Os EUA assinaram em Doha, capital do Qatar, no sábado, acordo com a guerrilha do Talibã em que prometem bater em retirada do Afeganistão em 14 meses, depois de manter o país sob ocupação ilegal por mais de 18 anos – a mais longa guerra da história norte-americana.
A principal contrapartida do Talibã no acordo é impedir que “terroristas” operem no país e “ameacem a segurança dos EUA e seus aliados”.
Ou seja, 18 anos depois, Washington aceita a oferta feita pelo Talibã em 2001 para evitar a guerra.
A assinatura do acordo foi precedida por sete dias de trégua, cumprida a contento pelas partes. A orientação dada pelo Talibã – que controla a maior parte do país – aos seus guerrilheiros foi de que “se abstivessem de qualquer tipo de ataque … pela felicidade da nação”.
O acordo de intenção de retirada foi assinado pelo enviado dos EUA para o Afeganistão, Zalmay Khalilzad, e pelo mulá Abdul Ghani Baradar, pelo Talibã, na presença do secretário de Estado Mike Pompeo.
Acordo no mesmo sentido, fechado em setembro passado, havia sido no último momento rasgado por Trump.
“Um passo adiante”, descreveu o representante do Talibã em Doha, Mohammed Naeem.
Como primeiro gesto concreto para a retirada, os EUA terão que reduzir em cerca de três meses suas tropas dos atuais 13.000 para 8.600. Os mesmos prazos valem para as tropas dos países satélites que participam da intervenção norte-americana.
Também há o compromisso de que cinco mil guerrilheiros do Talibã que estão na prisão sejam libertados – o que ainda depende de aval do regime pró-americano.
Em paralelo, o chefe do Pentágono, Mark Esper, foi a Cabul para dizer às marionetes de Washington que vão ter que arrumar um modo de convivência com a volta ao poder do Talibã.
A notícia boa para eles é que ninguém vai precisar sair no tapa para entrar no último helicóptero norte-americano em fuga da embaixada em Cabul – pelo menos essa seria a ideia.
Em termos de campanha à reeleição, o anúncio do acordo vai permitir que Trump diga que está cumprindo sua promessa de 2016 de “acabar com as guerras sem fim”. A ocupação do Afeganistão era aquela que Obama dizia ser “a boa guerra”.
A Guerra ao Afeganistão foi desencadeada pelo governo de W. Bush no dia 7 de outubro de 2001, como primeiro estágio de sua “Guerra ao Terror”, após o 11 de Setembro, e serviu de degrau para a invasão do Iraque, em busca do controle do petróleo, sob a mentira das “armas de destruição em massa de Sadam”.
É terrível o custo, para o povo afegão, dessa guerra ilegal: mais de 175 mil civis mortos – numa conta subestimada -, centenas de milhares de feridos e milhões de deslocados de suas casas.
Para os EUA, transformou-se em um atoleiro, em que US$ 1 trilhão foram dilapidados. Em baixas, são dezenas de milhares de mutilados por bombas de beira de estrada, um número ainda maior sofrendo de lesões cerebrais traumáticas e 2.400 mortos. Washington iniciou a agressão na condição de “única superpotência” e está encerrando-a numa situação de evidente declínio.
O enviado Khalilzad não era propriamente um estranho no ninho: foi ele que negociou na década de 1990 com o Talibã a construção de um gasoduto para a Unocal, agora Chevron. Depois foi vice-rei do Afeganistão de 2001 a 2005, quando foi deslocado para ser o vice-rei do Iraque sublevado, cargo que deixou em 2007, depois da explosão da Mesquita Dourada, que permitiu jogar xiitas contra sunitas no país.
A partir da guerra no Afeganistão, sob o governo de W. Bush, os EUA desencadearam massacre após massacre, institucionalizaram a tortura, cometeram sequestros para os “locais negros” da CIA, fizeram de Guantánamo a cidadela de sua insanidade, instauraram o regime de terror dos drones assassinos, enquanto seus próprios cidadãos eram submetidos à Lei Patriótica e ao ataque generalizado aos direitos constitucionais.
A invasão também posicionava as tropas norte-americanas estrategicamente próximas ao petróleo do Mar Cáspio e junto à China, mas as coisas não saíram como o planejado, nem mesmo quando Obama apelou para as suas famosas “terças-feiras da morte”.
Se é indispensável a retirada norte-americana para dar chance à paz, nem por isso essa questão será fácil.
O atual regime em Cabul é conhecido pela cleptocracia e vínculos com o tráfico de ópio, que é a maior ‘commodity’ do país, desde a invasão.
Por sua vez o Talibã originou-se do processo de jihadistas – patrocinados pelos serviços secretos dos EUA e Paquistão e pagos pelos sauditas – e em sua folha corrida está o linchamento do presidente afegão Najibullah, que estava abrigado na representação da ONU. Também se caracterizou por enorme discriminação às mulheres, sob uma deformada percepção do Islã. Mas, bem ou mal, foi a força que galvanizou o enfrentamento ao invasor.
A possibilidade de retirada agora aberta pelo acordo dá esperança de que o Afeganistão saia do labirinto terrível em que foi lançado desde que a Operação Ciclone da CIA, cujos mais famosos rebentos são a Al Qaeda e Osama Bin Laden, tomou como alvo a revolução popular no Afeganistão, que estava tirando o país das trevas medievais, apoiada pelos soviéticos.
Entre os marionetes, a confusão está instaurada, desde que o atual presidente Ashraf Ghani foi considerado vencedor da disputa contra o candidato ‘oposicionista’ Abdullah Abdullah – que denuncia fraude e ameaça estabelecer um governo paralelo. O comparecimento à eleição foi de apenas 23%.
Nem todos perderam com a guerra ao Afeganistão: além das gigantes da indústria bélica, com 18 anos de encomendas garantidas e a módicos preços de Pentágono, também variados empreiteiros norte-americanos se locupletaram de forma quase sem precedente: a “reconstrução” custou (em dólares ajustados pela inflação) mais de que o Plano Marshal para a recuperação da Europa Ocidental após a II Guerra. Já o país invadido continua em ruínas e com mais da metade da população vivendo abaixo da linha oficial de pobreza.