CPI: Deputados veem omissão do governo Bolsonaro em fala de secretária
Deputados do PCdoB avaliaram que o depoimento da secretária de Gestão do Trabalho do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, aponta para a falta de responsabilidade do governo frente à maior crise sanitária das últimas décadas e preocupa por posições contrárias às orientações de entidades científicas. A secretária informou à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid que não foi alertada da falta de oxigênio em sua visita à Manaus, reforçou o uso de medicamentos sem eficácia comprovada no tratamento da Covid-19 e culpou as gestões estaduais e municipais pelo alto número de mortes causadas pela doença.
Assim como os ex-ministros Eduardo Pazuello, Ernesto Araújo e o ex-secretário Fábio Wajngarten, Mayra exime o governo federal pelo número elevado de mortes, muitas vezes contrariando as próprias palavras reproduzidas em vídeos e áudios durante a sessão da CPI da Covid, nesta terça-feira (25). Segundo a médica, o presidente da República, Jair Bolsonaro, não teve participação efetiva em nenhuma medida de combate à doença.
Os parlamentares denunciaram a omissão do Ministério da Saúde e do governo federal no combate à pandemia. O deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP) questionou a omissão do Estado. “As pessoas morrendo sem oxigênio e nada é responsabilidade do Ministério da Saúde!”, escreveu em seu perfil no Twitter.
O deputado também apontou para a omissão do presidente Jair Bolsonaro, que se reuniu apenas uma vez com a equipe do Ministério da Saúde para tratar do combate à pandemia e nunca demonstrou apoio ao distanciamento necessário para evitar a transmissão do vírus.
“Descaso criminoso! A capitã Cloroquina acaba de admitir que Bolsonaro jamais fez, sequer uma vez, a orientação pelo distanciamento. E, mais chocante, em mais de um ano de pandemia, Bolsonaro fez apenas uma reunião com a equipe do Ministério da Saúde”, criticou.
A deputada federal Alice Portugal (PCdoB-BA) também considerou “inadmissível” a alegação de Mayra sobre a atuação “positiva” do governo Bolsonaro na pandemia.
“Inadmissível que a secretária Mayra Pinheiro culpe o vírus e não a má gestão do governo em lidar com a crise sanitária”, apontou.
O líder do PCdoB na Câmara, deputado federal Renildo Calheiros (PE), questionou a afirmação de Mayra Pinheiro sobre o sucesso do país no combate à pandemia. “450 (mil) mortos quer dizer que estamos bem?”, questionou.
O deputado federal Daniel Almeida (PCdoB-BA) classificou o depoimento da secretária do Ministério da Saúde como uma “zombaria”.
“A capitã Cloroquina Mayra Pinheiro defende seu medicamento ineficaz e causador de mortes, criticou lockdown, disse que o Ministério não precisa seguir opiniões médicas e que a responsabilidade pela Covid-19 é do vírus. Mais parece uma zombaria do que um relato”, disse.
A depurada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) apontou também para as mentiras no depoimento de Mayra Pinheiro na CPI da Covid. Em uma ocasião em que defendia a não observância de orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS), a secretária argumentou que a entidade havia errado no passado quando recomendou que mulheres vivendo com HIV não deixassem de amamentar os seus filhos, mesmo com o risco de transmissão. A deputada apontou o equívoco.
“É no mínimo leviana a declaração da Dra. Mayra sobre a OMS na CPI. A orientação da organização de manter o aleitamento de mulheres HIV+ é para países que a fome é enorme e os bebês poderiam morrer sem este leite”, explicou.
Não só em relação à amamentação de mães com HIV Mayra mentiu. Segundo a equipe de checagem de informação contratada pelo relator da CPI, senador Renan Calheiros (MDB-AL), a depoente mentiu em 11 ocasiões.
Capitã Cloroquina
Durante o depoimento, Mayra Pinheiro foi pressionada para se posicionar objetivamente em relação ao uso do medicamento cloroquina no combate à Covid-19, no desenvolvimento do aplicativo TrateCov e à atuação do Ministério da Saúde na crise de oxigênio em Manaus. Na maior parte das vezes, Pinheiro relativizou as perguntas e argumentou que “na Covid, tudo é incerto”.
Imunidade de rebanho
Logo no início da sessão, a médica Mayra Pinheiro negou ser favorável à imunidade de rebanho e foi desmentida por vídeo transmitido na própria CPI a pedido do relator. Na gravação, ela defende que parcelas da população deveriam permanecer expostas ao vírus para o avanço natural da doença sem grandes prejuízos à saúde da população.
