E-mails do Dr. Fauci foram tirados do contexto afirma site que reúne 33 veículos de imprensa

Checagem realizada pelo Comprova, coalizão de jornalistas de 33 veículos de imprensa que investiga a veracidade de publicações nas redes sociais, mostrou que o site Politz “tira do contexto e-mails de Anthony Fauci sobre máscaras e origem do coronavírus”.

Diante dessa constatação, fica a pergunta no ar: e por que tiraria do contexto? Uma resposta simples, como registra, ao final quase da análise, o pessoal do Comprova: o site Politz fez uso dos e-mails do Dr. Fauci para chegar à conclusão de que, no combate à pandemia, “quem realmente estava certo, na verdade, era o próprio presidente Jair Bolsonaro e o presidente Donald Trump”.

Renomado epidemiologista que serviu a governos democratas e republicanos, coube ao Dr. Fauci a difícil tarefa de ser a figura central, do ponto de vista científico, no combate à pandemia nos EUA, sob o governo Trump.

Já o Politz se descreve como a “primeira e única” comunidade brasileira que oferece um espaço “totalmente seguro, livre de censuras ou perseguições ideológicas”.

O mui isento site classifica Fauci de “rei dos lockdowns intermináveis e das máscaras” – aliás, “focinheiras”, segundo o texto. Assim, os ‘e-mails de Fauci’ colocariam, segundo o site, “todas as políticas tomadas praticamente no mundo inteiro [contra a pandemia] em cheque”.

Essa checagem é muito importante também porque os “e-mails do Dr. Fauci” passaram a ser usados especialmente nos Estados Unidos para aparentar que há algum fundamento no requentamento, no Wall Street Journal, da teoria do “vazamento factível do laboratório de Wuhan” e posterior anúncio, pelo governo Biden, do prazo de “90 dias” para a CIA apresentar seu ‘parecer’ sobre a “origem do vírus”.

Para dar ar de veracidade ao “vazamento factível do vírus”, nada melhor do que difamar os cientistas, a começar pelo Dr. Fauci, e inclusive tentando insinuar que ele mentira à população sobre o uso das máscaras. Se o cidadão mente sobre as máscaras, pode mentir sobre tudo, e o conto do “vazamento do vírus” encaixa melhor.

No caso, o Comprova apenas cita a medida anunciada pelo governo Biden.

Checagem

O Comprova procedeu à verificação se, como o referido site assevera, o Dr. Fauci teria dito nos e-mails que vieram a público que o novo coronavírus “aparenta ser fruto de engenharia genética e que máscaras são inúteis”, conteúdo reproduzido no Facebook e no Twitter. Jornalistas da Folha de São Paulo, do Estadão e de A Gazeta participaram do escrutínio. Após consulta ao The Washington Post e ao portal Buzzfeed, o Comprova obteve um documento com todos os e-mails do infectologista, entre janeiro e junho de 2020.

A questão das máscaras, no caso, é secundária, apesar de muito importante, especialmente nos EUA, onde o uso ou não uso da máscara se tornou quase um símbolo de filiação partidária.

Mas vamos direto à questão se os e-mails mostrariam ou não que o coronavírus que causa a Covid foi ‘manipulado em laboratório’, aspecto chave da teoria do ‘vazamento factível do Wuhan Lab’.

O e-mail citado pelo Politz foi reproduzido em muitos sites no mundo inteiro: é uma mensagem do pesquisador Kristian Andersen, do laboratório Scripps Research, da Califórnia, enviada a Fauci no início de fevereiro de 2020, em que dizia que o SARS-CoV-2 parecia “(potencialmente) manipulado”, acrescentando que essa opinião se baseava em análises muito preliminares.

Posteriormente, o cientista estudou a sequência genética do novo coronavírus de maneira mais detalhada e concluiu em artigo publicado na Nature Medicine em março de 2020 que o patógeno “não é um produto de laboratório ou um vírus manipulado propositalmente”.

Ou seja, o cientista que levantou esse questionamento em fevereiro do ano passado, um mês depois, após análise extensa da seqüência genética do novo coronavírus, descartou tal hipótese através de uma publicação científica renomada.

Um ano depois, isso é manipulado, sem o menor escrúpulo, como se a conclusão final de Andersen, um mês depois do e-mail citado e através de publicação em revista científica, não existisse.

