A crítica do presidente da Conib, Fernando Lottenberg, se deu diante de alguns absurdos ditos por Bolsonaro

Fracassou a tentativa do embaixador de Israel, Yossi Shelley, de esvaziar o jantar comemorativo da 50ª Convenção da Confederação Israelita do Brasil (Conib) e a própria convenção, dizendo que o presidente da Conib queria “destruir as relações entre Brasil e Israel”, apenas pelo fato da entidade judaica brasileira ter tecido – no início do ano – justas críticas a Bolsonaro.

Em primeiro lugar, além do jantar e da Convenção terem tido ampla participação de lideranças nacionais e das federações israelitas, a atitude do embaixador israelense recebeu o repúdio de diversos rabinos e entidades judaicas.

CRÍTICA A BOLSONARO

A crítica do presidente da Conib, Fernando Lottenberg, se deu diante de alguns absurdos ditos por Bolsonaro que, depois de sair do Museu do Holocausto (o Yad Vashem em Israel), em abril, relativizou o genocídio de judeus na Segunda Guerra Mundial (afirmando que “o nazismo foi um movimento de esquerda” e que “podemos perdoar o Holocausto, mas nunca esquecer”). Na ocasião, Lottenberg foi sucinto e declarou que “o nazismo não foi de esquerda, foi de extrema direita”.

Além dele, o rabino Michel Schlesinger, da Congregação Israelita Paulista e representante da Confederação Israelita do Brasil para o diálogo inter-religioso, referiu-se ao “genocídio de seis milhões de judeus na Segunda Guerra Mundial” deixando claro que “o nazismo foi uma ação da extrema-direita europeia. O Holocausto foi um produto do nazi-fascismo, movimentos da extrema-direita europeia. Dizer que a Shoá [Holocausto] foi criada pela esquerda é falsificar a história”.

Para o embaixador, adepto de uma adesão incondicional a Bolsonaro e no afã de que todos os judeus o acompanhassem nesta sabujice, bastaram essas críticas, justas e formuladas há vários meses, para que ele investisse contra Lottenberg, dizendo: “ele tem uma agenda política própria, fala mal de Bolsonaro e a comunidade judaica não gosta disso”.

Mas a comunidade judaica em peso mostrou que não vê qualquer problema na crítica a Bolsonaro ou a qualquer governante que a mereça. Além do claro menosprezo pelo incitamento do embaixador, com a ampla presença na Convenção, os judeus brasileiros se manifestaram solidários à Conib e a Lottenberg, através de diversos comunicados, posicionamentos, mensagens e e-mails.

Em mensagem à Conib, o rabino Nilton Bonder destacou: “Gostaria de me solidarizar com a Conib e sua liderança, na pessoa de Fernando Lottenberg, diante da tentativa de intromissão e intimidação que sofreu. A Conib exerce um papel fundamental na representação e independência da comunidade judaica no Brasil. Tem hoje uma liderança democrática à altura de sua tarefa e dos tempos difíceis de intolerância tanto no Brasil como no mundo. Antes outras entidades usufruíssem de liderança de igual lucidez, sensibilidade e respeito. A comunidade judaica está unida quando é plural, valor medular de sua tradição. A divisão não advém de múltiplos olhares, mas da tentativa de impor consensos”.

O rabino Michel Schlesinger, da Congregação Israelita Paulista, afirmou: “Assim como praticamos o diálogo inter-religioso, precisamos estar dispostos ao diálogo intra-religioso. A tradição judaica sempre se pautou pela polifonia, pela pluralidade de vozes. Segundo o Midrash (comentários à Bíblia), cada pessoa que estava presente no Monte Sinai ouviu a Torá de uma forma distinta, porque cada pessoa é diferente. As palavras do Fernando Lottenberg na 50ª Convenção Nacional da Conib reforçaram a mensagem de diálogo ao qual a Confederação se tem mantido fiel”.

Para o rabino Yossi Schildkraut, “A Conib é a representante de toda a comunidade judaica brasileira há mais de 70 anos e tem cumprido esse papel com cuidado e responsabilidade”.

O rabino Uri Lam disse: “Todo apoio ao presidente Fernando Lottenberg. A lucidez com que falou no jantar da convenção foi digno dos mais de 70 anos da Conib. Tive orgulho da nossa comunidade. Aplaudi de pé e aplaudo novamente agora. A democracia e a Torá estavam no Salão Marc Chagall da Hebraica São Paulo, em plena diversidade. Incluídas tnuot (movimentos sionistas que ligados aos kibutzim) como Habonim Dror e Hashomer Hatzair. Pena que o embaixador perdeu mais uma oportunidade de celebrar um momento tão judaico…. Não somos uma só voz. Somos uma orquestra, um coro de muitas vozes. ”

A B’nai Brith do Brasil, entidade de mais de 85 anos de serviços à comunidade judaica brasileira, no terreno da luta contra a difamação e o antissemitismo, enviou carta ao embaixador para manifestar sua solidariedade com a Conib.

O IBI (Instituto Brasil-Israel) também manifestou apoio à Conib e a seu presidente, Fernando Lottenberg: “Lamentamos o uso da diplomacia israelense por políticos, deixando de lado o relevante e sólido trabalho da instituição… gerando uma divisão entre as comunidades judaicas da diáspora e a de Israel”.

