Em maio de 1972, o cantor e compositor Raul Seixas entrou em contato com o jornalista Paulo Coelho, após a leitura de um artigo de sua autoria em uma revista intitulada A Pomba, especializada em ufologia. Esse foi o início de uma parceria musical que renderia fama, sucesso e várias canções que influenciariam várias gerações de jovens brasileiros.

Pouco mais de um ano depois, seria lançado o disco Krig-Há, Bandolo!, contendo as primeiras composições da dupla, como Al CaponeAs Minas do Rei Salomão Cachorro Urubu. Em seu primeiro LP solo, Raul Seixas apresentava ao público futuros clássicos de sua carreira, como Metamorfose AmbulanteOuro de Tolo Mosca na Sopa.

No dia 27 de maio de 1974, em meio aos trabalhos de finalização do segundo disco, Raul Seixas e Paulo Coelho compareceram ao Dops, no Rio de Janeiro, às 15 horas, para prestar esclarecimentos sobre o álbum Krig-Há, Bandolo!. Os dois se apresentaram sem advogado, pois acreditavam que essa seria mais uma intimação para discutir a liberação de canções censuradas, fato já ocorrido anteriormente.

Raul, de fato, foi liberado após 30 minutos de depoimento. O roqueiro teve de explicar a letra de protesto de Ouro de Tolo. Um dos interrogadores lhe perguntou se a música era um ataque ao cantor Roberto Carlos. Ao que Raul respondeu: “É um ataque ao sistema representado por Roberto Carlos”. A ficha de Raul Seixas, aberta a público em 1994, ressaltava sua ligação com o “subversivo” Paulo Coelho. No arquivo de Raul, Coelho aparecia como um “quadro teórico” importante do clandestino PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário), onde teria usado o codinome “Henrique”.

Se a passagem de Raul pelo Dops foi rápida, Paulo Coelho não teve sorte igual. Ele foi conduzido a uma cela onde aguardou em torno de três horas. O policial encarregado do interrogatório questionou o conteúdo do gibi encartado no LP, de autoria do compositor, com desenhos de sua então namorada, Adalgisa Eliana Rios de Magalhães, 28 anos, estudante de Arquitetura. Tratava-se de uma história em quadrinhos com quatro páginas inspirada nas aventuras de Tarzan, personagem criado pelo escritor Edgar Rice Burroughs.

Ao saber da coautoria, o interrogatório foi interrompido. Segundo o agente, Adalgisa Rios também deveria prestar depoimento no Dops. Um camburão da Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro, com quatro policiais armados, foi acionado para prender a estudante. Ela foi detida na porta do prédio onde morava. Seu apartamento foi revistado. Uma pilha com cerca de 100 gibis foi apreendida. Segundo Fernando Morais, biógrafo de Paulo Coelho, um pote de maconha também foi encontrado – porém, curiosamente, não foi apreendido. Não consta do inquérito a posse de substâncias ilegais.

A “Sociedade Alternativa”

Na madrugada do dia 28 de agosto, o casal foi fichado. No documento, o item “Motivo da prisão” permaneceu em branco. Sem nenhum documento, mandado de prisão ou mesmo uma acusação formal, os dois tiveram seus pertences recolhidos e foram obrigados a vestir o uniforme da detenção. No interrogatório, foram questionados sobre o conteúdo do gibi e a criação da Sociedade Alternativa, marcadamente influenciada pela contracultura.

No início da década de 1970, depois de desmantelar as organizações de luta armada, um dos alvos da repressão passou a ser os adeptos do movimento hippie, que ganhava espaço no Brasil por meio da criação de diversas comunidades que pregavam os ideais da contracultura. Essa parecia ser a principal motivação para a prisão.

Os interrogatórios realizados individualmente demoraram várias horas. Os acusados não foram vítimas de torturas físicas nas dependências do Dops. Paulo Coelho detalhou suas atividades como estudante de teatro, jornalista e compositor. Após mencionar uma viagem a Santiago, em 1970, os policiais o pressionaram com o objetivo de obter informações sobre brasileiros exilados no Chile. O compositor, no entanto, não tinha nenhuma relação com perseguidos políticos.

O advogado Antonio Cláudio Vieira, contratado pela família Coelho, compareceu ao prédio do Dops, na Rua da Relação, no dia 28 de maio, por volta das 17 horas, cobrando notícias do delegado de plantão. Depois de conversar por alguns minutos com Paulo Coelho, o advogado recebeu garantias de que o preso seria liberado ainda naquela data. Paulo Coelho e Adalgisa Rios assinaram o alvará de soltura por volta das 22 horas.

Após pegar um táxi na porta do Dops, o casal seguiu para o bairro da Gávea, onde os pais de Paulo Coelho moravam. Durante o percurso, no aterro do Flamengo em frente ao Hotel Glória, o taxista foi fechado bruscamente. Quatro automóveis civis, entre eles uma Brasília e duas peruas Chevrolet Veraneio (veículo muito utilizado pela repressão), forçaram o automóvel ocupado pelo casal a parar. Os dois foram algemados, encapuzados e forçados a entrar separadamente nos carros.

A partir desse momento, eles não eram mais considerados oficialmente presos sob a responsabilidade do Estado. Eles eram “desaparecidos” políticos. Às 8 horas do dia 29 de maio, o pai de Paulo Coelho esteve no Dops para cobrar notícias sobre o filho e recebeu a seguinte informação: “Solto ele foi. Se seu filho não chegou em casa, vai ver que entrou na clandestinidade.”

