Policial da RUC (polícia inglesa na Irlanda do Norte), abre fogo com balas de borracha em repressão a protestos em 1981

A polícia dos EUA usou balas de borracha contra manifestantes civis em grande escala na semana passada. Esse tipo de projétil começou a ser usado na Irlanda do Norte – e a história mostra que é tudo menos “não letal”. Não pode haver justificativa para o uso policial de balas de borracha.

Por Daniel Finn*

Como parte de violenta repressão aos protestos contra o racismo e a brutalidade policial, as forças de repressão dos EUA têm rotineiramente disparado balas de borracha contra manifestantes desarmados, de Minneapolis a Los Angeles, Phoenix a Nashville etc. Essas armas “não letais” ou menos letais se tornaram uma ferramenta padrão do policiamento nos EUA, juntamente com gás lacrimogêneo e spray de pimenta, usados livremente contra manifestantes e jornalistas. E não só nos EUA. A polícia de choque francesa usou em grande escala projéteis desse tipo contra o movimento de protesto dos “coletes amarelos”. Em maio de 2019, a violência policial deixou 24 pessoas cegas e mais 283 com ferimentos na cabeça, a maioria causada por balas de borracha.

Isso não causará surpresa na Irlanda do Norte, o primeiro laboratório do mundo em que foram usadas balas de borracha e plástico. Lá, essas armas supostamente “não letais” mataram dezessete pessoas, incluindo oito crianças entre os 10 e os 15 anos.

De Derry, na Irlanda do Norte, a Detroit, nos EUA, as forças policiais usaram repetidamente balas de borracha para infligir ferimentos graves ou morte a civis indefesos. Sempre foi uma forma diferente de violência letal, não uma alternativa a ela, e seu uso contra manifestantes deve ser tão inaceitável quanto o uso de munição letal.

O Exército Britânico e a Royal Ulster Constabulary (RUC – Polícia Real de Ulster, em tradução livre) começaram a usar balas de borracha nas ruas da Irlanda do Norte em 1970. Mais tarde naquela década, as forças de segurança do estado passaram a usar balas de plástico. No final dos anos 1990, soldados e policiais dispararam um total de mais de 120 mil balas de borracha e plástico.

O contexto em que as forças de repressão começaram a usar essas armas é revelador. Até a primavera de 1972, o governo britânico estava determinado a apoiar um governo na Irlanda, diante da forte oposição da minoria nacionalista. Manifestantes católicos de direitos civis se inspiraram no movimento de liberdade afro-americano dos EUA. Quando o Estado respondeu aos protestos com violência, alguns católicos ficaram desiludidos com a estratégia de luta pelos direitos civis e passaram a apoiar o Exército Republicano Irlandês (IRA).

No início dos anos 70, o governo britânico enviou seus soldados contra o IRA e manifestantes civis, na Irlanda. Mas havia um limite para o uso da força contra a população nacionalista. A Irlanda fazia parte do Reino Unido e os jornalistas podiam ir para lá com bastante facilidade. As vítimas da violência repressiva eram ocidentais, brancos, de língua inglesa, com uma rede de simpatizantes nos EUA. A repressão bruta não era uma estratégia viável no longo prazo.

O massacre do Domingo Sangrento (Bloody Sunday), em 30 de janeiro de 1972, quando tropas britânicas mataram catorze civis na repressão a uma marcha pelos direitos civis em Derry, foi um desastre para a imagem dos ingleses. Após o massacre, acabaram com o governo regional e criaram um pacote de reformas, esperando conquistar uma parte da comunidade nacionalista irlandesa. Além disso, recalibraram o uso da violência pelas forças de segurança, para garantir que não haveria mais domingos sangrentos.

É aqui que entram as balas de borracha. Não era uma questão de compaixão, mas de negação plausível. Quando os soldados lançam munição real contra uma multidão, eles sabem perfeitamente quais serão os resultados. Quando usam balas de borracha ou plástico, seus chefes políticos podem apresentar o fato à mídia como uma abordagem mais humana no controle de multidões.

De fato, as autoridades britânicas entenderam desde o início que esses projéteis eram muito mais perigosos do que admitiam. A primeira pessoa morta por uma bala de borracha na Irlanda do Norte foi um menino de onze anos, Francis Rowntree, em abril de 1972. Em 2017 (45 anos depois), um inquérito oficial descobriu que Rowntree morreu depois de ser baleado na cabeça por um soldado que “disparou sem aviso contra a multidão.” O legista também estabeleceu que o menino não participava de tumultos quando o soldado abriu fogo.

No mesmo ano, 1972, outra criança, Richard Moore, perdeu a visão depois que um soldado disparou uma bala de borracha contra seu rosto, em Derry. A família de Moore interpôs uma ação civil contra o governo britânico. Documentos estatais divulgados em 2013 mostraram que os assessores do governo pressionaram contra o julgamento, alegando que os procedimentos legais exporiam a verdade condenatória sobre as balas de borracha, que “poderiam ser letais” e “poderiam e causaram ferimentos graves”.

