EUA: 200 mil mortos e Trump diz “não afeta quase ninguém, só idosos”
Os Estados Unidos ultrapassaram na terça-feira (22) a horripilante marca dos 200 mil mortos pela Covid-19, segundo o centro de referência da Universidade Johns Hopkins, enquanto na véspera, em um comício à noite em Swanton, no estado de Ohio, Trump asseverou às suas bases que a pandemia “não afeta praticamente ninguém”, com exceção de “idosos”.
No mesmo dia, em entrevista à Fox News Trump modestamente se deu uma “nota A+” pela forma como lidou com a pandemia, apesar de o país, com 4% da população mundial, ser recordista em mortes e infecções, estas, quase 7 milhões nos EUA. E de, segundo as pesquisas, a opinião pública reprovar em massa sua conduta diante da Covid.
“Nós temos feito um trabalho fenomenal, não apenas um bom trabalho, um trabalho fenomenal, menos em relações públicas, mas isso é por causa das fake news”, asseverou Trump.
A alegação de que “só os idosos morrem” é significativa da retomada da tese da “imunidade de rebanho”, endossada pelo curioso que ele agregou recentemente à comissão nacional anticoronavírus. O que, para muitos, não passa de apologia de genocídio.
O Los Angeles Times voltou recentemente ao assunto em editorial: “Buscar uma estratégia de imunidade coletiva é a noção moralmente repreensível de que pessoas mais velhas e pessoas com doenças crônicas como diabetes e obesidade (condições que afetam um número significativo de americanos) são dispensáveis porque iriam morrer logo de qualquer maneira. Essa é uma ideia que não tem lugar em uma sociedade civilizada.”
Na terça-feira, ativistas do Projeto Memorial Covid colocaram 20 mil bandeirinhas norte-americanas no National Mall em frente à Casa Branca , para simbolizar os 200 mil mortos e não deixar passar em branco a data. Essas vidas – assinalaram – “são mais do que uma estatística – eram famílias, amigos, vizinhos”. Eles denunciaram a perda de vidas como “impressionante”, o que se deve à incúria e obscurantismo de Trump.
No domingo, centenas de ativistas encabeçados por familiares de vítimas da Covid marcharam do Central Park até à Torre Trump em Nova York, para prestar uma homenagem às vidas perdidas para a pandemia e repudiar a falha da Casa Branca em deter uma catástrofe evitável.
“Trump e todos os seus acólitos covardes, todos eles têm sangue nas mãos”, disse Martin Quinn, um ativista que perdeu o pai para o coronavírus. “Não sei de que outra forma canalizar a minha dor senão pressioná-los e ao resto do país para fazerem melhor.”
O dia do triste recorde de mortos também foi o dia em que Trump foi, por vídeo pré-gravado, à tribuna da Assembleia Geral da ONU, para culpar a China e a Organização Mundial da Saúde (OMS) pela pandemia e, de forma racista, chamar o patógeno de “vírus chinês”, na tentativa de esconder seu fracasso e má-fé.
Como registrou o Common Dreams, é “quase uma morte por minuto, de longe o recorde mundial” e com a mais recente minimização da pandemia Trump apenas “chegou ao topo da depravação”, com seu comentário em que só faltou chamar os idosos de “descartáveis”.
“O que já foi o país mais bem preparado, cientificamente avançado e poderoso do mundo registrou quase sete milhões de casos de Covid e mais mortes do que os cinco principais países da União Europeia juntos, com mais de 1.000 americanos morrendo por dia – um número que representa mais de 20% das mortes no mundo em um país que tem apenas 4% da população mundial”, acrescentou o portal.
Em “apenas oito meses”, a Covid se tornou “o quarto maior evento de mortes em massa na história dos EUA, depois da Guerra Civil, da Segunda Guerra Mundial e da pandemia de gripe de 1918”.
