Desmond Tutu, um símbolo da luta vitoriosa pelo fim do apartheid
Faleceu neste domingo (26), aos 90 anos, o arcebispo anglicano Desmond Tutu, ao lado de Nelson Mandela um símbolo da luta contra o apartheid na África do Sul, e Prêmio Nobel da Paz.
Conhecido como “a voz dos que não tem voz”, Tutu nasceu em Matlosana, em 1931, filho de uma trabalhadora doméstica, Aletta Tutu, e de um professor, Zachariah Tutu, convertendo-se em 1986 no primeiro arcebispo negro da Cidade do Cabo.
“Homem de inteligência extraordinária, integridade e invencibilidade contra as forças do apartheid, ele também era terno e vulnerável em sua compaixão por aqueles que sofreram opressão, injustiça e violência sob o apartheid, e pelos oprimidos e opressores de todo o mundo”, lembrou o presidente Cyril Ramaphosa. Segundo o mandatário, “o falecimento do arcebispo emérito Desmond Tutu é outro capítulo de luto para nossa nação que diz adeus a uma geração de excepcionais sul-africanos que nos legou um país libertado”.
Desmond Tutu ganhou notoriedade nas horas mais sombrias do apartheid quando, como líder religioso, liderou marchas pacíficas contra a segregação e defendeu sanções contra o regime de supremacia branca de Pretória. “Numa discussão nunca altere a voz, melhore os argumentos”, defendia o líder, frisando que “se você ficar neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor”.
Após a libertação de Nelson Mandela da prisão, onde passou 27 anos, foi o religioso quem conduziu o ativista a uma varanda na Prefeitura da Cidade do Cabo, onde ele proferiu seu primeiro discurso público.
Durante o governo de Mandela, foi designado presidente da Comissão de Verdade e Reconciliação, em 1995, organismo criado por lei para promover a unidade nacional e fazer justiça às vítimas das políticas de apartheid imposto ao país em 1948. A Comissão entregou o informe oficial sobre o regime ao presidente em 1998.
Ativista pelos direitos humanos, o arcebispo colocou sua voz contra a ocupação do território palestino por Israel, pressionou o Reino Unido para que negociasse com a Argentina sobre a soberania das Ilhas Malvinas, alertou para o risco das mudanças climáticas e defendeu os direitos dos homossexuais, debatendo assuntos de relevância mundial.
Coerente com seus compromissos e princípios, foi extremamente crítico aos sucessivos governos do Congresso Nacional Africano (CNA), que, após ter combatido o apartheid, enveredaram no caminho da corrupção ou falharam no enfrentamento à Aids.
A luta do líder religioso por uma África do Sul mais igualitária e humana seguiu em frente, tendo acusado em 2004, o presidente Thabo Mbeki – o sucessor de Mandela – de adotar políticas que enriqueciam uma pequena elite enquanto “muitos, muitos demais de nossa gente vivem em uma pobreza massacrante, degradante e desumanizadora”.
Sua luta como “bússola moral da nação” continuou no governo de Jacob Zuma, sucessor de Mbeki, que anos mais tarde seria acusado de corrupção e renunciaria, acabando na prisão.
“Acho que estamos em um estado ruim na África do Sul, especialmente quando se compara com os anos de Mandela. Muitas das coisas que sonhávamos possíveis parecem estar cada vez mais fora de alcance. Temos a sociedade mais desigual do mundo”, afirmou Tutu.
Ser humano extraornidário
A Fundação Nelson Mandela ressaltou em comunicado que as contribuições do ativista “para a luta contra a injustiça, local e globalmente, estão no mesmo nível da profundidade de seu pensamento sobre a construção de futuros libertadores para as sociedades humanas. Ele era um ser humano extraordinário”.
Em 2021, ao aproximar-se de seu aniversário de 90 anos e diante do crescimento da pandemia de Covid-19, Tutu mobilizou a população, sublinhando que não havia nada a temer. “Não deixem a Covid-19 continuar a devastar nosso país, ou nosso mundo. Vacinem-se!”, sublinhou.
Defensor do direito de morrer em paz, dizia que esperava “ser tratado com compaixão e poder passar para a próxima fase da vida da maneira que eu escolher”. “Me preparei para minha morte e deixei claro que não quero ser mantido vivo a qualquer custo”, acrescentou.
O papa Francisco manifestou sua “tristeza” por alguém que se dedicou à “promoção da igualdade racial e reconciliação” e que ao refletir sobre a fraternidade universal, lembrava que foi especialmente motivado por São Francisco de Assis, “e também por outros irmãos que não são católicos como Desmond Tutu, Martin Luther King e Mahatma Gandhi”.
Multiplicaram-se as homenagens no dia de sua despedida, como a do ex-secretário-geral da ONU Ban Ki-moon e do ex-presidente americano Jimmy Carter, que apontaram Tutu como “amigo querido e uma inspiração, cujas realizações nunca serão esquecidas”.