Ellsberg disse ao tribunal em Londres que sua batalha em 1971 é a mesma de Assange: a luta pela verdade | Foto: Arquivo Robert Wallis/Corbis

Daniel Ellsberg – mundialmente conhecido por ter vazado em 1971 os Papéis do Pentágono, que expunham os crimes dos EUA no Vietnã e as mentiras sobre a guerra -, hoje com 89 anos, declarou a identidade entre o que ele fizera na época e as denúncias agora do WikiLeaks, perante o tribunal britânico que examina o pedido do regime Trump de extradição do jornalista Julian Assange.

Ellsberg enfatizou que o que o governo dos EUA busca com a extradição é “vingança contra o fundador do WikiLeaks”, “esmagar a exposição da verdade” e impedir o surgimento de novos denunciantes.

O julgamento do pedido de extradição do governo Trump contra Assange entrou pela segunda semana, e o testemunho de Ellsberg aconteceu na quarta-feira (16). O julgamento vem sendo marcado pela tendenciosidade, com a juíza Vanessa Baraitser negando o adiamento, depois de Assange ficar sem contato com os advogados por seis meses sob justificativa da pandemia, e após o tribunal ter aceitado que os EUA mudassem, fora de prazo, a acusação apresentada contra o jornalista, depois que a defesa já havia apresentado sua argumentação.

Como Assange, Ellsberg foi demonizado nos EUA depois que vazou os Papeis do Pentágono, que o New York Times publicou, e foi acusado criminalmente pelo governo Nixon de roubo e conspiração sob a Lei de Espionagem.

Encomendados pelo secretário de Defesa Robert McNamara no auge da Guerra do Vietnã, os documentos secretos detalhavam o envolvimento dos EUA no Vietnã de 1945 a 1967, incluindo a escalada secreta da guerra no Laos e no Camboja, e revelavam que o governo “mentiu sistematicamente” para o público e para o Congresso. O processo contra Ellsberg foi encerrado após a revelação de que o governo Nixon havia tentado roubar as anotações de seu psiquiatra e grampeado suas conversas.

Ellsberg disse ao tribunal que as “semelhanças mais próximas” entre os casos dele e de Assange incluem a maneira pela qual “a exposição de ilegalidades e atos criminosos, institucional e por indivíduos, pretendia ser reprimida pelo governo que executava essas ilegalidades.”

Ele acrescentou que isso é “em parte uma vingança” pela revelação de crimes, bem como uma tentativa de “esmagar toda a exposição futura da verdade”. “Tenho observado de perto as ações do governo dos EUA, seus militares e sua agência de inteligência, a CIA, e que as ações em questão nunca tiveram a intenção de serem reveladas, incluindo sequestro e tortura, o uso de ‘locais negros’ e crimes contra a humanidade”, enfatizou Ellsberg.

Aqueles que apresentaram denúncias “foram e continuam sendo ameaçados e criminalizados”, assinalou Ellsberg, em provável referência a outros alvos de sucessivos governos norte-americanos, incluindo Edward Snowden, Chelsea Manning e John Kiriakou. “Muito freqüentemente a alegação de ‘segurança nacional’ foi levantada para ocultar a ilegalidade e o engano, muitas vezes em grande escala”, acrescentou.

Sobre o papel que os vazamentos do WikiLeaks cumpriram, Ellsberg disse que ficara claro para ele que essas revelações, como os Papeis do Pentágono, “tinham a capacidade de informar ao público que eles haviam sido seriamente enganados sobre a natureza da guerra [Iraque e Afeganistão], o progresso da guerra, a probabilidade de que seria encerrada com sucesso ou de todo, informação da mais alta importância para o público americano.”

Com os vazamentos do WikiLeaks, destacou Ellsberg, “a guerra do Iraque ficou claramente reconhecível, mesmo para um leigo, como um crime contra a paz, como uma guerra de agressão”. “A guerra do Afeganistão foi imediatamente reconhecível como o que poderia ser chamado de ‘vietnamita’. Foi uma repetição da guerra do Vietnã, apesar das grandes diferenças de terreno, religião, idioma”.