Com o agravante – ressalta o portal – de que, de acordo com os especialistas em saúde pública, “pelo menos três quartos dessas mortes seriam evitáveis”, se os EUA tivessem um governo que funcionasse e que se orientasse pela ciência. “É completamente incompreensível que tenhamos chegado a esse ponto”, lamentou-se um cientista.
Os EUA alcançaram os 100 mil mortos da Covid em maio. Dois meses depois, no final de julho, os 150 mil mortos. Agora, em meados de setembro, 200 mil e a caminho de um quarto de milhão – provavelmente no dia da eleição. Recordista mundial, sempre.
Pelas conversas gravadas do jornalista do Watergate, Bob Woodward, com Trump, é sabido que o presidente intencionalmente ocultou a gravidade do coronavírus do público americano na esperança vã de que pudesse simplesmente “desaparecer” a tempo de ser esquecido em novembro – como proclamou várias vezes. Ou, como diz agora, para “não criar pânico”. Não foi por falta de aviso dos cientistas que a coisa desandou do jeito que desandou.
Antes do livro de Woodward, poder-se-ia pensar que o obscurantismo jogou o papel principal nessa trajetória de Trump diante da pandemia, mas agora já se sabe que ele sabia que o coronavírus era mortal, muito mortal, em fevereiro.
O que só torna mais grave suas encenações com a cloroquina, as comparações com uma “gripe comum” que vai embora com o calor da primavera, as exortações a injetar água sanitária nos pulmões dos doentes, a convocação a ‘abrir a economia’ de qualquer jeito, e a recusa a usar máscara facial, entre tantas outras manifestações de sabotagem às normas sociais de minoramento da transmissão do vírus.
Trump sabia, e só se mexeu quando a pilha de corpos em Nova York levou Wall Street ao chão, em março. Depois de socorrida a bolsa, e pago o pedágio aos desempregados e subempregados, Trump fechou a porta a qualquer acordo com os democratas para prover socorro às famílias, à testagem e à saúde, e aos estados e governos municipais, que, com receitas em queda, tiveram de aguentar o central do combate à pandemia, devido ao boicote de Trump.
Como registrou o portal progressista People’sWorld, o ex-parceiro de redação de Woodward, Carl Bernstein, considera a atuação de Trump na pandemia “uma espécie de negligência homicida”.
Não se trata de números, mas das vítimas dessa negligência homicida. “Por trás desses números mórbidos estão os cadáveres de mulheres e homens únicos e individuais e, sim, agora, até mesmo de alguns jovens. Que tinham família, cônjuges, filhos e netos. Pessoas com quem trabalharam, oraram, cantaram e dançaram, compareceram a casamentos e eventos esportivos, compartilharam churrascos e discutiram sobre filmes e política”, enfatiza o portal.
O People’s também comparou a tragédia, sob Trump, com o enfrentamento da pandemia determinado e com base na ciência, adotado pela China, que o presidente tenta tornar em bode expiatório de sua incúria. A China, com 1,4 bilhão de habitantes, conseguiu colocar a Covid “sob controle rapidamente através de medidas universais estritas que mantiveram as pessoas em suas casas, bem alimentadas e cuidadas. Vigilante sobre qualquer nova erupção do vírus, a China lida com isso localmente e de forma eficiente para evitar que se espalhe”.
O número total de mortes de Covid na China – acrescentou – é de 4.724, “aproximadamente 2,5% do número de mortes dos EUA, e tendo uma população que é mais de quatro vezes a dos EUA”.
O impacto dessa tragédia norte-americana na China foi abordado pelo portal Político, que registrou como no equivalente chinês do Twitter, o Weibo, repercutiu a declaração de 29 de março de Trump de que “se tivermos entre 100 mil e 200 mil [mortes], nós teremos feito um trabalho muito bom”.
A hashtag “Trump diz que reduzir o saldo de mortos a 100 mil ‘não é mal’” viralizou, provocando espanto e comentários de que se tal morticínio tivesse sido registrado na China “iam dizer que o país está morrendo”. Alguém comentou – o destaque é do Político – “daqui para a frente a ordem mundial nunca será a mesma”.