Kamala Harris demoliu tentativa de Mike Pence de retocar imagem tosca de Trump | Foto: Morry Gash-Reuter

Comparado com aquele espetáculo grotesco propiciado por Donald Trump há uma semana, o debate na noite de quarta-feira (7) em Salt Lake City dos vices, Mike Pence e Kamala Harris, até foi civilizado, mas apesar de todo o esforço do republicano para retocar a imagem tosca do presidente bilionário, a chapa Trump-Pence não só não saiu das cordas, como acabou ainda mais acuada.

Enquanto Harris e Pence debatiam, Trump caprichava no Twitter, dizendo até mesmo que seu contágio pelo coronavírus “era uma bênção de Deus”.

Deve virar sucesso nas rodas MAGA [Make America Great Again], mas não encerra o inferno astral do presidente bilionário. Contágio generalizado na Casa Branca, 72 horas de internação no hospital militar Walter Reed, generais e almirantes do Estado Maior de quarentena, ordem de rompimento no Congresso das negociações de alívio às famílias, e as malditas pesquisas que seguem favorecendo Joe Biden, uma atrás da outra.

Conforme determinado pela Comissão não-partidária de Debates Presidenciais, Pence e Harris estavam separados por 3,6 metros e divisória de acrílico. A moderadora, Susan Page, do jornal USA Today, fez um bom trabalho, apesar de ter de apelar várias vezes a Pence, tentando-o fazer respeitar o tempo: “obrigado, Mr. Vice-presidente, obrigado Mr. Vice-presidente, obrigado Mr. Vice-presidente”.

A primeira pergunta, obviamente sobre a pandemia, permitiu a Harris surrar impiedosamente Trump e colocar a eleição como um referendo sobre o descalabro dele perante o coronavírus.

“O povo americano testemunhou o que é o maior fracasso de qualquer administração presidencial na história de nosso país”, disse Harris, argumentando que Trump tratou a Covid-19 como uma farsa enquanto minimizava repetidamente a gravidade do vírus, desencorajava as pessoas de usar máscaras e promovia aglomerações.

“Um em cada cinco negócios foi fechado. Estamos olhando para os trabalhadores da linha de frente que foram tratados como trabalhadores sacrificiais. Estamos olhando para mais de 30 milhões de pessoas que nos últimos meses tiveram que pedir o auxílio-desemprego”, disse Harris.

No final de janeiro, ela disse, o presidente e o vice-presidente foram informados sobre a natureza letal da pandemia, se referindo ao novo livro do lendário repórter Bob Woodward, com as confissões de Ttrump. “Eles sabiam o que estava acontecendo e não lhe contaram”, disse Harris, dirigindo-se aos espectadores.

As desculpas de Pence repetiram as mentiras de Trump sobre a questão: ao invés de seu governo ter responsabilidade pelos 210 mil norte-americanos mortos e 7,5 milhões de contagiados, recorde mundial, teria salvo “dois milhões de pessoas”.

Já a colossal incompetência diante da pandemia virou “a maior mobilização nacional desde a II Guerra Mundial”. Isso, dois dias depois da tuitada de Trump convocando a população a “não temer” o vírus – ou seja, a marchar como gado para a contaminação. Compreensivamente, foi o melhor momento de Harris no debate.

Não é difícil de ver como, entre os idosos, os eleitores vêm se deslocando para Biden. Também pudera, são as vítimas preferenciais do coronavírus, e ainda têm de aguentar Pence em rede nacional asseverar que “desde o primeiro dia, o presidente Donald Trump colocou a saúde da América em primeiro lugar.”

Harris denunciou ainda que o governo Trump continua sem um plano nacional de combate à pandemia, e que o plano de um governo Biden se concentraria em testar e rastrear contatos e administrar a vacina, que será gratuita para todos.

O atual vice-presidente também repetiu a tática diversionista de Trump, de jogar a culpa pelo seu desastre na pandemia sobre a China e a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Pence defendeu o evento no jardim da Casa Branca, em 26 de setembro, para forçar a nomeação de Amy Barrett para a Suprema Corte, onde se acredita que Trump e muitos outros se contaminaram, e asseverou que a aglomeração e a falta de máscara se deveram a que os republicanos “confiam no povo americano” e no seu discernimento sobre a pandemia.

