Defesa de Assange contesta decisão da juíza que o mantém preso
A defesa do jornalista e preso político Julian Assange anunciou que está preparando recurso à Suprema Corte britânica pela sua imediata transferência para o regime de prisão domiciliar, sob monitoramento por tornozeleira, ao lado da companheira Stella Morris e dos dois filhos pequenos
A apelação se deve a que a juíza Vanessa Baraitser manteve Assange sob detenção na penitenciária de segurança máxima de Belmarsh, a ‘Guantánamo britânica’, e negou o pedido de fiança apresentado pela defesa. “Esperamos que [a decisão] seja anulada”, disse o editor-chefe do WikiLeaks, Kristinn Hrafnnson.
A disputa nas instâncias superiores pode levar anos e não é justo manter Assange, contra quem não há qualquer outra acusação que não a dos EUA e não foi condenado por nada, em solitária, como ocorre atualmente
Por sua vez, os EUA já anunciaram que irão apelar contra a recusa da extradição. Na segunda-feira, a mesma juíza Baraitser havia indeferido o pedido do governo Trump de extraditar Assange por supostos “espionagem” e “hackeamento”. Na verdade, por ter trazido a público os arquivos do Pentágono sobre a ocupação do Iraque e Afeganistão, inclusive mostrando crimes de guerra, como o massacre de civis em Bagdá. Divulgação, aliás, feita pelo WikiLeaks conjuntamente com os maiores jornais do mundo.
“É injusto e ilógico quando você considera a decisão [de Baraitser] de dois dias atrás sobre a saúde de Julian, em grande parte porque ele está na prisão de Belmarsh”, disse Hrafnnson. “Enviá-lo de volta para lá não faz sentido algum”.
Ainda, conforme assinalou o articulista da Deutsche Welle, Matthias von Hein, “não há motivo plausível para um jornalista investigativo ter pior tratamento na prisão do que, por exemplo, um genocida: o ex-ditador chileno Augusto Pinochet pôde aguardar confortavelmente seu processo de extradição em prisão domiciliar numa vila de luxo perto de Londres”.
Considerando a trajetória de Baraitser, a recusa à transferência de Assange para prisão domiciliar não é propriamente surpreendente, até mesmo porque a justiça britânica foi parte fundamental da perseguição sob “roupagem jurídica” ao jornalista, bem como da campanha de assassinato de reputação movida contra ele.
Além de que os governos britânicos só são superados, em crimes de guerra em relação ao Iraque e Afeganistão e seu encobrimento, pelos próprios Estados Unidos. O que, aliás, voltou à tona recentemente, com a indecente decisão da Corte Criminal Internacional, deixando a investigação dos massacres cometidos pelas tropas inglesas no Iraque para os próprios ingleses
Foi quase curioso que Baraitser haja, apenas nas palavras finais de sua sentença, indeferido a extradição, depois de praticamente endossar as mais estapafúrdias acusações dos EUA contra Assange.
Da negação do caráter político da perseguição à inexistência de ameaça ao jornalismo em qualquer parte do mundo sob a lei extraterritorial norte-americana; da conivência com a vigilância da CIA dentro da embaixada violando o sigilo cliente-advogado, até o encobrimento da impossibilidade de um julgamento justo para Assange em solo norte-americano.
E, coroando tudo, a absurda situação em que os perseguidos são os denunciantes dos crimes de guerra e não os criminosos e mandantes – uma completa inversão da jurisprudência de Nuremberg
Houve até quem visse na decisão contra a extradição na undécima hora “um milagre”, ou quase. A recusa, Baraitser registrou, se devia a que Assange ficaria em risco de suicídio sob o extremado regime prisional de exceção norte-americano que o aguardava.
Assim, como expressou o ex-embaixador Craig Murray, amigo de Assange, possivelmente tratou-se da melhor sentença que, realisticamente, se poderia esperar de Baraitser, chamando a comemorar a decisão de não-extradição, e a deixar “para amanhã” a questão pendente da liberdade de imprensa. Um cartaz resumia tudo dessa luta que já dura dez anos: “a verdade não é crime”.