Andersen e o método científico

Está excelente a investigação realizada pelo Comprova. Na troca de e-mails de fevereiro, Andersen discute texto da revista Science sobre a busca da origem do vírus (página 3.187 dos ‘e-mails’). Ele ressalta que em sua pesquisa ainda não conseguiu entender estruturas únicas do novo coronavírus. Ele diz que algumas das características “parecem (potencialmente) manipuladas”.

Escrevendo na sexta-feira, o cientista adiciona que deve obter mais respostas no final da semana e não descarta que após outras análises a opinião possa “mudar”.

É o que acontece. Em 17 de março de 2020, Andersen e outros pesquisadores publicaram um artigo científico na revista Nature Medicine. Nele, dizem que “nossa análise claramente mostra que o SARS-CoV-2 não é um produto de laboratório ou um vírus manipulado propositalmente”.

A conclusão corroborada em outras pesquisas publicadas em revistas científicas de renome, como a Cell e Nature Microbiology. Como Andersen postou posteriormente no Twitter sobre o e-mail a Fauci, “a reflexão inicial é apenas parte do processo científico”.

O pesquisador escreveu que algumas características incomuns do vírus, como o sítio de clivagem por furina (uma estrutura que torna o patógeno mais transmissível), o levaram a crer que o vírus tivesse sido manipulado.

Mas – ressaltou – análises posteriores “não confirmaram” essa hipótese. Andersen lembrou que, na época do e-mail, a equipe de pesquisadores ainda não tinha acesso ao genoma do RaTG13 — um vírus encontrado em morcegos que se descobriu ser muito similar ao SARS-CoV-2.

“Após nossa análise preliminar, fizemos investigações mais extensas, tanto no genoma do RaTG13 quanto de outros coronavírus, para comparar de forma mais ampla a diversidade genética da família de coronavírus”, escreveu ele no Twitter.

O pesquisador acrescentou que a equipe examinou a literatura do Instituto de Virologia de Wuhan – localizado na cidade chinesa onde foram registrados os primeiros casos de covid-19 -, buscando por vírus que pudessem ser parecidos com o SARS-CoV-2.

Segundo Andersen, foram consideradas as possibilidades de emergência natural, manipulação genética e escape de laboratório. “Muitas das análises foram completadas em questão de dias, e nos permitiram rejeitar rapidamente a hipótese preliminar de que o vírus tinha sido manipulado”, disse ele.

‘Exemplo clássico’ de como faz a ciência

“Este é um exemplo clássico do método científico, em que uma hipótese preliminar é descartada em favor de outra hipótese, à medida em que mais dados ficam disponíveis e análises são finalizadas”, enfatizou.

Assim, as evidências científicas disponíveis até o momento apontam que o cenário mais viável é que o novo coronavírus tenha origem natural – morcegos são apontados como o repositório mais provável.

Um relatório publicado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em fevereiro de 2021, após expedição à China, não chegou a considerar a hipótese de criação artificial e indicou que a possibilidade de o vírus ter escapado de um laboratório era “extremamente improvável”.

Ainda sobre essa questão, o Comprova registra que o diretor da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, disse que era preciso “investigar mais” as origens, e a carta de 18 cientistas, na Science.

O Comprova também examinou a afirmação do site Politz de que a troca de e-mails entre o zoologo Peter Dazak e o Dr. Fauci seria a prova da existência de “encobrimento” da verdadeira origem do SARS-CoV-2 e destaca que “não há qualquer evidência disso”.

Daszak, presidente da organização EcoHealth Alliance, que se dedica a pesquisar a emergência de doenças virais, enviou a Fauci um e-mail para agradecê-lo pelas declarações públicas a respeito da origem do coronavírus — em que este sustentou diversas vezes que o SARS-CoV-2 surgiu na natureza, embora haja recentemente admitido que a teoria de escape de laboratório deva continuar a ser investigada.

Fauci responde a Daszak: “Peter, muito obrigado por sua gentil mensagem” (página 1.150 do documento). Os dois se corresponderam apenas uma vez no período divulgado pelo Buzzfeed.

Consulta a outros e-mails daquele período mostra que também há vários remetentes que defendem junto ao Dr. Fauci as teorias de vazamento laboratorial do vírus, comunicações absolutamente normais tendo em vista o papel do cientista diante da pandemia, como referência científica da própria Comissão antipandemia da Casa Branca.

