De quantas mentiras e distorções é feita uma entrevista de Bolsonaro?
Jair Bolsonaro (PL) mente com tanta tranquilidade e frequência em 40 minutos, que fica difícil pontuar suas distorções durante a conversa. Foi assim na entrevista conduzida por William Bonner e Renata Vasconcellos, da TV Globo, nesta segunda (22). Aparentemente, houve a opção dos jornalistas em deixá-lo dizer livremente suas imprecisões para que se conhecesse seu raciocínio completo para cada assunto. De outra forma, rebatê-lo tornaria inviável a entrevista mergulhada no universo paralelo do bolsonarismo.
Com isso, Bolsonaro pode ter saído em vantagem ao reafirmar seus negacionismos, distorções e mentiras deslavadas para milhões de brasileiros, na maior audiência do ano do Jornal Nacional. Ele não se constrange em fingir que imagens filmadas suas, de ampla circulação, xingando autoridades ou imitando pessoas morrendo de covid, entra tantas outras, nunca existiram.
Xingamentos a ministros
Bolsonaro negou que tivesse xingado ministros do Supremo Tribunal Federal, acusando o jornalista de mentir. Ao admitir que teria chamado Alexandre Moraes de canalha, achando isso natural, já que o ministro o investiga, Bolsonaro finge esquecer que chamou o ministro Luis Roberto Barroso de idiota, imbecil e filho da puta.
Crise em Manaus
Quando disse que, em menos de 48 horas, cilindros de oxigênio começaram a chegar em Manaus, também foi desmentido por Renata. Mas todo brasileiro acompanhou a crise de cerca de 30 mortos por falta do insumo hospitalar e lembra como foi demorada a solução do drama, dia após dia.
As respostas do Governo Federal eram vagas e os manauaras tiveram que recorrer ao governo de São Paulo, e a empresas privadas, depois a campanhas de artistas e à solidariedade venezuelana. Mesmo com toda essa ajuda, foram quatro dias de sofrimento até chegarem os cilindros.
Bolsonaro age como se tivesse algo a ver com esses envios, quando seu ministro disse que não tinha capacidade para enviar os cilindros. Até mesmo a transferência de doentes agravados para outros estados demorou a ocorrer.O presidente ignora que tudo que ele diz sobre a pandemia foi meticulosamente detalhado e documentado na CPI do Senado, que investigou a gestão da crise sanitária.
Lockdown
A narrativa de Bolsonaro sobre a pandemia está tão do avesso que precisa ser completamente ignorada. Nada está fundado em ciência, verdade, lógica ou simples fatos da realidade. Ele diz que o Brasil passou um ano sob lockdown que ele considerava desnecessário.
O Brasil nunca teve um “lockdown” efetivo como o aplicado em outros países, em que houve até proibição de circulação nas ruas. Estes países sofreram com a paralisação econômica, mas evitaram milhões de mortes. Até mesmo vizinhos como a Argentina passaram por isso, evitando a tragédia ocorrida no Brasil.
O pouco de distanciamento social garantido no Brasil, foi promovido por estados e municípios contra a vontade do Governo Federal. Em junho de 2020, apenas três meses depois do início da crise sanitária, vários estados e municípios já flexibilizavam medidas restritivas de quarentena. O Brasil está entre os países com maior proporção de mortes por covid-19 e é considerado uma das piores gestões da pandemia no mundo.
Negacionismo
Mesmo depois da CPI do Senado e tudo que se confirmou no mundo sobre a pandemia, Bolsonaro repetiu sem constrangimento suas mentiras e desinformação sobre vacinação, tratamento precoce e protocolos sanitários.
Mesmo com o claro efeito positivo a vacina sobre a redução de agravamento de casos, ele insiste que, “até hoje” são desconhecidos os efeitos colaterais da vacina. A própria Anvisa destaca os efeitos colaterais e garante a segurança das vacinas, assim como casos em que não deve ser administrada. O mesmo faz a Organização Mundial da Saúde (OMS) ao constatar os sintomas leves e passageiros na maioria absoluta dos pacientes imunizados.
