Novos depoimentos ao comitê da Câmara dos EUA de investigação da invasão do Capitólio em 6 de janeiro vêm reforçando a percepção de que o então presidente Donald Trump, derrotado nas urnas, agiu para virar a mesa, fraudar o resultado da eleição de 2020, violar a Constituição e se proclamar ‘reeleito’. “Nossa democracia chegou perigosamente perto da catástrofe”, afirmou o presidente do comitê, o deputado democrata Bennie Thompson.

Ele alertou que o perigo “ainda não foi embora” e segue “corrompendo nossas instituições democráticas”. De acordo com os integrantes da ‘CPI’, já há evidências suficientes para o Departamento de Justiça considerar uma acusação criminal sem precedentes contra o ex-presidente Trump por tentar anular os resultados das eleições de 2020.

Nas audiências anteriores, ficou patente o papel de Trump na convocação da marcha a Washington e seu direcionamento contra o Capitólio, em conluio com supremacistas, negacionistas e haters, ao mesmo tempo em que o Congresso e o próprio vice-presidente, Mike Pence, ficavam entregues à própria sorte por horas, com a cumplicidade de operadores trumpistas no Pentágono.

Mesmo após a horda ser retirada do Capitólio pela Guarda Nacional, 147 congressistas republicanos – entre deputados e senadores – se mantiveram fiéis ao enredo golpista, votando contra a certificação da vitória de Biden.

Analistas apontam que o pedido de Trump ao responsável pelo processo eleitoral no estado da Geórgia, o secretário de Estado Brad Raffensperger, por telefone, para que arrumasse “11.879 +1” votos para favorecê-lo no colégio eleitoral – Biden saíra vencedor – pode se tornar uma “arma fumegante” que possibilite indiciar criminalmente o bilionário pela tentativa de golpe. Uma gravação dessa “conversa” já veio a público através do New York Times e do Washington Post.

“Uma estaca foi colocada no coração da democracia americana em 6 de janeiro de 2021, e nossa democracia hoje está no fio da navalha”, afirmou à ‘CPI’ o juiz federal aposentado Michael Luttig, um republicano conservador e conselheiro informal do vice-presidente Pence.

“Na verdade, 6 de janeiro foi uma guerra irresponsavelmente instigada e processada pelo ex-presidente, seus aliados de partidos políticos e seus apoiadores”, acrescentou.

Se a ‘proclamação’ da ‘reeleição’ de Trump tivesse prosperado, assinalou Luttig, os EUA teriam mergulhado “na primeira crise constitucional desde a fundação da república”.

“Aqueles que pensam que porque a América é uma república, roubo e corrupção de nossas eleições nacionais e processo eleitoral não são roubo e corrupção de nossa democracia estão muito enganados. A América é uma república e uma democracia representativa e, portanto, um ataque sustentado às nossas eleições nacionais é… um ataque à nossa democracia, apesar de qualquer teoria política”, enfatizou o ex-magistrado.

Luttig advertiu ainda que a “insistência falsa e imprudente” de Trump de que ‘venceu’ as eleições de 2020 “destruiu a confiança dos americanos em suas eleições nacionais”.

Inconstitucional 

O advogado geral da vice-presidência, Greg Jacobs, também testemunhou que seu escritório respaldou Pence quanto à fundamentação jurídica de que não cabia interferir na certificação conforme a constituição, que apenas concede ao cargo o papel cerimonial de abrir as urnas e ler os resultados – o que depois levaria aos gritos de “enforquem Pence” nos corredores invadidos e à forca na parte externa.

Trump tentava arrancar de Pence que rejeitasse os votos no colégio eleitoral e o declarasse o vencedor ou enviasse os votos de volta às assembleias estaduais em seis estados cruciais em que os republicanos eram maioria para execução da fraude, substituindo delegados democratas ilegalmente por republicanos, fabricando uma lista falsa para o colégio

eleitoral, criando um impasse para que os tribunais – isto é, a Suprema Corte de maioria arquiconservadora – interviessem.

“Só quero 11.780 votos”

Na audiência de terça-feira (21), a ‘CPI’ se concentrou em ouvir depoimentos de autoridades e funcionários eleitorais que foram pressionados a atuarem em prol do golpe ou ameaçados por exercerem seu dever.

Depuseram no primeiro painel o presidente da Câmara dos Deputados do Arizona, Rusty Bowers, e o secretário de Estado da Geórgia, Brad Raffensperger, ambos republicanos.

Raffensperger confirmou os fatos, já notórios, do longo telefonema do próprio Trump, em que o derrotado presidente exigiu dele que virasse o resultado da Geórgia, que favorecia Biden (por 11.779 votos). “Só quero encontrar 11.780 votos”, pressionou. Trump ameaçou o secretário de Estado da Geórgia com processos criminais e alertou que, se continuasse a desafiar a Casa Branca, seria “perigoso” para ele.