Intercâmbio normal

Peter Daszak tem sido questionado nas redes sociais por sua pesquisa anterior com o Instituto de Virologia de Wuhan. Parte dos estudos foi financiada pelo órgão governamental norte-americano Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (NIAID), dirigido por Fauci.

Esse procedimento de intercâmbio entre cientistas de diferentes países é absolutamente rotineiro em praticamente todos os ramos da ciência, e também na biologia. No caso de Daszak, o objetivo era analisar coronavírus surgidos em morcegos — animal do qual emergiu a SARS em 2003 e de onde cientistas indicam como repositório provável do SARS-CoV-2.

Nas redes sociais, tem se espalhado a teoria de que esses estudos da EcoHealth Alliance incluíram uso de técnicas de “ganho de função”, o que poderia ser um indício de manipulação artificial do SARS-CoV-2. “Ganho de função” é um termo que descreve um tipo de pesquisa polêmica, em que cientistas modificam geneticamente patógenos para torná-los mais perigosos, ou mais transmissíveis. O objetivo é prever como os vírus podem se comportar. Como registrou Comprova, tanto o NIAID quanto a EcoHealth Alliance “negam ter feito experimentos desse tipo”.

No início de maio, Fauci chamou a alegação de financiamento a pesquisas de ganho de função de “absurda”. Em audiência no Senado americano em 26 de maio, Fauci voltou a negar que o NIAID tenha concedido bolsa para estudos desse tipo com coronavírus de morcegos. O senador republicano John Kennedy perguntou ao infectologista se os cientistas que ganharam o financiamento poderiam ter mentido para ele. Fauci respondeu “nunca se sabe”, mas acrescentou que acredita que os pesquisadores são confiáveis e atenderam à delimitação da bolsa.

Em fevereiro, o site de fact-checking americano Politifact apurou que, em 2014, o NIAID concedeu uma bolsa de US$ 3,4 milhões à EcoHealth Alliance. A organização firmou uma parceria com o laboratório chinês para fazer análises genéticas de coronavírus originados em morcegos em Yunnan, outra região da China. Segundo Fauci, US$ 600 mil foram destinados ao Instituto de Virologia de Wuhan por meio dessa pesquisa.

O que o Politifact mostrou ali é que, apesar de ter existido uma bolsa de financiamento do governo americano ao laboratório chinês, não há provas de que os pesquisadores fizeram experimentos de ganho de função em coronavírus de morcegos.

Sem ‘ganho de função’

“A pesquisa apoiada pela concessão da EcoHealth Alliance Inc. caracterizou a função das proteínas spike de morcegos recentemente descobertas e de patógenos de ocorrência natural e não envolveu o aumento da patogenicidade ou transmissibilidade dos vírus estudados”, disse a assessoria dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH), órgão no qual o NIAID está inserido, em nota ao Politifact, registrou Comprova.

O site de checagem norte-americano aponta ainda que, em outubro de 2014, o governo de Barack Obama decidiu suspender o financiamento de experimentos de ganho de função. Diante disso, o NIH analisou o projeto de pesquisa da EcoHealth Alliance e determinou que não envolvia o melhoramento de vírus.

O Politifact pediu ainda que um biólogo do Instituto de Tecnologia do Massachussetts (MIT) revisasse um estudo publicado por meio da bolsa concedida à EcoHealth Alliance e ao Instituto de Virologia de Wuhan. O cientista Kevin Esvelt disse ter identificado componentes similares à definição de ganho de função na pesquisa, mas afirmou que o

estudo “definitivamente NÃO levou à criação do SARS-CoV-2”, já que a sequência genética do vírus analisado era muito diferente da do agente que causa a covid-19.

Revisado e aprovado

Em outro e-mail de Fauci (página 3.206), o vice-diretor do NIAID, Hugh Auchincloss, diz que outra pesquisa com coronavírus de morcegos, de 2015, foi realizada antes da pausa determinada pelo governo Obama a experimentos de ganho de função. Depois da determinação governamental, o projeto foi “revisado e aprovado pelo NIH”, reiterou.

Auchincloss cita ainda que Emily Erbelding, diretora da divisão de Microbiologia do NIAID, não tinha encontrado nenhuma pesquisa relacionada a coronavírus com ganho de função financiada pela instituição.