Bolsonaro chega ao cúmulo de afirmar que acertou em tudo que disse sobre a pandemia. Sem qualquer base científica e médica, ele criticou o uso de máscaras, recomendou o uso de cloroquina e outros medicamentos ineficazes, desconfiou que as pessoas estivessem morrendo de covid.
Outra afirmação que insistiu em repetir foi de que as pessoas pegavam mais covid por ficar em casa isoladas. Ele citou suposto estudo mencionado pelo governador de Nova York, Andrew Cuomo. Cuomo, no entanto, chamou a atenção para o fato das pessoas ficarem em casa, mas continuarem tendo contato com contaminados da própria família, principalmente adolescentes, ou descuidarem dos protocolos de higiene e distanciamento social.
Um dos pontos altos da entrevista foi como Bolsonaro se comportou diante do comovente apelo de Renata para que se desculpasse de ter imitado, em vídeo, doentes morrendo asfixiados. Ele teria se saído muito bem simplesmente se desculpando e emprestando sua solidariedade às quase 700 mil famílias destruídas pela pandemia. No entanto, se desestabilizou tentando fazer parecer que Renata negou que ele tinha feito a imitação, conhecida por todo o Brasil.
Corrupção
Bolsonaro não se constrange em dizer que está num governo sem corrupção, mesmo com o afluxo de denúncias, escândalos e investigações, inclusive com prisões, como ele mesmo admite. Durante a entrevista foi lembrada por ele, mesmo, a acusação de interferência em investigações contra sua família com ruptura da autonomia da Polícia Federal, mas ele também está mergulhado em acusações do uso exagerado do sigilo em informações públicas, além do desmonte dos mecanismos de controle social e controladoria que investigam corrupção nos governos.
Investigações da Polícia Federal apontaram para a existência de um “esquema de facilitação ao contrabando de produtos florestais”, que teria o envolvimento do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e de gestores do ministério e do Ibama.
O diretor de logística do Ministério da Saúde, Roberto Dias, foi acusado de pedir um dólar de propina por cada dose adquirida de vacina contra a covid-19.
O ministro da educação, Milton Ribeiro, foi preso pela Polícia Federal por corrupção passiva, prevaricação, advocacia administrativa e tráfico de influência por suposto envolvimento em um esquema para liberação de verbas do MEC para favorecer prefeituras por meio de pastores aliados.
Bolsonaro ainda disse que a Controladoria Geral da União investigou o escândalo no Ministério da Educação antes da polícia. No entanto, a investigação da CGU foi para inglês ver, pois se encerrou alguns meses depois. Somente com novas denúncias na imprensa, a Polícia Federal teve mais elementos para a prisão do ministro, que responde em liberdade. A investigação continua com indícios de intervenção de Bolsonaro para ajudar o ministro.
Além desses casos, há investigações de pedidos de propina em compra de vacinas, empenho de milhões do Ministério da Saúde em obras sem licitação no Rio de Janeiro, o orçamento secreto movimentado por congressistas, as estranhas licitações vencidas pela empreiteira Engefort, repasses milionários para ex-jogadores de futebol Emerson Sheik e Daniel Alves, superfaturamento de ônibus escolares, pedidos de propina no Incra e superfaturamento e licitações irregulares na Codevasf.
Auxílio Brasil
Grande parte de toda essa lógica distorcida de Bolsonaro já era previsível e conhecida de suas lives para apoiadores. Ele repete incessantemente seus raciocínios de forma a torná-los argumentação segura para suas manipulações. É o caso das várias afirmações sobre o Auxílio Brasil.
Ele começa acusando os partidos de esquerda de votarem contra o parcelamento dos precatórios que permitiriam oferecer quatrocentos reais de Auxílio Brasil. Com esta medida, ele tirava da dívida judicial do governo com trabalhadores de todo o Brasil para transferir para outros. Além dessa ser uma manobra contábil, ou pedalada fiscal, desnecessária. Partidos de esquerda propunham outras alternativas, ainda assim, houve muitos parlamentares que apoiaram pelo parcelamento.
Transposição do São Francisco
Prometida por décadas, a obra de transposição do Rio São Francisco foi iniciada em 2007, durante o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O gigantismo da obra atravessou quatro gestões federais, tendo trechos entregues por todos os presidentes seguintes, sendo que Bolsonaro inaugurou um dos trechos, que continua inconcluso.
