No entrechoque de vontades e interesses, a história não é um caminho róseo nem pacífico, como Engels enfatizou ao escrever que “a história é talvez a mais cruel de todas as deusas e conduz seu carro triunfal sobre montes de cadáveres, não somente na guerra, mas também no desenvolvimento econômico ‘pacífico’”. Mas ao fazer este registro, Engels não tirpu conclusões pessimistas – ao contrário de Walter Benjamin (da famosa Escola de Frankfurt) que, algumas décadas depois de Engels, basearia em semelhante argumento uma conclusão fortemente negativista. Benjamin viu o “Angelus Novus” (de Paul Klee), como uma imagem da história, caminhando para frente, perplexo, sobre escombros, empurrado para diante por uma tempestade – que, diz Benjamin, “chamamos progresso” (Benjamin: 1987).

Por José Carlos Ruy*

Ao contrário, Engels rejeita qualquer negativismo para compreender a história; ele responsabiliza a ação humana para a solução dos problemas. Ele prossegue, com palavras severas: “E nós, homens e mulheres, somos infelizmente tão estúpidos que nunca tomamos coragem para empreender o progresso real a menos que sejamos pressionados por sofrimentos que parecem desproporcionados” (Cit in Carr: 1982).

A história é um caminho de conquistas para a humanidade, e de luta intensa e difícil para alcançá-las – este é o ensinamento deixado por Engels.

Não há “consciência”, nem “vontade” na história – elas estão nos homens, seus protagonistas, embora de maneira condicionada pelo desenvolvimento histórico já percorrido.

O esforço para examinar a trilha seguida desde o passado, superar a “estupidez” e tomar coragem para mudar a sociedade – e a história – está na base da busca do progresso capaz de beneficiar a todos.

Alguns anos mais tarde, Lênin mostrou, em plena ação na revolução de 1917, que na época em que a história está constituída como ciência os atores sociais já não são cegos. Em setembro de 1917, ao exigir do partido bolchevique a insurreição, Lênin advertiu: “A história não nos perdoará se não assumirmos o poder agora” (cit. in Kochan: 1968).

Ele alertava para o fato de que não basta a existência de condições objetivas maduras para a revolução e a mudança social; é preciso que exista também a disposição subjetiva para isso pois a história não faz essa tarefa sozinha. Ela não faz nada, como Marx e Engels já haviam advertido: são os homens que devem encontrar o momento certo para agir. E a ciência da história é uma poderosa ferramenta para este diagnóstico, e ação.

Esta ferramenta é o uso dos conceitos, que são reflexos no cérebro, aprimorados pela análise de processos reais e concretos. Na ciência da história são ferramentas indispensáveis de análise. Engels já havia enfatizado a importância dos conceitos na análise do processo histórico ao falar sobre a sociedade medieval europeia. Ele explicou que não se pode compreender a sociedade medieval europeia “sem o conceito de feudalismo muito embora, com a ajuda desse conceito”, sabemos “também que o feudalismo (em sua lógica conceitual) nunca se expressou ‘numa forma clássica completa’, o que é uma outra maneira de dizer que o feudalismo é um conceito heurístico que corresponde a formações sociais mais ricas mas, como acontece com todos esses conceitos, o faz de uma forma claramente purificada e lógica. A definição não nos pode dar o acontecimento real”, escreveu Engels (cit. in Thompson: 1981).

Esta longa citação de Engels indica que a construção conceitual, cerebral, é apenas o resumo que inclui aspectos comuns de objetos semelhantes. O objeto que o conceito descreve nunca existe de forma pura, nem no mundo objetivo nem na mente do estudioso, mas é um guia para orientação no mundo real. Isso impõe a exigência da análise acurada do objeto estudado para que se possa flagrar suas particularidades e especificidades.

O motor da história é a luta de classes; esta é a fornalha onde é queimado o combustível que a move. E só é possível conhecer o que ocorre no mundo concreto através da representação no cérebro do movimento real. Isto é, conceitualmente.

Os conceitos são universais que resultam da operação cerebral que analisa processos reais e concretos. Resultam da abstração que ocorre em toda ciência, sobretudo na ciência social. Marx já havia indicado ao comparar, em “O Capital“, os procedimentos de uma ciência social – a economia política – aos das demais ciências – a abstração e a imaginação fazem parte de toda investigação do mundo real. Nesse esforço de abstração, o trabalho humano – a atividade prática do homem – ocupa um lugar importante e central. Marx e Engels enfatizam que, ontologicamente, o homem fez-se a si mesmo pelo trabalho (Engels: 1974). No trabalho os homens agem coletivamente; é necessária a colaboração de outros homens. Isso leva à compreensão de que somente em comunidade, junto com os demais, cada indivíduo possui “os meios de cultivar seus talentos em todas as direções: só em comunidade, então, é possível a liberdade pessoal” (Marx/Engels: 1973).

