Cresce surto de varíola dos macacos nos EUA e país entra em emergência
O Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS, na sigla em inglês) norte-americano declarou a varíola dos macacos uma emergência de saúde pública na quinta-feira (4). Desde que o primeiro caso de varíola nos EUA foi identificado em meados de maio, mais de 6.600 contaminações foram detectadas no país, em 48 dos 50 estados, se tornando o epicentro do surto no mundo. Com 5% da população mundial, os EUA já têm 25% dos infectados.
A decisão segue anúncio no mês passado, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), da doença como uma emergência de saúde pública de interesse internacional. Raramente visto fora da África, o vírus, um primo menos mortal da varíola, agora desencadeou uma emergência global de 26.000 pessoas, atingindo 83 países, 76 dos quais historicamente não tinham visto a doença.
Em função da diminuta testagem, acredita-se que o número de contágios esteja bastante subestimado. O governo Biden vinha sendo fortemente criticado por especialistas em saúde pública por não agir mais rápido para lidar com a crise. Uma semana antes, a Europa era tida como o epicentro do contágio.
“A varíola está prestes a se tornar a próxima falha de saúde pública”, afirmou ao The New York Times de sábado Scott Gottlieb, ex-comissário da FDA, a agência sanitária norte-americana, e atual executivo da Pfizer. “A resposta de nosso país à varíola dos macacos foi atormentada pelas mesmas deficiências que tivemos com o Covid-19”, acrescentou, assinalando a falha em detectar o vírus em tempo hábil.
Avaliação com a qual o USA Today, outro dos principais jornais dos EUA, concorda, registrando que a história da disseminação da varíola dos macacos “parece para os especialistas frustrantemente como uma repetição dos primeiros meses da pandemia da Covid-19 em 2020”.
Segundo a publicação, “os testes demoraram muito para serem lançados. Os dados não revelaram toda a extensão do surto. A propagação não foi interrompida com rapidez suficiente”.
Com a varíola dos macacos – acrescenta – “deveria ser diferente, porque é muito mais difícil de transmitir, tratamentos e vacinas já estavam disponíveis, muito se sabia sobre um vírus descrito pela primeira vez em 1958, e tantas lições haviam sido supostamente aprendidas com a Covid-19”.
“Ninguém sabe a extensão total do surto na América”, sublinhou o USA Today, que em seu diagnóstico do quadro assinala que “os estados não precisam dizer ao governo federal quando têm um paciente e as dificuldades nos testes deixaram muitas pessoas sem diagnóstico”. A comunicação foi “tão dispersa” que muitas pessoas e médicos “não consideram o vírus uma possível causa de sintomas como febre, glândulas inchadas, dores no corpo e uma erupção cutânea reveladora”.
“Perderam-se oportunidades para impedir a propagação de um vírus que raramente mata, mas que pode causar dor e cicatrizes intensas”.
“É um déjà vu de novo”, disse Lawrence Gostin, professor universitário e especialista em direito global da saúde da Universidade de Georgetown, em Washington. “Estamos realmente voando no escuro.”
“Foi um desafio observar o que aconteceu nos últimos dois meses e meio”, disse ao jornal a Dra. Megan Ranney, médica de emergência e reitora acadêmica da Escola de Saúde Pública da Brown University em Rhode Island. “Estou perplexa com o motivo de estarmos onde estamos hoje.”
Para Ranney, uma série de fatores provavelmente contribuíram para a resposta inicial lenta, “incluindo prioridades concorrentes de agências federais”, “descentralização do sistema de saúde pública dos Estados Unidos, com muitas decisões deixadas para os 50 estados”, e “a exaustão que muitos funcionários de saúde pública sentem após mais de dois anos de luta contra a Covid-19”.
“Saúde pública subfinanciada”
Outra razão de fundo é a intensa privatização da saúde nos EUA e a falta de recursos para a saúde pública. “Se você financia algo com uma pequena fração do que é necessário para fazer o trabalho e depois o critica por não fazer o trabalho, não está sendo lógico”, disse Dr. Thomas Frieden, ex-diretor dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC). “Nós realmente subfinanciamos a saúde pública.”
Frieden relatou que se lembra de viajar para a República Democrática do Congo, na África, quando era diretor do CDC no início de 2010 e ouvir de autoridades que estavam preocupadas com a possibilidade de que a varíola e outras doenças infecciosas eventualmente se espalhassem pelo mundo. Mas “não havia recursos para combater essas doenças”, acrescentou. Concomitantemente, há dias o Congresso dos EUA aprovou um orçamento para o Pentágono de mais de 800 bilhões de dólares.
