregarem armas não seria considerado fora do comum no lugar em que cresceram, muito menos dentro dos territórios tribais praticamente sem lei, fora do controle das autoridades afegãs.”
“Exceto que entre eles estava um suspeito membro do Talibã, dado pelo celular visado em seu bolso”, escreveu ele. “Quanto aos indivíduos restantes, estar armados, em idade militar e sentar-se na presença de um suposto combatente inimigo foi evidência suficiente para colocá-los sob suspeita também.”
O destino dos homens que bebiam chá
“Apesar de terem se reunido pacificamente, sem representar nenhuma ameaça, o destino dos homens que agora bebiam chá tinha sido cumprido”, continuou Hale. “Eu só pude ficar sentado olhando através de um monitor de computador quando uma súbita e assustadora rajada de mísseis de fogo do inferno desabou, espirrando vísceras de cristal de cor púrpura na encosta da montanha matinal.”
“Desde aquela época e até hoje, continuo a me lembrar de várias dessas cenas de violência gráfica realizadas no frio conforto de uma cadeira de computador”, escreveu ele. “Não passa um dia sem que eu questione a justificativa para minhas ações. Pelas regras de engajamento, pode ter sido permitido para mim ter ajudado a matar aqueles homens – cuja língua eu não falei, costumes que não entendo, e crimes que eu não pude identificar – da maneira horrível que eu fiz.”
O dia “mais agunstiante”
Na carta, Hale também descreve o que ele chamou de “o dia mais angustiante da minha vida”:
Durante semanas rastreamos os movimentos de uma quadrilha de fabricantes de carros-bomba que moravam nos arredores de Jalalabad … Era uma tarde nublada e ventosa quando um dos suspeitos foi descoberto … Um ataque de
drones era nossa única chance e já havia começado fazendo fila para dar o tiro. Mas o drone Predador menos avançado achou difícil ver através das nuvens e competir contra fortes ventos contrários.
A única carga útil MQ-1 falhou ao se conectar com seu destino, perdendo por alguns metros. O veículo, danificado, mas ainda dirigível, continuou em frente depois de evitar a destruição por pouco.
O motorista parou, saiu do carro e se controlou como se não pudesse acreditar que ainda estava vivo. Do lado do passageiro saiu uma mulher vestindo uma burca inconfundível … E nas costas estavam suas duas filhas, de cinco e três anos … A mais velha foi encontrada morta devido a ferimentos não especificados causados por estilhaços que perfuraram seu corpo. Sua irmã mais nova estava viva, mas gravemente desidratada.
Proteção dos lucros
“Sempre que encontro um indivíduo que pensa que a guerra de drones é justificada e mantém a América segura, lembro-me daquela época e me pergunto como poderia continuar a acreditar que sou uma boa pessoa, que merece minha vida e o direito de buscar a felicidade”, escreveu Hale, que disse ter se tornado “cada vez mais consciente de que a guerra tinha muito pouco a ver com a prevenção do terrorismo de entrar nos Estados Unidos e muito mais a ver com a proteção dos lucros dos fabricantes de armas e dos chamados empreiteiros de defesa.”
“A evidência desse fato foi exposta ao meu redor”, escreveu ele. “Na guerra mais longa ou tecnologicamente avançada da história americana, os mercenários contratados superavam o número de uniformes vestindo soldados de dois para um e ganhavam até dez vezes o seu salário. Enquanto isso, não importava se era, como eu tinha visto, um fazendeiro afegão explodido ao meio, mas milagrosamente consciente e tentando inutilmente arrancar suas entranhas do chão, ou se era um caixão coberto com a bandeira americana baixado no Cemitério Nacional de Arlington ao som de uma saudação de 21 tiros.”
Ao voltar da guerra, como apontou Hale, sua consciência “voltou rugindo à vida”. “No início, tentei ignorar. Desejar, em vez disso, que alguém, em melhor posição do que eu, viesse pegar esta xícara de mim. Mas isso também era loucura.”.
“Deixado decidir se devo agir, só posso fazer o que devo fazer diante de Deus e de minha própria consciência”, concluiu Hale. “Veio-me a resposta, que para parar o ciclo de violência, devo sacrificar a minha própria vida e não a de outra pessoa. Por isso, contatei um repórter investigativo, com quem tinha uma relação anterior estabelecida, e disse-lhe que eu tinha algo que o povo americano precisava saber.”