Diante de falta de remédios nas farmácias, governo aumenta preços e favorece empresários
por Cézar Xavier
É fato que até o consumidor mais rico, com recursos para comprar medicamentos de alto custo, está encontrando dificuldades para manter seu tratamento de câncer ou hanseníase. Isso porque existe uma crise de abastecimento de medicamentos, inclusive daqueles mais básicos, como soro fisiológico, dipirona, insulina e amoxicilina, que são pouco lucrativos para a indústria. Nem mesmo os governos estaduais e municipais, com seu poder de negociação, estão conseguindo garantir suas compras.
Segundo a conselheira nacional de Saúde (CNS), Débora Melecchi, há vários motivos para este colapso do fornecimento de medicamentos, que vão de questões externas, mas também de gestão do Ministério da Saúde. Em entrevista, ela cita a falta de regulação da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), a dependência da indústria internacional, o alto custo do petróleo, a falta de monitoramento global de medicamentos pela Anvisa, a falta de financiamento, devido ao Teto de Gastos, o desmonte dos laboratórios oficiais e a falta de solidariedade.
Mas ela considera particularmente contraproducente que o Ministério da Saúde considera uma grande solução liberar o reajuste de preços para garantir o abastecimento. “Isso não resolve o problema do povo, porque, inclusive, dificulta as compras do Sistema Único de Saúde (SUS). Isso apenas ajuda os empresários e a indústria que lucra mais. É uma proposta na contramão das necessidades”, disse ela.
O próprio ministro Marcelo Queiroga admite que a falta de um complexo industrial e parque fabril no Brasil contribuem para o cenário, repetindo um discurso que os setores progressistas sempre defenderam. No entanto, Débora explica que o bolsonarismo se apropria superficialmente de conceitos progressistas, simplesmente para defender sua liberalidade de mercado e beneficiar o setor privado e empresarial. “Além do interesse eleitoreiro expresso nessas declarações, que não se concretizam em benefício real para o povo”.
Débora, inclusive, afirma categoricamente, que a tendência do desabastecimento é piorar, pois não tem visto resultados positivos no mercado de medicamentos. O tipo de medicamentos em falta pode se ampliar, tmabém. “Sinceramente, nesse momento de inércia, as perspectivas são as piores possíveis, se não tiver uma atitude do governo federal, que dê norte em algum aspecto”.
Ações descoordenadas
A pesquisadora, que coordena a Comissão de Ciência, Tecnologia e Assistência Farmacêutica do CNS, explica que o lockdown na China ou a guerra na Ucrânia afetam o mercado brasileiro, pela falta de auto-suficiência industrial. “De 2016 pra cá, sofremos uma série de desmontes, entre eles o complexo industrial da saúde, que abarca o enfraquecimento dos nossos laboratórios oficiais para produção pública, com perda de contratação de pessoal e de financiamento”, disse ela, mencionando a enorme dependência de Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs), fabricados pela China e pela Índia.
Ela também defende uma agenda regulatória da CMED, com regras para buscar justiça no processo de fabricação de medicamentos e tecnologias como respiradores, que fizeram muita falta no início da pandemia. “A pandemia mostrou que é preciso solidariedade global. Todos puxam o tapete para si e deixam de dar apoio a quem precisa e fazer as trocas necessários”, afirmou.
Débora defende essas medidas como ações coordenadas do governo, pois não funcionam isoladamente. “A Anvisa precisa monitorar o mercado global de medicamentos, aliada aos conselhos de secretários de saúde (Conass e Conasems), para ter noção do desabastecimento de estoques, retroalimentar dados e fazer permutas solidárias para atender as necessidades das pessoas”, disse ela, referindo-se as diferenças regionais, em que alguns estados sofrem com a escassez de alguns medicamentos, enquanto outros dispõem deles com sobra.
Débora não se esqueceu da falta de financiamento. Sem recursos financeiros não tem como fortalecer um laboratório oficial e trazer subsídios para produção de tecnologias. Ela contou da luta e das mobilizações sociais para manter funcionando o laboratório paulista Furp (Fundação para o Remédio Popular), que hoje garante dipirona, por exemplo, só para o estado de São Paulo. Este é um exemplo que poderia funcionar nacionalmente.
”Na saúde, estamos sofrendo muito com a PEC 95 [Teto dos Gastos], que teoricamente limitaria por 20 anos os recursos, mas na verdade retirou recursos da saúde, além de outros ajustes fiscais, que representam um desmonte geral de financiamentos. Estamos num cenário em que atender as necessidades do mercado prevalece sobre os interesses sociais”, analisou.