“O áudio que o senhor acabou de mostrar, se trata de uma colocação referente à população pediátrica e, na época, eu defendia que as crianças não fossem retiradas das escolas”, argumentou Pinheiro.
Seguindo o raciocínio da depoente, a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) questionou se a médica defendia então a ampla contaminação em crianças. A secretária do Ministério da Saúde argumentou que a transmissão em crianças é menor do que em adultos e que, neste caso, seria feito um isolamento apenas dos grupos de risco.
Diante das gravações, Mayra Pinheiro ainda tentou negar suas posições: “Eu preciso que isso seja contextualizado. Eu acho que o efeito rebanho não pode ser usado indistintamente para as populações, senador, porque não é possível que a gente vá prever quanto eu tenho que expor da população para que eu atinja esse benefício”, afirmou.
Cloroquina e outros medicamentos
Ao negar a teoria de imunidade de rebanho, Mayra Pinheiro reforçou a importância de medicamentos que ainda não possuem eficácia comprovada. Segundo a médica, em momentos de crise sanitária como a atual, é possível se apoiar em evidências como os relatos clínicos apontados por médicos em municípios brasileiros e em outros países que possuem protocolo com remédios off label.
“Eu trouxe para vocês todos os trabalhos publicados até hoje. A gente não está falando em nível máximo de evidência porque não vamos obter isso nem para os medicamentos antivirais”, justificou a secretaria.
O tema tem sido amplamente debatido na comissão, que foi apelidada nos primeiros dias de CPI da Cloroquina. No entanto, a comunidade científica já abandonou a cloroquina como um possível remédio para o tratamento da doença.
Há mais de 2.500 artigos científicos devidamente revisados e publicados sobre cloroquina no âmbito da Covid-19 no mundo, mas os resultados não apontam para avanços significativos no combate à doença. Os Estados Unidos – um centro no desenvolvimento de pesquisas sobre novos medicamentos –, por exemplo, registraram 58 pesquisas sobre cloroquina em 2020 e nenhuma em 2021.
Para defender o “tratamento precoce” com uso de medicamentos sem comprovação, Pinheiro citou que todos em sua casa tomaram remédios sem comprovação científica como forma de prevenção e combate à doença no estágio inicial. Seu pai, apesar de medicado com cloroquina, encontra-se internado com Covid-19.
O senador Otto Alencar (PSD-BA) questionou a defesa de Mayra Pinheiro sobre a cloroquina e os estudos por ela defendidos. “Isso não é sério, não é honesto, não é direito. A medicina, vossa senhoria sabe, exige integralidade, verdade, consciência, pesquisa para se aplicar uma droga.” O senador ainda relembrou que o atual ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, reconheceu o risco à saúde do paciente no uso de cloroquina sem a devida observação às melhores práticas médicas.
Associada ao nome do remédio, Mayra Pinheiro questionou apenas a designação “capitã”, pois não é vinculada às forças de segurança, mas não apresentou nenhuma objeção à associação de seu nome com o medicamento.
TrateCov
O aplicativo desenvolvido no Ministério da Saúde que recomendava o uso de medicamentos sem eficácia para o “tratamento precoce” de Covid foi um dos motivos que levou Mayra Pinheiro à CPI. Ela e sua equipe foram apontadas pelo ex-ministro Pazuello como responsáveis pela elaboração da plataforma que recomendava dosagens de hidroxicloroquina indiscriminadamente, até para crianças.
Sobre o tema, Pinheiro confirmou a versão de Pazuello de roubo de dados e defendeu a utilização da “calculadora médica”. Segundo a secretária, o aplicativo deveria acelerar o diagnóstico da doença e indicar ao paciente o tratamento mais adequado. No entanto, independente dos sintomas registrados e das características dos pacientes, o aplicativo recomendava dosagens similares dos mesmos remédios.
Questionada sobre os parâmetros do aplicativo, Pinheiro afirmou que o projeto foi elaborado de acordo com a pesquisa internacional “AndroCov” e que a publicação do protótipo ‘roubado’ dos sistemas do ministério não interferia nos parâmetros do aplicativo, mas as simulações feitas foram inadequadas. Apesar do ato ilegal, a plataforma saiu do ar apenas para cumprir a lisura da investigação e não porque apresentava problemas, segundo a médica.
O pesquisador Estêvão Gamba, doutor em Ciências pela Unifesp, encontrou o artigo “AndroCov” em um portal eletrônico de artigos científicos e constatou que não houve nenhuma citação ao estudo na comunidade científica, que é um indicativo que o estudo não possui relevância para nortear uma política pública no país.