Bowers testemunhou que Trump e seu advogado Rudy Giuliani o chamaram para exigir que ele convocasse uma sessão especial da legislatura estadual do Arizona para carimbar uma lista falsa de eleitores pró Trump em oposição à lista certificada de eleitores de Biden. No Estado, Biden venceu por uma margem de 10.457 votos.

Do advogado de Trump, John Eastman, – que defendia a tese espúria de que as legislaturas estaduais “tinham autoridade ‘plenária’ para rejeitar eleitores com base no voto popular e certificar sua própria chapa”-, Bowers ouviu a ‘orientação’ de não se preocupar com a ilegalidade da destituição do voto popular: “apenas faça isso e deixe os tribunais resolverem”.

Na audiência, vieram à tona episódios de gangsterismo explícito de parte dos trumpistas. Raffensperger testemunhou que recebeu milhares de textos e e-mails ameaçadores, muitos de natureza sexual atacando sua esposa. A certa altura, uma multidão pró Trump invadiu a casa de sua filha.

Bowers relatou que uma multidão de trumpistas chegou à sua casa e um deles, empunhando uma pistola e ameaçando seu vizinho, tinha “três barras no peito”, o símbolo da milícia fascista Três por cento.

No painel seguinte, duas funcionárias eleitorais do condado de Fulton (Geórgia), ‘Shaye’ Moss e sua mãe, Ruby Freeman, relataram que a vida delas foi “virada de cabeça para baixo”, depois de falsamente acusadas por Giuliani de terem ‘expulsado os fiscais’ de um centro de apuração de votos em Atlanta (que tem forte eleitorado negro) para supostamente trazerem malas cheias de votos falsos, “todos para Biden”.

As duas receberam uma avalanche de ameaças e mensagens racistas e em um determinado momento a idosa Ruby pediu socorro à filha por estar sendo ameaçada de ter a casa invadida para uma “prisão de cidadãos” – ou seja, sob risco de rapto e linchamento. O FBI a aconselhou a deixar a casa por algumas semanas.

Em artigo para a MSNBC , o fundador e presidente do Democracy 21, Fred Wertheimer, e Norman Eisen, do Brookings Institute, afirmaram que a “prova conclusiva” do “esforço ilegal de Trump para roubar a eleição presidencial está escondida à vista de todos”.

“É a fita da ligação de Trump em 2 de janeiro de 2021, pedindo ao secretário de Estado da Geórgia, Brad Raffensperger, que apenas ‘encontre 11.780 votos’”, argumentaram.

“O juiz distrital dos EUA David Carter já descobriu que Trump e seus co-conspiradores provavelmente cometeram crimes federais… Carter concluiu que Trump e John Eastman, um conselheiro-chave, ‘lançou uma campanha para derrubar uma eleição democrática, uma ação sem precedentes na América história’, acrescentando: ‘A ilegalidade do plano era óbvia’”.

Assim, para Wertheimer e Eisen, a “ligação de uma hora gravada em fita de 2 de janeiro que Trump fez para Raffensperger se destaca como uma arma fumegante. Trump não tem defesa legal para esta ação”.

“Quando Trump pediu a Raffensperger que ‘encontrasse’ um número específico de novos votos, ele estava pedindo que manipulasse o resultado. Ele fez isso sem se preocupar com a verdade e diante de uma contagem inicial de votos e duas recontagens que já haviam ocorrido – com todas as três mostrando a Biden o vencedor”.

“Trump pressionou Raffensperger a mudar a contagem para um número que lhe daria os 16 votos eleitorais da Geórgia”, acrescentam os autores, “e o fez sem base legal e sem fatos para justificar suas alegações”.

“Se os fatos estabelecerem que o telefonema de Trump para Raffensperger violou os estatutos criminais – como acreditamos – o cidadão privado Trump deve ser tratado como qualquer outro infrator: indiciado e processado em toda a extensão da lei”, conclamaram.

Por sua vez, a ‘CPI’ decidiu adiar para julho as duas audiências públicas finais (de sete programadas) e poderá, caso seja necessário, inclusive realizar mais. Entre as novas evidências há imagens de vídeo entregues por um documentarista britânico que registrou a campanha de Trump. O comitê de investigação também está trabalhando para marcar uma entrevista com Virginia “Ginni” Thomas, a ativista conservadora e esposa do juiz da Suprema Corte Clarence Thomas, para que esclareça suas comunicações com a equipe de Trump durante a disputa eleitoral e no dia da invasão do Capitólio.