Como o mais notável denunciante dos anos 1970 registrou, a guerra do Afeganistão tinha a mesma natureza básica da do Vietnã: “invasão e ocupação de um país estrangeiro contra a vontade da maioria de seus habitantes, era a mesma coisa”.

E isso – acrescentou – significava que as perspectivas eram “essencialmente as mesmas, um impasse sem fim que já vivemos no Afeganistão há 19 anos”. “E poderia ter durado tanto tempo no Vietnã se as verdades que o governo estava tentando ocultar não fossem tornadas públicas.”

Com as denúncias do WikiLeaks, destacou Ellsberg, “eu vi pela primeira vez em quase quarenta anos … desde os papéis do Pentágono, o lançamento de uma quantidade suficiente de documentação para fazer muito evidente padrões de tomada de decisão [na guerra], para mostrar que havia políticas em ação e não apenas incidentes aberrantes.”

Os documentos trazidos à luz por Assange haviam exposto “um padrão muito sério de crimes de guerra reais”, ressaltou. “No caso do Afeganistão, os relatos de tortura, assassinato e esquadrões da morte descreviam claramente crimes de guerra. Eu teria, aliás, ficado surpreso ao ver tais relatórios em comunicações de nível secreto [em oposição a Altamente Secreto] em 1971 ou 1964 no Pentágono. Eles teriam tido classificação muito mais alta”.

Para Ellsberg, o que esses relatórios revelaram foi que “nos anos que se passaram, na Guerra do Iraque e na Guerra do Afeganistão, a tortura se tornou tão normalizada, e os esquadrões da morte e assassinatos, que relatórios sobre eles poderiam ser confiados a uma rede em nível secreto disponível para … pessoas de baixo nível.”

Sobre o famoso vídeo “Assassinato Colateral”, que mostra helicópteros dos EUA, sob orientação do comando, caçando civis desarmados em Bagdá, rindo enquanto massacravam, Ellsberg disse que ficara feliz com que o público americano fosse confrontado com a realidade da guerra do Iraque: “Estávamos assistindo alguém perseguir com sua metralhadora um homem desarmado, ferido, rastejando em busca de segurança”.

No caso do “Assassinato Colateral”, trata-se de um crime de guerra, registrado e ocultado pelo próprio Pentágono, e que segue impune, enquanto quem denunciou o massacre de civis desarmados, inclusive dois jornalistas, está sendo perseguido e ameaçado com 175 anos de prisão.

Fato que força a acusação a tentar distanciar o caso Assange o máximo possível da exposição de crimes de guerra e a alegar que não é uma perseguição política ao denunciante. O promotor que atua por Washington, James Lewis, disse a Ellsberg em sua interpelação que Assange “não está sendo processado por publicar na Internet o vídeo de ‘Assassinato Colateral’”, mas por hackear computadores, roubar informações e expor agentes norte-americanos. Caracterização que Ellsberg considerou “cínica”.

Quanto à tentativa da promotoria de aportar que Assange não tinha “motivações políticas relevantes”, foi rebatida como “extraordinária e absurda”. No início de seu depoimento, Ellsberg se referira ao próprio tratamento antidemocrático a que fora sujeito nas mãos do sistema jurídico norte-americano, o que agora se repete com Assange.

Ele lembrou como no seu julgamento sob a Lei de Espionagem – a mesma acionada contra Assange -, seu advogado foi impedido de lhe perguntar por que ele copiara e vazara os Papeis do Pentágono, porque seria “irrelevante”.

“Acontece que todos os casos desde então, dois antes do presidente Obama, nove sob Obama, foram sujeitos a esta mesma interpretação da Lei de Espionagem … a noção de motivo ou contexto é irrelevante”, assinalou Ellsberg

Como explicitou o idoso denunciante, tal lei é “absolutamente inapropriada para ser usada contra denúncias, onde o próprio propósito e contexto do ato é informar o público para o bem da política … O significado disso é que eu não tive um julgamento justo … ninguém já teve um julgamento justo sob essas acusações”. Ellsberg acrescentou que Assange não terá “um julgamento remotamente justo”.