Ser ou não ser Centrão
Bonner foi direto ao perguntar se o eleitor devia acreditar em Bolsonaro, já que ele dizia antes da eleição que não era do Centrão, e o criticava pelo “toma lá, dá cá”, mas depois de ter o apoio dos parlamentares, disse que sempre foi do Centrão.
Na resposta ao jornalista, Bolsonaro desdiz o que disse mais uma vez, ao afirmar que na época em que era parlamentar “não existia centrão”. O Centrão é um grupo com diversos partidos de centro e de direita criado durante a Assembleia Nacional Constituinte de 1988.
Como deputado federal, desde os anos 1990, Bolsonaro só integrou partidos desse grupo (PDC, PPR, PPB e PP). O grupo fez parte da base do governo FHC e perdeu influência com a chegada de Lula à presidência em 2003. Em 2005, o governo é derrotado na eleição da mesa da Câmara, que passa a ser comandada pelo Centrão, em meio a crise do Mensalão. Foi a época em que Bolsonaro deitou e rolou em meio a seus colegas de Centrão, na estratégia permanente de desestabilizar o governo, até chegar ao golpe de 2016, com Eduardo Cunha na liderança. Na época se falava em baixo clero para esse tipo de deputado. A própria rotatividade de Bolsonaro por vários pequenos partidos é um típico comportamento do Centrão.
Anistia ao Fies
Bolsonaro afirmou que anistiou 99% das dívidas de um milhão de beneficiários do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). Esse tipo de confusão de números é algo frequente nas falas de Bolsonaro, que não se importa em misturá-los, confundi-los ou arredondá-los, desde que pareçam bons para seu governo.
Na verdade, apenas 78,7 mil estudantes foram beneficiados, segundo o Fundo Nacional de Desenvolvimento Estudantil (FNDE). Isso, porque a primeira rodada condicionava o desconto de 12% a 92% a estudantes beneficiários do Auxílio Emergencial ou Bolsa Família. Foram os deputados que aumentaram o desconto para 99%, com novas condicionantes, que o governo nem começou ainda a renegociar. Neste caso, o FNDE informa que apenas 8.957 contratos cumprem os requisitos para solicitar o desconto de 99% no total do saldo devedor.
3 milhões de empregos
Desde o início da entrevista, Bolsonaro finge que a economia decolou em seu governo, ignorando os altos números de rejeição em pesquisas de opinião, justamente por motivos econômicos. A inflação desenfreada, assim como os juros básicos, o endividamento das famílias, a perda do poder de compra do salário mínimo e os altos índices de desemprego e informalidade são parte desses elementos do negacionismo econômico de Paulo Guedes e Bolsonaro.
Bolsonaro disse que gerou saldo positivo de quase 3 milhões de empregos no Brasil. Na verdade, ele arredondou o saldo de 2,53 mi de empregos criados em 2021, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged).
Outra afirmação chocante diz respeito a defesa que Bolsonaro faz do agronegócio, ao dizer que sem ele o mundo teria passado fome. Tudo isso para justificar o desmonte da política ambiental e da fiscalização do desmatamento. Mais uma vez, o presidente ignora os preços descontrolados dos alimentos nos supermercados e as evidentes imagens e dados estatísticos da fome no país.
A suposta queda nos preços dos combustíveis, alardeada por ele na entrevista, também ocorreu tardiamente e abaixo do esperado. A gasolina continua com preços muito acima daqueles do início do ano, quando começou a escalada da inflação.
PIX
Bolsonaro engana ao falar em suposto prejuízo para bancos com o surgimento do PIX, que ele considera sua criação. As movimentações para viabilizar a ferramenta remontam ao governo Dilma. Ainda em 2016, o então presidente do Banco Central (BC), Ilan Goldfajn, já anunciava planos de criar uma ferramenta para transações bancárias instantâneas e gratuitas.
O PIX representa economia para os bancos em agências, papel, segurança e funcionários. Além disso, a arrecadação dos bancos nunca foi tão crescente, inclusive com aumento de clientes estimulados a abrir contas, enquanto as agências fecham continuamente.
Por Cezar Xavier