Sobre o e-mail de agradecimento a Daszak, em entrevista à CNN o Dr. Fauci disse que não é possível tirar conclusões sobre a relação entre os dois apenas pela troca de mensagens. O infectologista ressaltou que ainda acredita que a origem mais provável do novo coronavírus é animal. “Mantenho a mente completamente aberta quanto a talvez ter outras origens, talvez ter outra razão, poder ser um vazamento de um laboratório”, disse ele. “Acho que se você olhar historicamente, o que ocorre na interface entre humanos e animais é que é mais provável que o vírus tenha pulado de uma espécie a outra”.

“Você pode distorcer como quiser”, continuou Fauci. “O e-mail foi de uma pessoa agradecendo ao que quer que ele acha que eu disse, e eu disse que a origem mais provável do coronavírus é por meio de um salto entre espécies. Eu ainda acho que é, ao mesmo tempo mantenho a mente aberta sobre a possibilidade de um vazamento”.

Cientistas brasileiros

O Comprova também teve o cuidado de consultar vários cientistas brasileiros sobre as questões abordadas no site Politz.

A virologista Giliane Trindade, professora do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (ICB/UFMG), explicou que Daszak “é um proeminente nome do campo de ecologia de doenças emergentes. Ou seja: ele já participava de várias pesquisas sobre animais que são reservatórios virais, como os morcegos. Que o cientista fizesse estudos na China não é um sinal de conspiração; apenas quer dizer que o país asiático tem alta população de morcegos e era um cenário favorável para a interação desses animais com seres humanos — tendo em vista a existência de mercados de carnes exóticas como o de Wuhan”.

“Ele faz estudos justamente em locais de risco do planeta, onde esses vírus que estão em animais podem chegar a humanos”, diz Giliane. “Existem vários trabalhos pregressos que mostram a emergência de coronavírus na China. E não só de pesquisadores chineses. Ecologicamente, faz todo o sentido que o SARS-CoV-2 surgisse lá, de onde também veio o SARS. Por isso, intensificaram a pesquisa na região”.

“A maior parte dos betacoronavírus humanos (família à qual pertence o novo coronavírus) veio de morcegos”, explica a virologista. “O SARS-CoV-2 seria mais um que está repetindo uma história comum”.

Aguinaldo Roberto Pinto, professor titular do Departamento de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), também considera pouco provável a criação do SARS-CoV-2 em laboratório. Ele diz que os vírus podem sofrer mutações, sobretudo aqueles cujo material genético é RNA, como no caso do coronavírus, e não há nada de incomum nessas alterações que pudessem comprovar a interferência humana no surgimento do agente causador da covid-19.

Ele pontua ainda que os vírus podem infectar várias espécies animais e, quando passam de uma espécie para outra, também podem se tornar outro vírus.

O professor cita como exemplo o HIV, um vírus decorrente de outro – SIV – que, originalmente, infectou macacos. Depois, passou para os seres humanos, resultando no HIV como conhecemos atualmente. “Então, não seria algo inédito o vírus passar de um bicho para outro, ou passar para humanos, e se tornar um novo vírus”, reforça.

“Sem cicatriz”

Ainda sobre a improbabilidade de o vírus ter sido criado em laboratório, Flávio da Fonseca, virologista do Departamento de Microbiologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e presidente da Sociedade Brasileira de Virologia (SBV), afirma que tanto o SARS-CoV quanto o SARS-CoV-2 não têm cicatrizes em seus genomas.

“Quando fazemos uma manipulação genética em qualquer pedaço de DNA, a gente utiliza ferramentas que deixam marcas, as cicatrizes”, diz Fonseca. “E nenhum dos vírus tem cicatriz que possa nos levar a pensar que ele foi manipulado geneticamente.”

Giliane Trindade, da UFMG, diz que as evidências disponíveis até o momento indicam que o SARS-CoV-2 tem origem natural. “Até que a ciência mostre o contrário, todas as evidências apontam que não é uma arma biológica”, disse a virologista.

Ela opina que a especulação sobre teorias pouco prováveis tira a atenção de questões realmente importantes. “O dado científico mostra que um vírus muito parecido está na natureza”, diz a virologista. “O que as pessoas deveriam estar preocupadas era como diminuir a interface da nossa sociedade com o mundo animal. Como criar esses animais sem impactar tanto nossa sociedade”.