O anúncio da não-extradição foi comemorado de forma entusiástica pelos presentes, que cantavam “Libertem Julian Assange”, se abraçavam e abriam garrafas de espumante nas imediações do tribunal.
No domingo, véspera da decisão da extradição, Hrafnsson dissera à AFP estar “quase certo” de que o tribunal decidiria contra Assange. “Tive que reescrever meu discurso”, revelou aos eufóricos apoiadores de Assange sua noiva, Stella, ao falar na tribuna improvisada do lado de fora do tribunal logo após a audiência.
Ela agradeceu aos milhões de pessoas no mundo inteiro que têm levantado sua voz por Julian, saudou a vitória, esse “primeiro passo”, denunciou que o jornalista continua preso e no isolamento, sem qualquer condenação, e impedido de estar com seus pequenos filhos, que estão sendo privados do amor e afeto do pai.
Dirigindo-se ao “presidente dos EUA” – o atual ou o recém eleito? -, Stella pediu que “pusesse abaixo os muros da prisão” de Assange, retirando o pedido de extradição de uma vez por todas. Trump, em um dos últimos atos de governo, anistiou quatro mercenários da Blackwater, que assassinaram 17 pessoas em um engarrafamento de trânsito em Bagdá em 2007.
Como justificativa para a manutenção de Assange na solitária na prisão de segurança máxima de Belmarsh durante a apelação, a magistrada alegou os antecedentes de fuga de Assange – no caso, o asilo na Embaixada do Equador para não ser extraditado para os EUA.
Lembrou ainda da ainda da “enorme rede de apoiadores”, que no entender dela poderiam “ajudá-lo a fugir”.
A defesa de Assange refutou tais alegações sobre ‘risco de fuga’ e as comparações com o quadro em 2012 que levou o jornalista a buscar o asilo, por ser “totalmente diferente”, já que na época ele entrou na embaixada exatamente por temer a extradição para os EUA, e agora é a própria Baraitser que bloqueou essa extradição na segunda-feira.
Como advertiram seus advogados, é inconcebível que no presídio de segurança máxima de Belmarsh, onde está grassando a Covid-19, não esteja em risco a vida de Assange, considerado do grupo de risco pelas condições prolongadas de tortura a que foi submetido – como atestado pelo relator especial da ONU sobre Tortura, Nils Melzer-, em um momento em que a Inglaterra está de volta à quarentena.
“É absolutamente ultrajante o juiz negar fiança a Assange e afirmar que Belmarsh está fazendo um bom trabalho ao lidar com Covid”, quando a Inglaterra toda voltou à quarentena, concordou o editor-executivo da Shadow Proof, Kevin Gosztola, que tem acompanhado de perto as audiências de Assange.
Na audiência sobre a fiança, a acusação asseverou que eram mínimos os riscos para Assange, e que teria havido apenas três casos de Covid-19 em Belmarsh a partir de terça-feira à noite. Na verdade, como demonstrou a defesa, houve 59 casos antes do Natal e a prisão ainda está fechada por causa da pandemia.
Como estratégia de apelação, os EUA estão, essencialmente, alegando que têm plena capacidade de evitar suicídios em seus sistemas prisionais.
A admissão de Baraitser de que as condições no sistema prisional dos EUA levariam Assange ao suicídio por si só sintetiza o que se tornou o aparato de segurança imperial sob a ‘Guerra ao Terror’.
“O Sr. Assange enfrenta a perspectiva sombria de condições de detenção severamente restritivas, destinadas a remover o contato físico e reduzir ao mínimo a interação social e o contato com o mundo exterior”, afirmou Baraitser em sua sentença. Ela citou a testemunha de defesa Maureen Baird, uma oficial do Bureau of Prisons dos EUA por 27 anos, que revelou que a prisão em que Assange ficaria preso “não foi construída para a humanidade”.