Matéria de sábado do New York Times trouxe à luz um problema central no combate ao surto de coronavírus nos EUA: como os doentes, ou suspeitos de contágio, vão conseguir arcar com os custos, num país de saúde hiperprivatizada?

Um cidadão norte-americano, evacuado pelo governo Trump de Wuhan, na China, e levado, com a filha de três anos, para a quarentena obrigatória na base de marines de Miramar, na Califórnia, deparou-se ao serem liberados com “uma pilha de contas médicas” no total de US$ 3.918, registrou o NYT.

A conta incluía US$ 2.598 da ambulância que os levou ao hospital e havia até 90 dólares cobrados por radiologistas que lêem as radiografias dos pacientes e sequer trabalham no hospital.

“Minha pergunta é por que estamos sendo cobrados por essas estadias, se elas eram obrigatórias e não tínhamos escolha no assunto?” disse Frank Wucinski, natural da Pensilvânia. “Presumi que tudo estava sendo pago”, acrescentando que “não tivemos escolha”. “Quando as contas apareceram, foi só uma quentura no meu estômago, tipo ‘como eu pago isso?’”

Ao analisar o caso, a pedido do NYT, o professor de direito global de saúde na Universidade de Georgetown, Lawrence Gostin, disse que “a regra mais importante da saúde pública é obter a cooperação da população”. “Existem razões legais, morais e de saúde pública para não cobrar dos pacientes”, enfatizou.

Também o Miami Herald relatou que Osmel Martinez Azcue recebeu um aviso de seu plano de saúde de uma cobrança de US$ 3.270 por ter se consultado no Jackson Memorial Hospital na volta de uma viagem de trabalho à China, com medo de ter contraído coronavírus.

“Enfermeiras em trajes protetores brancos pulverizaram algum tipo de fumaça desinfetante debaixo da porta” antes de entrar na sala fechada em que ele foi isolado, disse Azcue. Depois, pediram que tirasse uma tomografia computadorizada para detectar coronavírus, mas ele exigiu um teste de gripe primeiro. Deu positivo para gripe e recebeu alta.

“A experiência de Azcue mostra o custo potencial dos testes para uma doença que os epidemiologistas temem que possa se transformar em uma crise de saúde pública nos EUA”, concluiu o jornal.

Em suma, qualquer suspeita de gripe pode custar os olhos da cara, num país em que a medicina virou uma mercadoria cara e inacessível, onde americanos, em meio ao surto da Covid-19 podem ser achacados ao procurarem um hospital. Um país onde dívidas médicas podem até levar à prisão, como denunciado recentemente pela CBS News.

Como alertou o Washington Post, “preocupações com contas médicas e salários perdidos podem dificultar os esforços anticoronavírus nos EUA”. A CNN está consultando o público se já topou com uma conta médica salgada em função da epidemia, em enquete on-line.

O problema dos “salários perdidos” apresentado pelo Post é que a lei que permite que o cidadão que trabalha não seja descontado por falta ao serviço por estar doente em certo número de dias por ano – instaurada por Obama – não garante o pagamento dos dias não trabalhados. Em consequência, muitos podem vir a hesitar em faltar ao serviço ao se sentirem doentes, medida de proteção indispensável aos demais funcionários numa situação de epidemia.

Segundo o Business Insider, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) não estão cobrando pacientes pelos testes de coronavírus, mas “há outras cobranças que você pode ter que pagar, dependendo do seu plano de saúde ou da falta dele”. “Uma internação hospitalar por si só pode ser cara e você provavelmente terá que pagar por testes para outros vírus ou condições”, advertiu.

É por isso que defensores da saúde pública e especialistas médicos estão exigindo que o governo federal arque com os testes de coronavírus e todos os custos relacionados. “Contas médicas surpreendentes e enormes garantirão que as pessoas com sintomas não sejam testadas, isso é ruim para todos”, destacaram.

A proposta de Trump de deixar por conta dos monopólios farmacêuticos privados a pesquisa e desenvolvimento da vacina contra o novo coronavírus também foi repudiada por especialistas e por líderes políticos, como o senador Bernie Sanders, que a chamou de “ultrajante”.

“Na doutrina de Trump, se você é rico pode comprar uma vacina e assim não sucumbir diante da doença, mas, se é pobre ou trabalhador, pode ter de ficar doente ou até morrer. Isso é inaceitável. Temos que ter uma vacina acessível a todos”, enfatizou o senador.

Quanto à delegação, de Trump, ao ex-CEO da Eli-Lily, Alex Salazar, da função de supervisionar o desenvolvimento da vacina, Sanders reagiu dizendo que “é claro que assim não vai haver vacina acessível para todos”. Salazar é conhecido por ter, quando CEO, feito o preço da insulina dobrar, e já disse que não pode controlar preço de vacina, porque senão as corporações “não investem”.

“O coronavírus nos lembra que estamos juntos nisso”, escreveu Sanders. “Não podemos permitir que os americanos ignorem as consultas médicas por causa de contas ultrajantes. Todos devem obter os cuidados médicos de que precisam sem abrir a carteira – por uma questão de justiça e saúde pública”.

Gostin assinalou que, se o vírus afetar os EUA da mesma forma que ocorre com outros países, os centros de saúde poderão ficar lotados. “Não apenas veremos muitas mortes”, disse ele ao Los Angeles Times, “mas veremos de 5 a 20% das pessoas infectadas que precisam de hospitalização. Como a América vai lidar com isso?”

Assim, o “Medicare para Todos” – um sistema público de saúde no país mais rico do mundo – pode se tornar uma discussão central nas próximas eleições.

Esta semana, a tática de Trump de empurrar com a barriga o combate ao coronavírus – o que fez por mais de um mês – implodiu, com os EUA já com nove mortes por Covid-19 até terça-feira e casos confirmados em 15 estados.