As novas balas de plástico usadas pelo Exército Britânico e pelo RUC desde meados da década de 1970 foram apresentadas como menos prejudiciais do que as balas de borracha. No entanto, dez das dezessete pessoas atingidas por disparos desses projéteis durante os protestos perderam a vida entre 1980 e 1984, com seis mortes somente em 1981.

Um neurocirurgião britânico que visitou o Royal Victoria Hospital de Belfast escreveu a Margaret Thatcher para informá-la sobre o impacto das balas de plástico em crianças:

“O crânio de uma criança é facilmente quebrado e penetrado por um objeto duro que viaja em alta velocidade. Uma bala de plástico que atinge a cabeça da criança não apenas penetra no crânio, introduzindo pequenos fragmentos de osso no cérebro, mas também causa considerável deformação local do tecido (…) os sobreviventes têm uma alta probabilidade de ficarem paralisados de um lado do corpo, além de sofrerem alterações intelectuais e de personalidade. Alguns provavelmente estarão tão incapacitados que seria melhor se não tivessem sobrevivido.”

Em sua resposta, a primeira-ministra britânica não fez nenhuma tentativa de contestar essas descobertas médicas, mas afirmou que o uso de balas de plástico era “estritamente controlado pelas normas da polícia e do exército”, sendo “o meio mais eficaz de controlar os recentes tumultos severos que são praticados”, de acordo com o princípio de usar um mínimo de força.

Três das pessoas mortas pelas forças de segurança no início dos anos 80 eram crianças. Eles incluíam Paul Whitters, um garoto de quinze anos, morto em Derry. Em 2007, o Ombudsman da Polícia da Irlanda do Norte descobriu que o assassinato de Whitters pela RUC foi “errado e injustificável”, e refutou a alegação de Margaret Thatcher sobre o uso responsável de balas de plástico:

“Nenhum aviso foi dado por alto-falante, e [a arma] foi disparada a uma distância menor que a permitida, de vinte metros. A justificativa da polícia para o tiroteio foi que a arma de bastão foi usada para impedir que um caminhão fosse sequestrado, e eles disseram que as regras permitiam isso. Não encontramos evidências de que Paul pretendesse sequestrar o caminhão ou que a segurança dos policiais estivesse em risco. Os policiais não disseram que a arma foi disparada porque havia um sério risco de ferimentos a alguém.”

Em 2019, a mãe de Paul, Helen Whitters, descobriu que havia um arquivo sobre a morte dele nos Arquivos Nacionais do Reino Unido. As autoridades britânicas decidiram manter o registro em segredo até 2059 (normalmente os arquivos são divulgados ao público após trinta anos). Whitters apelou à secretária da Irlanda do Norte, Karen Bradley, pedindo que divulgasse o arquivo. Mas Bradley rejeitou o pedido.

As forças de segurança britânicas continuaram usando balas de plástico nos anos 90 e além. Em 2003, um relatório da Comissão de Direitos Humanos da Irlanda do Norte alertou que a última rodada de balas de plástico, introduzida dois anos antes, “não era uma arma precisa nem segura”.

Em 2017, um estudo para o British Medical Journal analisou o impacto de “projéteis de impacto cinético” (KIPs, outro termo para balas de borracha). O estudo reuniu evidências da Irlanda do Norte, Turquia, Índia, EUA e outros países entre 1990 e 2017. Constatou que 3% dos feridos por balas de borracha morreram como resultado de seus ferimentos, enquanto 15,5% sofreram deficiências permanentes. Quase metade dos que foram atingidos na cabeça ou no pescoço foram mortos.

“Dada a imprecisão inerente, o potencial de uso indevido e as consequências associadas à saúde de ferimentos graves, incapacidade e morte, os KIPs não parecem ser armas apropriadas para uso em ambientes de controle de multidões. Existe uma necessidade urgente de estabelecer diretrizes internacionais sobre o uso de armas de controle de multidões para evitar ferimentos e mortes desnecessários”.

Richard Moore, que foi cegado por uma bala de borracha em 1972, pediu às pessoas que aprendessem com a história sombria do uso dessa arma na Irlanda do Norte: “Eles não deveriam tê-las trazido para as ruas. Estou vivo para falar sobre isso. Há crianças que não estão vivas para falar sobre isso.”

O “potencial para abuso” identificado pelo British Medical Journal é uma característica inerente às balas de borracha. Já vimos muitos relatos de policiais dos EUA disparando essas armas contra manifestantes e jornalistas, em vez de apontá-los para o chão, de acordo com o que manda o protocolo. Só há uma maneira de eliminar o perigo representado por essas armas: descartá-las completamente.

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