1971 OU 2020: SEM DIFERENÇA

O veterano combatente pela paz traçou um paralelo entre a perseguição que sofreu e a atual, contra Assange. “Não vejo diferença entre as acusações feitas contra Assange e contra mim [sob a Lei de Espionagem], e nenhuma diferença em relação aos atos ilegais praticados – vigilância que, no meu caso, envolveu escuta telefônica e esforços para me incapacitar e, pelo que entendi, no caso de Assange envolveu escuta telefônica ilegal de suas comunicações com seus advogados.”

Reiterando a identificação dele com a atuação de Assange, Ellsberg disse que ambos compartilhavam “um grande desacordo não apenas com o governo atual, mas com todos os governos anteriores recentes dos EUA”, “pela falta de transparência na tomada de decisões”, por serem “falsas” muitas das declarações ao público sobre a natureza da guerra e as perspectivas de sucesso, e por discordância do que estava sendo feito “em nosso nome” e pela falta de democracia efetiva.

Quando o promotor tentou usar as ações de Ellsberg na época para argumentar contra Assange, foi prontamente contestado.

“Nos quarenta anos desde o fim dos Papeis do Pentágono, fui submetido a muitos comentários difamatórios por parte de algumas pessoas e, em seguida, a um longo período de negligência pela mídia e, de repente, com os documentos de Manning e Assange, descobri que meu nome era mencionado o tempo todo como uma pessoa muito boa … para me usar como um contrapeso contra essas novas revelações que eram supostamente muito diferentes das minhas … Eu discordo totalmente da teoria do ‘bom Ellsberg-mau Assange’.”

Ellsberg também corrigiu alegação do promotor de que teria optado por não lançar quatro volumes dos Papeis do Pentágono porque não queria “prejudicar os interesses dos EUA”. Ele explicou que os quatro volumes se referiam às negociações em curso entre os EUA e o Vietnã, e não os reteve, não para ocultar nomes, para evitar o vazamento fosse usado por Washington como pretexto para o fracasso das negociações ou mesmo para interrompê-las. “Como me lembro de dizer na época: ‘Quero atrapalhar a guerra, não quero atrapalhar as negociações.’”

A alegação do promotor de que a divulgação de documentos não editados pelo WikiLeaks havia causado danos diretos aos indivíduos identificados – questão que o Pentágono não conseguiu sustentar contra Manning – foi rebatida por Ellsberg como “cínica”. “Estou certo em acreditar que ninguém realmente sofreu danos físicos. É a resposta, não é?”

Após esse entrevero entre Ellsberg e Lewis, Assange se levantou e denunciou ao tribunal que “por meio de truques retóricos, a promotoria está sugerindo que eu coloquei vidas em risco. Precisa ser corrigido imediatamente. O dano para mim será irreparável.” Como em vezes anteriores, a juíza Baraitser mandou silenciá-lo e o link de vídeo para jornalistas e observadores foi cortado abruptamente e só religado dez minutos depois.

O julgamento de Assange e do jornalismo vem sendo acompanhado no mundo inteiro, apesar das tentativas da justiça britânica para dificultar a divulgação do que acontece no tribunal. Assange é mantido há mais de um ano no presídio de segurança máxima de Belmarsh, mais conhecido como a Guantánamo britânica.

Em 2010, Assange, junto com alguns dos maiores jornais do mundo, divulgou centenas de milhares de documentos do Pentágono com os crimes de guerra dos EUA no Iraque e no Afeganistão, a corrupção do Departamento de Estado e o manual da tortura em Guantánamo.

Para silenciá-lo, como parte de uma campanha de assassinato de reputação Washington fabricou contra ele uma acusação falsa de estupro na Suécia e acionou os governos sueco e britânico para uma cruzada judicial contra o jornalista. Chegaram a cogitar calá-lo com um drone.

Assange teve de pedir asilo político na embaixada do Equador em Londres para escapar de ser extraditado para os EUA. Em 2017, o novo governo de Quito se amoldou às ordens da Casa Branca, passou a persegui-lo dentro da própria embaixada e acabou por entregá-lo à polícia inglesa em 2019. Já o esperavam uma condenação de 50 semanas de prisão e o pedido do governo Trump de extradição.

O Relator da ONU sobre Tortura, Niels Melzer, que investigou o caso, comprovou a fraude judicial contra Assange e que ele apresentava todos os sintomas de tortura psicológica, sob os Protocolos de Istambul.

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