Crise em Manaus
O aplicativo foi desenvolvido inicialmente para atender à demanda por diagnósticos mais rápidos em Manaus, que agonizava sem leitos, testes e oxigênio. A secretária integrou uma missão no início do ano para avaliar os recursos disponíveis na capital amazonense antes do ápice da segunda onda de Covid-19. Acompanharam a gestora técnicos do ministério da Saúde e uma equipe de médicos voluntários.
A médica alega que encontrou falta de leitos, de medicamentos, de equipamentos de segurança, de testes para diagnosticar a doença e atribuiu aos governos estaduais e municipais a inação durante a crise. A depoente, no entanto, afirma que não foi avisada da eminente falta de oxigênio.
O aviso sobre a escassez de oxigênio que levou centenas de amazonenses à óbito só chegou à Mayra Pinheiro quando já se encontrava em Brasília e teria alertado Eduardo Pazuello sobre o tema no dia 8 janeiro, o que contraria a versão do general da ativa. O ex-ministro da Saúde afirmou à CPI que soube da escassez de oxigênio apenas no dia 10 de janeiro.
Para o deputado Orlando Silva, Mayra e Pazuello foram “pegos na mentira” com as versões contraditórias sobre o fornecimento de oxigênio na capital amazonense.
“Pegos na mentira! Ou a dra. Mayra ou Pazuello estão mentindo. Ele diz que soube da falta de oxigênio no dia 10 de janeiro, ela insiste que ele soube no dia 8. Quantos morreram pela omissão?”
Pinheiro ainda afirmou que não é competência do Ministério da Saúde monitorar ou fornecer oxigênio e que não seria possível se antecipar à demanda por tubos de oxigênio porque “a Covid-19 é uma doença grave de desfecho incerto.”
A secretária confirmou à CPI que o Ministério enviou ofício à Secretaria de Saúde de Manaus para estimular a gestão municipal a usar medicamentos contra a covid-19, entre eles, a cloroquina. No documento, ela classificou como “inadmissível” a não adoção da orientação pela capital amazonense.
Orlando Silva voltou a criticar a falta de responsabilidade do governo com a população e questionou a omissão do governo.
“O mais inacreditável na tragédia de Manaus é que ninguém sabia, ninguém tem culpa. Notem: não faltou bandaide e gaze nos hospitais. Faltou oxigênio, O2, ar para a ventilação e intubação de pacientes. Centenas morreram. E eles insistem que ninguém sabia, ninguém avisou. Genocidas!”
A deputada Jandira Feghali também ironizou a visita de membros do Ministério da Saúde à Manaus dias antes do colapso do sistema de saúde sem o reconhecimento da iminente falta de oxigênio.
“Outra missão cumprida do governo Bolsonaro! Dra Mayra assume na CPI que recebeu a missão de organizar a visita a Manaus, mas diz que não foi informada do problema do oxigênio. A visita do Ministério da Saúde era pra quê? Conhecer o nado dos botos?”
Orientações de entidades científicas
Defensora de um tratamento repudiado pela comunidade científica internacional, Mayra Pinheiro foi interrogada em diversos momentos pela insistência com medicamentos sem eficácia comprovada. Como resposta, a secretaria reforçou a posição de independência entre o ministério da Saúde e demais entidades científicas nacionais e internacionais que publicaram recomendações de combate à pandemia.
Como exemplo de entidades que se posicionaram contra o “tratamento precoce”, foram citadas a Organização Mundial de Saúde, Sociedade Brasileira de Pediatria, Anvisa, Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), FDA dos Estados Unidos (Food and Drug Administration) entre outras.
Apesar de concordar com o uso de máscaras e distanciamento social, a médica condenou o lockdown e defendeu com afinco a prescrição de cloroquina e outros medicamentos.
A deputada Professora Marcivânia (PCdoB-AP) questionou a autoridade da médica perante às outras entidades.
“Mayra, a “capitã cloroquina” confirma que não seguiu as orientações da OMS em relação ao medicamento e ainda questiona estudos científicos da instituição global em relação ao medicamento… Que autoridade científica esse povo tem?! Não posso crer que seja tão somente arrogância!”, disse a parlamentar.
Para justificar a contrariedade às instituições mais respeitadas na comunidade científica internacional, Pinheiro utilizou como argumento a particularidade do combate à pandemia e que evidências justificam a orientação dado pelo Ministério da Saúde. No entanto, ela não citou entidades que recomendam o uso desses medicamentos ou os países que adotam protocolos semelhantes.
Por Rodrigo Abdalla
(PL)