OBSERVATÓRIO JUDAICO

Também se manifestou o Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil que afirmou repudiar “tentativas de setores de extrema-direita de capturar as entidades representativas da comunidade judaica brasileira”.

O Observatório diz que há, na verdade, uma tentativa de atrelar a comunidade e a imagem de Israel “a um projeto antidemocrático e obscurantista” que “não tem pruridos em apropriar-se de símbolos que são caros aos judeus de todo o mundo”.

O acadêmico e especialista em Oriente Médio, Samuel Feldberg, acrescentou : “Expresso aqui minha solidariedade a Fernando Lottenberg, presidente da Conib, que vem cumprindo com esmero o trabalho de representar a comunidade judaica”.

PRONUNCIAMENTO DE LOTTENBERG

O próprio presidente da Conib, Fernando Lottenberg, fez questão de responder, de forma abrangente, ao embaixador, ressaltando os riscos que o país corre, de ser tomado pela intolerância. Ele defendeu a democracia, a diversidade de pensamentos e a importância e necessidade da crítica, inclusive como valor inerente ao judaísmo.

Vejamos alguns trechos do pronunciamento de Lottenberg no jantar oferecido pela Conib, ao abordar estas questões:

“Temos sido, há séculos, um termômetro do estado da intolerância no mundo. O aumento de ataques a alvos judaicos, o que por si só já é terrível, geralmente precede perseguições, ataques e conflitos mais abrangentes. Somos como o elo fraco da corrente da tolerância e do entendimento, que está prestes a se romper em várias partes do mundo.

“Lideranças judaicas globais têm se esforçado em denunciar e combater essa onda, muitas vezes disfarçadas ou embaralhadas em disputas políticas e sectárias que transcendem a questão religiosa, étnica ou nacional. Mas, infelizmente, muitos ainda não querem ver e não querem ouvir.

“Precisamos seguir firmes nessa linha de defesa do respeito e do entendimento, para o bem-estar de todos.

“E, para que possamos ter força nessa luta incontornável, é necessário que estejamos unidos, dentro de nossa diversidade. E o que pode nos unir se, entre nós, também há pensamentos divergentes, extremos que discordam e não se esforçam para buscar a conciliação?

“Penso que o que pode nos unir, meus amigos, são nossos valores, que desde sempre se fundamentam tanto no espírito comunitário, que nos permitiu resistir e prosperar em meio a dificuldades extremas, quanto na diversidade de opiniões, fonte inesgotável de sabedoria e desenvolvimento.

“Segundo o rabino Jonathan Sacks, a civilização judaica é uma das únicas cujos textos canônicos são antologias de argumentos. Os profetas discutem com Deus; os rabinos discutem entre si. E, onde você encontra argumentos, lá encontrará paixão. Somos um povo com opiniões fortes – faz parte de quem somos. Nossa capacidade de argumentar, nossa grande diversidade cultural, religiosa e de qualquer outra forma, não tem sido uma fraqueza, mas uma força.

“E essa fortaleza, portanto, vem da conjunção de dois fatores aparentemente contraditórios: a coesão comunitária e a diversidade de pensamento. É uma combinação nem sempre fácil, mas sempre necessária.

“Trata-se de um arranjo pelo qual a Conib vem lutando desde sempre, ainda mais nesses tempos de tanta polarização e de promoção do ódio e da intolerância. Mas essa postura de defesa firme e intransigente de nossa diversidade nem sempre é compreendida como tal.

“Como estabelece nosso estatuto, somos uma instituição política, mas também apartidária. E, nesse papel, devemos manter boas relações e diálogo efetivo com todas as vertentes políticas e institucionais do nosso país. Não há como fazer de outro jeito. É isso o que temos feito. Dialogamos – e divergimos, quando necessário – com todos os governos, independentemente de sua orientação política”.

Pela sua importância, publicamos a íntegra do comunicado do Observatório Judaico dos Direitos Humanos No Brasil acerca desta questão:

O Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil (OJDHB) repudia as tentativas de setores de extrema-direita, dentro da comunidade e da diplomacia israelense, de capturar as entidades representativas da comunidade judaica brasileira, em um apoio irrestrito ao governo de Jair Bolsonaro.

 

As entidades judaicas, como a Confederação Israelita do Brasil (Conib) e as Federações Estaduais, têm o papel institucional de representar nossa comunidade, que é plural, multifacetada. Essa tentativa de captura, que começou na campanha eleitoral, visa a atrelar toda uma comunidade e a própria imagem de Israel a um projeto antidemocrático e obscurantista. Um projeto que visa a substituir a participação popular por um messianismo perigoso, que, para legitimar-se, não tem pruridos em apropriar-se de símbolos que são caros aos judeus de todo o mundo.

O OJDHB, entidade apartidária, soma seus esforços àqueles que, dentro da comunidade judaica brasileira, defendem o caráter pluralista de sua representação política. E alinha-se ao combate pela manutenção da democracia do Brasil, hoje ameaçada por um governo manifestamente comprometido com o desrespeito aos direitos de amplas parcelas da população.