Em minoria, policiais de esquerda são perseguidos pelo bolsonarismo
O clima nos quartéis da Polícia Militar respira a autoritarismo contra os próprios policiais. Não há espaço para o debate sobre direitos humanos ou polícia cidadã. Reportagem recente da BBC News Brasil entrevistou policiais que se opõem publicamente a Bolsonaro e se dizem de esquerda. Eles relataram receber ligações com ameaças anônimas, hostilidade cotidiana de colegas e ‘punições veladas’ dentro das corporações. O assassinato do guarda civil petista Marcelo Arruda por um colega bolsonarista, em Foz do Iguaçu, também evidenciou essa escalada de violência política.
O portal entrevistou especialistas que analisaram o clima de polarização política entre os policiais, estimulada pelo governo Bolsonaro. Baseado na legislação vigente, o ouvidor das das Polícias de São Paulo, Elizeu Soares Lopes, critica esse ambiente de estímulo a que uns policiais possam defender seu candidato, enquanto outros são punidos pelo mesmo motivo. O investigador Denilson Campos Neves, um dos coordenadores nacionais do movimento Policiais Antifascismo, defende o direito dos policiais se manifestarem politicamente, desde que desinvestidos de sua farda e armas. O cientista político e especialista em Segurança Pública, Luis Eduardo Soares, por sua vez, critica a manutenção nas polícias de uma estrutura herdada da ditadura militar.
Direito trabalhista
Há segmentos na corporação que defendem o direito dos policiais se manifestarem politicamente como cidadãos e trabalhadores. É o caso do investigador Neves. Para ele, desde que não esteja fardado, armado e falando em nome da instituição, todo policial deve poder participar de manifestações em defesa de seus direitos sociais, como qualquer outro trabalhador. A maioria das punições relatadas contra policiais de esquerda foram por causa de manifestações privadas em redes sociais.
A mesma postura dos policiais antifascistas têm os entrevistados pela BBC: o major Marcelo Ronaldson Nascimento Costa, de Alagoas, o soldado Ederson de Oliveira Rodrigues, da Brigada Militar de Pelotas (RS) e o cabo reformado da PM de Imperatriz (MA), Moreno Sérgio Lima. Todos fizeram questão de expor suas posições críticas a Bolsonaro, assim como relataram as agressões verbais por colegas, ataques nas redes sociais, ‘punições veladas’ dentro das corporações e abertura de investigações internas com, segundo eles, “dois pesos e duas medidas”.
Há relatos de punições como transferências para postos distantes de suas residências ou inquérito penal militar por “quebra de hierarquia” ou “difamação” contra o presidente da República.
A expectativa dos policiais era que Bolsonaro representasse a valorização do policial militar e penas mais severas para criminosos. Mas as condições salariais e de progressão de carreira para os soldados continuam se deteriorando. No Rio Grande do Sul, Rodrigues se mobiliza para conscientizar os colegas de que várias reformas administrativas foram abertamente orientadas a governadores pelo próprio ministro da Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes.
Houve o fim da “verticalidade” em 2020, que garantia aumentos proporcionais às patentes mais baixas da PM, sempre que coronéis recebessem incrementos salariais. A Reforma da Previdência permitiu que os governadores instituíssem alíquotas de contribuição previdenciária de policiais militares. Antes, eles não sofriam o desconto.
Neves explica que a cultura militarizada e fascista dentro da corporação é tão “religiosa” e “dogmática”, que mesmo Bolsonaro ferindo o policial em seus direitos, eles encontram justificativa para continuar o apoiando. “Preferem atribuir ao governo passado, a outros atores, ao processo de contradição da luta. Uma cegueira de seita”, explicou.
Ambiente envenenado
O major Costa se tornou alvo de um inquérito penal militar por convidar, em seu aplicativo de mensagens, pessoas para um protesto contra Bolsonaro. Ele passou a responder por difamação e calúnia contra o presidente Bolsonaro e por desobediência, depois que vazaram suas conversas.
O cabo Moreno foi preso por alguns dias por “desacato à hierarquia” e passou a responder a um inquérito penal militar, depois de criticar práticas da corporação. Ele também foi alvo de punições como transferência para um posto a 200 km de sua casa, após comentário que desagradou.
A hostilidade dirigida a eles também revela o preconceito corporativo contra o pensamento de esquerda. A opinião corrente é de que militantes e políticos de esquerda são “pró-bandido” e contra a polícia, o que tornaria o policial de esquerda um traidor.
O sociólogo Luis Eduardo Soares explica que a polarização nas polícias é a mesma observada na sociedade, mas com um agravante. “A transição democrática não se estendeu às instituições da segurança pública. As culturas corporativas gestadas na ditadura (por sua vez herdeiras de toda uma história de racismo estrutural, patriarcalismo e exploração de classe) foram preservadas e continuam sendo dominantes nas polícias”, analisa.
O investigador Neves, por sua vez, acredita que a instituição policial tem um caráter fascistizante, desde muito antes. “A história da instituição policial mostra que ela é forjada como sustentáculo e ninho do ovo da serpente, desde o início do século XX, ainda antes do surgimento do fascismo”.
Em sua opinião, o autoritarismo contra o senso crítico “é um ambiente fértil para o fascismo”. “Policiais que se contraponham a isso são mal vistos e punidos. Da mesma forma que os policiais do grupamento bolsonarista vão ser agraciados pela instituição por repetirem e reproduzirem a cultura existente na polícia”.
O policial nota um “processo de alienação e ganhos de mentes muito profundos”, conforme os soldados oprimidos justificam sua opressão. O sociólogo complementa esta constatação dizendo que a lógica autoritária dominante faz com que os policiais sejam bolsonaristas “avant la léttre”, ou seja, antes mesmo de Bolsonaro existir como liderança.
“Quando surge Bolsonaro no cenário, ele encarna tais valores e os inscreve na política. Portanto, se o fascismo bolsonarista se conectou ao pior da tradição brasileira (do integralismo ao ultra-neo-conservadorismo), nas polícias o mesmo processo se deu, com mais intensidade”, analisou Soares.
Atentado ao estado de direito
O ouvidor Elizeu Lopes afirmou que o exemplo do governo Bolsonaro “que tenta polarizar e trazer policiais para atividade política, é mais uma anomalia desse governo, que atenta contra o estado de Direito”.
“Quem tem a primazia do estado de carregar armas, não pode fazer nem participar de atividades políticas”, afirmou, reafirmando a legislação sobre o assunto.
Segundo Lopes, um governo do campo democrático e popular não deve incentivar, nem apoiar participação política nas carreiras de Polícia, tendo em vista suas missões institucionais. Desta forma, as manifestações bolsonaristas feitas por policiais fardados, também deveriam ser desestimuladas.
Ele explica que as polícias, na investidura de seus cargos, não devem participar de atividades políticas, sobretudo em manifestações. A lei proíbe a todos, sejam quais forem suas preferências partidárias e ideológicas, conforme explica ele.
“São carreiras de estado que, inclusive, são chamadas a assegurar nas sociedades democráticas o direito de livre manifestação, tal qual preconiza a Constituição. A algumas carreiras de estado, em função de suas singularidades, há que se coibir manifestações, como juízes, Ministério Público e Forças Armadas, por exemplo”, completou.
Por Cezar Xavier