“Você respeita o povo americano quando diz a verdade. Você respeita o povo americano quando tem a coragem de ser um líder, falando daquelas coisas que você pode não querer que as pessoas ouçam, mas que elas precisam ouvir para que possam se proteger”, desancou Harris.

Em outro momento, a democrata relatou como, ao tomar conhecimento sobre o pagamento de imposto de renda por Trump, ela primeiro pensou que se tratava de US$ 750.000, o que já seria pouco para um bilionário, e só então percebeu que era só US$ 750.

Além de esconder as declarações, Harris apontou, Trump também esconde as dívidas e, por uma questão de segurança do país, alertou, é preciso saber “a quem ele deve dinheiro”.

WALL STREET

Em relação à economia, diante das loas de Pence à maravilhosa economia de Trump de antes da pandemia, Harris ironizou que o presidente avalia a economia pela situação dos mais ricos, enquanto Biden mede a força da economia pela quantidade de pessoas empregadas.

Ela acrescentou que a proposta de Biden é estimular o investimento em infraestrutura e em inovação, com o New Deal Verde e a geração de empregos. “Milhões de empregos virão do uso de energia limpa e renovável”, afirmou.

Entre as prioridades, ela apontou também a revogação do monumental corte de impostos com que os ricaços foram agraciados por Trump.

Quando Pence alegou que isso ia prejudicar as famílias trabalhadoras e de classe média, Harris disse que era mentira, já que a recomposição do imposto só atingiria quem ganhasse anualmente mais de US$ 400.000. Outra fake news de Pence, de que Biden iria acabar com o fracking – método de extração de gás e petróleo injetando material no subsolo sob pressão -, foi desmentida categoricamente por Harris.

Harris também prometeu que um governo Biden irá retornar os EUA ao Acordo Climático de Paris. Sobre o obscurantismo do governo Trump, ela observou que chegou ao ponto de tirar as palavras Ciência e Mudanças Climáticas do seu site.

A candidata democrata também acusou Trump de perder a guerra econômica que ele desfechou contra a China. Em agosto, os EUA sofreram o pior déficit na balança comercial nos últimos 14 anos.

As negociações de Trump com a China levaram a uma “recessão industrial”, disse Harris, observando que os EUA perdeu 300.000 empregos na indústria e que os agricultores foram à falência por causa da guerra comercial.

Harris citou estimativas que mostram que até o final do primeiro mandato de Trump, mais empregos terão sido perdidos sob sua gestão do que quase qualquer outro presidente.

“Quase metade dos locatários americanos está preocupada se conseguirão pagar o aluguel até o final do mês”, disse ela. “É aqui que está a economia da América agora. E é por causa da catástrofe e do fracasso da liderança desta administração. “

Ao que Pence retrucou que “foi Biden” quem nunca travou a guerra econômica com a China e a deixou entrar na Organização Mundial do Comércio (OMC). Ele classificou Biden como “chefe de torcida da China” nas últimas décadas.

Em resposta a pergunta sobre a indicação da juíza Barrett, a democrata assinalou que a indicação deveria ser feita pelo próximo presidente eleito, já que faltam 27 dias para a eleição, já votaram 4 milhões de pessoas e é um cargo para a vida toda, com todas as implicações nas vidas das pessoas.

Ela destacou o precedente histórico, quando Abraham Lincoln, cujo partido controlava o Senado e a Câmara, em circunstância semelhante, decidiu que caberia a quem fosse eleito a indicação. Harris também observou que, de 50 juízes nomeados por Trump para cortes, não havia nenhum negro.

Ela voltou a se dirigir à população, alertando de que estava em risco o preceito da cobertura de doenças pré-existentes, estabelecido pela lei do Obamacare, em meio a uma epidemia, no país de medicina mais cara do planeta. Também em risco a cobertura para filhos até 26 anos. Ainda, a ameaça de recriminalização do aborto.

Harris ignorou a provocação de Pence, de que o governo Biden incharia a Suprema Corte. “Se você ainda não descobriu, eles vão empacotar a Suprema Corte se ganharem a eleição”, insistiu Pence.

Num país que viveu as maiores manifestações em 50 anos, de costa a costa, após tortura e assassinato de um negro por um policial racista branco, o vice de Trump teve a cara de pau de asseverar que a ideia de que a “América é sistemicamente racista e de que há preconceito implícito na aplicação da lei, como dizem Biden e Harris, é um grande insulto para os homens e mulheres que trabalham nesse setor”.