“Quem sabe por que não estamos agindo de forma mais agressiva, como deveríamos estar?”, questionou Jared Auclair, químico analítico e reitor associado da Northeastern University em Boston. “Não apenas deveríamos ter aprendido com a pandemia de coronavírus, mas é como uma repetição do HIV/AIDS do final dos anos 1980”. O vírus se espalha principalmente através do contato físico próximo, como o contato pele a pele.
Artigo do jornal chinês Global Times se referiu a outro problema de fundo na sociedade norte-americana, quando se vê diante de uma crise e, usando como base a declaração do ex-dirigente do CDC, disse que o diagnóstico “aponta para uma direção – o sistema político disfuncional. Por causa de tal sistema, sempre que surge uma crise, quando os políticos americanos devem se unir e enfrentar seu inimigo comum, eles estão apenas ocupados lutando entre si”.
Desse modo, acrescenta a publicação, “ninguém pode mobilizar os recursos do país para atingir uma meta acordada”. O que é uma enorme diferença em relação à experiência chinesa de mobilização e ação solidária e coordenada.
“O surto de varíola nos EUA, em alguns aspectos, parece estar repetindo a experiência do Covid-19. Menos de uma semana atrás, a Europa era o epicentro do vírus, mas agora, os EUA estão testemunhando a maior contagem mundial de casos de varíola dos macacos”, registrou o GT, que assinalou ainda que “um ar de desespero” é sentido entre alguns especialistas norte-americanos.
Depois da porteira arrombada, a ordem é ir atrás da tranca. Na terça-feira, Biden nomeou Robert Fenton como coordenador nacional de resposta à varíola da Casa Branca. Fenton — um administrador regional da Agência Federal de Gerenciamento de Emergências (FEMA), sem experiência em Saúde Pública — coordenará a resposta do governo federal ao surto. Como vice-coordenador, Demetre Daskalakis, diretor da Divisão de Prevenção de HIV/AIDS do CDC.
Algumas cidades e estados, incluindo Nova York, São Francisco, Califórnia, Illinois e Nova York, já haviam previamente declarado a varíola dos macacos uma emergência, providência que permitiu a liberação de fundos e recursos para suas respostas ao novo surto. O número insuficiente de vacinas está levando a enormes filas, por exemplo, em San Francisco.
Historicamente, a taxa de mortalidade por infecção para a estirpe de varíola dos macacos foi estimada em cerca de um por cento, semelhante à da Covid-19. Um estudo recente estimou o atual número reprodutivo global (valor R) em cerca de 1,29 [cada contagiado infecta outros 1,29 indivíduos]. Nos EUA, essa taxa vai a 1,55, o valor mais elevado entre todos os países não endêmicos.
A varíola dos macacos tem sintomas semelhantes porém menos graves do que a varíola, que foi erradicada em 1980. Cerca de 10% dos casos requereram hospitalização, principalmente por conta do sofrimento que acarreta. O vírus causa lesões em qualquer parte do corpo, cuja progressão frequentemente é muito dolorosa.
O indivíduo infectado deve se isolar durante cerca de um mês, sendo que a transmissão pode se dar inclusive antes do início das lesões. Acredita-se que os modos de transmissão dominantes sejam o contato pele com pele e gotículas respiratórias.
Embora os meios de comunicação venham em grande parte retratando a varíola dos macacos como afetando apenas ‘homens que fazem sexo com homens’, na realidade é uma doença infecciosa que ameaça toda a sociedade. Um estudo de 2016 sobre a varíola dos macacos descobriu que os machos representavam apenas 57% de todas as infecções.
Publicações especializadas estão advertindo que, embora seja fato de que a doença venha se propagando nesse momento essencialmente nesse público, admitir que prevaleça a retórica de uma “nova peste gay”, como se deu nos anos 1980 em relação à AIDs, além de estúpido e discriminatório, do ponto de vista estritamente sanitário é desastroso.
Segundo a BBC, os médicos têm se surpreendido que os sintomas mais comuns da varíola dos macacos estejam diferentes do que foi descrito em surtos anteriores, quando as manifestações mais comuns da infecção eram febre, mal-estar, inchaço dos gânglios, dor de cabeça, suadouro e o surgimento de várias lesões na pele, principalmente no rosto, na palma das mãos e na sola dos pés.