Ouça trecho da entrevista que Raul Seixas concedeu à Radio Record, em 1988, sobre a perseguição sofrida sob a ditadura militar

Prisão

Paulo Coelho e Adalgisa Rios foram sequestrados por um comando do DOI-Codi. Documentos do órgão de segurança comprovam que o casal foi conduzido ao 1º Batalhão de Polícia do Exército, na rua Barão de Mesquita. O documento de identificação expedido pelo I Exército informa que Paulo Coelho foi preso para “averiguações”. Consta no mesmo documento que o compositor foi interrogado entre 23 horas do dia 14 de junho e 4 horas do dia seguinte.

Ao contrário da ficha do Dops, quando fotografado com bigode e cavanhaque, Paulo Coelho é identificado como tendo barba e bigode “aparados”. Ou seja, a data do inquérito do compositor e de sua namorada no DOI-Codi (14 e 15 de junho) não corresponde ao dia em que foram presos e sequestrados (27 e 28 de maio). Os papéis do I Exército não mencionam quanto tempo os dois permaneceram presos no quartel.

Porém, o diário de Paulo Coelho encontrado por seu biógrafo atesta que ele já se encontrava em casa no dia 31 de maio. O próprio Paulo Coelho garante não ter sido preso uma segunda vez.

Durante as cinco horas de interrogatório, Paulo Coelho foi questionado sobre quais eram suas ligações com pessoas ligadas a organizações de oposição ao regime. Também detalhou suas atividades profissionais e artísticas: escolas, teatro, universidade, viagens, jornalismo. O depoimento contém sete páginas. Sobre a parceria com Raul Seixas e a Sociedade Alternativa, declarou:

Que ainda em 1973 o depoente e Raul Seixas concluíram “que o mundo vive um intenso período de tédio” (sic); que por outro lado verificaram que a carreira de um cantor, quando não vem acompanhada de um movimento forte, tende a se encerrar rapidamente. Que o declarante e Raul Seixas então resolveram “capitalizar o fim do hippismo e o súbito interesse despertado pela magia no mundo” (sic); que o depoente passou a estudar os livros de uma sociedade esotérica chamada “OTO”. Que o depoente e Raul Seixas resolveram fundar a “Sociedade Alternativa”, “A qual foi registrada em cartório pra evitar falsas interpretações” (sic); que o depoente e Raul Seixas estiveram em Brasília e expuseram os preceitos da Sociedade Alternativa aos chefes da Polícia Federal e da Censura, que colocaram “que a intenção não era ir contra o governo, mas inclusive interessar a juventude num outro tipo de atividade” (sic).

“Geladeira”

Adalgisa Rios foi submetida a dois interrogatórios. O primeiro foi colhido em 29 de maio entre 8 e 16 horas. O segundo foi realizado no dia seguinte, de 8 às 11 horas. Nos documentos, foi identificada como militante da Ação Popular (AP) e do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), embora em seu depoimento não conste que tenha ocupado nenhuma posição de liderança ou atuação efetiva nessas organizações.

Quando perguntada sobre sua participação em “movimentos políticos”, Adalgisa disse que esteve presente em reuniões, grupos de estudo sobre marxismo, assembleias, congressos e eventos como a Passeata dos Cem Mil (a passeata em protesto pela morte do estudante Edson Luís), a invasão da Faculdade de Medicina na Urca e a invasão do restaurante da Faculdade de Arquitetura. Questionada sobre o conteúdo do gibi anexado ao álbum Krig-Há, Bandolo! e a fundação da Sociedade Alternativa, motivo pelo qual foi detida para prestar esclarecimentos, ela declarou:

Que a origem do folheto Krig-Há, Bandolo! prende-se ao fato de uma necessidade de divulgação do disco de Raul Seixas, e sua ideia surgiu numa reunião na gravadora Phillips, aprovada por produtores e pelos artistas citados […] Que foi criada a “Sociedade Alternativa”, onde a ideia era não ser contra ou a favor de nada, e sim propor uma outra solução, alternativa, neutra, que chamasse a atenção; que o nome do folheto (o mesmo da capa do disco) surgiu num momento de euforia de Paulo Coelho da Silva (sic) que, lendo a revista “Tarzan”, subiu numa mesa imitando-o e proferiu “Krig-Há, Bandolo!”, nome imediatamente aceito pelos demais presentes.

Paulo Coelho foi liberado, provavelmente, na tarde do dia 31 de maio em uma pracinha no bairro da Tijuca, a dez quilômetros do quartel do I Exército. Somente após duas semanas ele entrou em contato com Adalgisa Rios para saber se ela também havia sido libertada. Os dois encontraram-se apenas uma vez durante o tempo em que permaneceram presos.

Paulo Coelho foi torturado na “Geladeira”, cela mantida em baixa temperatura em que o preso permanecia nu. O medo de sofrer novas torturas físicas fez com que o compositor não respondesse ao pedido de ajuda da namorada. O ato de covardia na carceragem foi o motivo pelo qual Adalgisa Rios rompeu o relacionamento com Paulo Coelho.

No dia 14 de julho de 1974, um mês e meio depois do sequestro e da tortura, ainda apresentando um grave quadro de abalo psicológico, Paulo Coelho, acompanhado por Raul Seixas, embarca para Nova York para passar uma temporada de férias sem previsão de retorno ao Brasil.

Edição: André Cintra, com base do relatório da Comissão Nacional da Verdade