Isso, dias após um procurador-geral republicano – aliás, negro – ter lavado as mãos quanto a punir os policiais que assassinaram a tiros, após arrombar a porta e à paisana, por volta de meia noite, a paramédica Breonna Taylor.

Harris, cuja mãe era indiana e o pai, jamaicano, afirmou que a família de Breonna Taylor “não teve a justiça que merecia”, defendeu reformas na polícia e na justiça criminal, bem como a proibição de golpes de estrangulamento, a instauração de um registro nacional de policiais violadores da lei e o fim das prisões privatizadas.

“STAND BY”

A companheira de chapa de Biden também repudiou a insistência de Trump em não condenar grupos supremacistas brancos, como fez recentemente no debate anterior, ao passar aos Proud Boys a orientação de “recuem e fiquem prontos”. E, no caso em 2017 do atropelamento de uma manifestante antifascista por neonazis em Charllotesville, quando disse que havia pessoas boas “dos dois lados”.

Sobre as repetidas negativas de Trump de se comprometer com a transferência de poder caso perca a eleição, sob o pretexto de que voto pelo correio é fraude, Pence desconversou.

“Acho que vamos ganhar esta eleição, o presidente Trump e eu estamos lutando todos os dias nos tribunais para evitar que Joe Biden e Kamala Harris mudem as regras e criem uma grande oportunidade para a fraude eleitoral”, disse Pence. “Se tivermos uma eleição livre e justa, teremos confiança nela.”

Embora tudo leve a crer que, a prevalecer o atual curso das pesquisas, a única tábua de salvação que restaria a Trump seria tentar repetir a proeza de W. Bush de 2000, levando no tapetão, o que explicaria essa urgência toda em nomear a juíza Barrett para a Suprema Corte, a questão não foi claramente apresentada. No entanto, respondendo à mesma pergunta que Pence desconversou, Harris apontou que os democratas haviam constituído uma ampla frente, que também incluía independentes e republicanos, como a viúva de John McCain, Collin Powell, John Kasich, além de apoio manifestado de centenas de ex-altos mandos da segurança e do Pentágono.

MOSCA

Analistas assinalaram que, no futuro, o debate pode ficar conhecido como o “debate da mosca”: é que uma mosca preta teimou em pousar por dois minutos no cabelo muito branco de Pence, enquanto este fugia como podia da discussão sobre justiça racial e brutalidade policial. Viralizou: “Todos estão com ciúmes porque consegui o melhor lugar para o debate esta noite”, tuitou @MikePenceFly.

Em tempo. Mais uma maldita pesquisa. A CNN anunciou que, utilizando o critério de estados solidamente com democratas (ou republicanos) mais estados cuja tendência é democrata (ou republicana), pela primeira vez Biden superou a marca dos 270 votos no colégio eleitoral, que decide a presidência.

Estados solidamente democratas: California (55), Connecticut (7), Delaware (3), DC (3), Hawaii (4), Illinois (20), Maine (3), Maryland (10), Massachusetts (11), New Jersey (14), New Mexico (5), New York (29), Oregon (7), Rhode Island (4), Vermont (3), Virginia (13), Washington (12) (203 no total)

Estados que tendem para os democratas: Arizona (11), Colorado (9), Michigan (16), Minnesota (10), Nebraska 2nd Congressional District (1), Nevada (6), New Hampshire (4), Pennsylvania (20), Wisconsin (10) (87 no total)

Total de votos no colégio eleitoral pró-Biden: 203 + 87 = 290

Os estados solidamente republicanos incluem Alabama (9), Alaska (3), Arkansas (6), Idaho (4), Indiana (11), Kansas (6), Kentucky (8), Louisiana (8), Mississippi (6), Missouri (10), Montana (3), Nebraska (4), North Dakota (3), Oklahoma (7), South Carolina (9), South Dakota (3), Tennessee (11), Utah (6), West Virginia (5), Wyoming (3), totalizando 125. Estados que tendem aos republicanos: Texas (38).

Total pró-Trump: 125 + 38= 163

Estados campos de batalha: Florida (29), Georgia (16), Iowa (6), Maine 2º Distrito Congressional (1), North Carolina (15), Ohio (18) (85 no total)