Isto é, é somente no contato constante, criativo e produtivo com seus semelhantes que cada pessoa, cada indivíduo, desenvolve plenamente suas potencialidades. Como registra o “Manifesto do Partido Comunista“, “o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos” (Marx/Engels: 1975).

Esta é uma frase que tem amplas consequências para a compreensão da história como ciência. Ela afasta, desde o início dos escritos de Marx e Engels, as ideias burguesas de que há uma competição inata entre os homens, como pretendem Kant e, mais tarde, Freud, a Escola de Frankfurt e outros escritores e ideólogos.

Enfatiza, ao contrário, aquilo que a psicologia moderna, materialista, de Vygotsky e seus colaboradores, indicou: o papel fundamental da cooperação para o desenvolvimento humano. Que está na base da formação da própria consciência humana. Assim, a tese marxista de que o ser social determina a consciência se reflete de maneira decisiva na teoria materialista dialética da história. A divisão entre o campo e a cidade já havia levado a diferentes maneiras de encarar o mundo, com reflexos no desenvolvimento da capacidade mental dos homens.

A divisão entre o trabalho intelectual e o manual, que se acentua na manufatura e na indústria moderna, fazem parte destes fatores que condicionam o desenvolvimento do potencial humano, e fragmentam o tipo humano, que no início era uno, “em vários tipos nas diversas classes sociais”, escreveu Engels (2015).

Segundo ele, as faculdades físicas e espirituais são sacrificadas a partir do momento em que cada ser humano é forçado a se dedicar apenas a uma espécie de atividade. “Todos são mutilados pela educação que os treina para uma certa especialidade, pela escravização vitalícia a esta especialidade, mesmo que esta especialidade seja não fazer absolutamente nada”, como ocorre entre muitas pessoas das classes dominantes (Engels: 2015).

Os acontecimentos históricos resultam do entrechoque entre múltiplas vontades individuais, escreveu Engels numa carta a Joseph Bloch (21/09/1890). Engels explicou que os fatos históricos são o efeito de uma multiplicidade de condições especiais de vida (Engels: 1980), na qual, como Marx pensava, o acaso tem um papel decisivo.

Em uma carta de 1877 Marx desenvolveu essa ideia: “Acontecimentos surpreendentemente semelhantes, mas ocorrendo num cenário histórico diferente, levam a resultados completamente diferentes”. E chama a atenção para o fato de que o reconhecimento do papel do acaso não autoriza nenhum misticismo nem torna a história incompreensível ou inacessível ao conhecimento. Ao contrário, diz, estudando “cada uma dessas evoluções separadamente e então, comparando-as, é fácil encontrar a chave para a compreensão destes fenômenos; mas nunca é possível chegar a esta compreensão usando o passe-partout (chave-mestra) de alguma teoria histórico-filosófica cuja grande virtude é permanecer acima da história” (cit. in Carr, 1982).

Referências

Benjamin, Walter. “Sobre o conceito de história“. In: “Obras escolhidas“, Vol. 1. Brasiliense, São Paulo, 1987

Carr, Edward H.. “Que é história?” Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982

Engels, Friedrich. “Cartas sobre el materialismo histórico”, 1890-1894. Moscou, Editorial Progreso, 1980.

Engels, Friedrich. “Anti-Dühring”. São Paulo, Boitempo, 2015

Engels, Friedrich. “O papel do trabalho na transformação do macaco em homem”. In “Dialética da natureza”. Lisboa, Presença, 1974.

Kochan, Lionel. “Origens da Revolução Russa, 1890-1918“. Rio deJaneiro, Zahar, 1968

Marx, Karl, e Engels, Friedrich. “A Ideologia Alemã” (Introdução). In Marx e Engels. “Obras Escogidas” em tres tomos, Tomo 1. Moscou, Editorial Progreso, 1973

Marx, Karl e Engels, Friedrich. “Manifesto do Partido Comunista“. In “Obras Escogidas“, T. I. Madrid, Editorial Ayuso, 1975

Thompson E. P.”A miséria da teoria – ou um planetário de erros (uma crítica ao pensamento de Althusser)“. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981

Vygotsky, L. S. “A formação social da mente. São Paulo.” Editora Martins Fontes, 1988.

Vygotsky, Lev. “La psique, la conciencia; el inconsciente”. In “Obras Escogidas”,  tomo I. Moscou, Varnitso, 1930.

(PL)