Comissão da OAB vê graves indícios do crime de genocídio
Em seu parecer encaminhado nesta semana à CPI da Covid, a Comissão Especial de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas da Ordem dos Advogados do Brasil enumera “graves indícios da prática do crime de genocídio pela sujeição de povos e comunidades indígenas a condições de vida tendentes a provocar: suas destruições físicas, total ou parcialmente”. No documento, a comissão apresenta a conclusão de que o conjunto dos atos comissivos e omissivos implementados pela administração pública da União, por expressa orientação e concepção do Presidente da República, enquadram-se no crime tipificado também como genocídio pelo Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.
Assinado pelo presidente da comissão da OAB, Paulo Machado Guimarães, o documento é destinado ao senador Omar Aziz, que preside a Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado Federal instaurada para apurar ações e omissões da administração pública da União em relação à pandemia. O parecer foi apresentado pela OAB como forma de subsídio ao trabalho dele, do relator, o senador Renan Calheiros, e dos demais integrantes da comissão.
No parecer, a OAB enfatiza que compete à União demarcar as terras que os Povos Indígenas tradicionalmente ocupam; e proteger e fazer com que seus bens sejam respeitados. Com base no artigo 231º da Constituição Federal, a Ordem sustenta que os gestores públicos da União não têm o poder discricionário no sentido de discernir se podem ou não demarcar uma terra tradicionalmente ocupada por índios, ou proteger ou não os bens indígenas e fazer com que sejam ou não respeitados. “A Comissão Especial de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas do Conselho Federal dia OAB tem percebido, por parte do Presidente da República, conduta no sentido de não se submeter às determinações previstas no referido artigo 231”, salienta.
No documento, a comissão recorda que um dos primeiros atos de Bolsonaro consistiu na transferência da Funai para o Ministério da Agricultura e Pecuária, por intermédio de medida provisória que foi derrubada por ações de inconstitucionalidade no STF. “Como se pode perceber, já no início de seu Governo, o Presidente da República Jair Messias Bolsonaro, já demonstrava grave e perigosa disposição em confrontar a ordem constitucional vigente”, diz o texto.
Povos Yanomami e Ye’kwana
A comissão da OAB aponta ainda que a Funai também insistiu em conceber e editar Instruções Normativas e Resoluções que representam grave exposição dos Povos e Comunidades Indígenas a situações tendentes a lhes provocar danos e precariedade em suas vidas, como em Roraima, onde o Povo Yanomami está submetido às graves consequências do garimpo em terras indígenas.
Crimes contra a humanidade
No texto enviado à CPI da Covid, a entidade recorda que a Funai é a sucessora administrativa do Serviço de Proteção aos Índios (SPl), um órgão nascido em 191O, na chamada República Velha, e extinto em 1967, como consequência de uma sucessão de escândalos, particularmente denunciados no célebre “Relatório Figueiredo”, da lavra do procurador Jáder Figueiredo, que arrolava diversos crimes contra a humanidade perpetrados contra os indígenas ao longo das décadas de 1940 a 1960.
A Ordem constata que a Funai é, hoje, um órgão combalido e depauperado, completamente incapaz de fornecer infraestrutura no combate ao garimpo em terras indígenas ou mesmo de garantir a sobrevivência física e cultural dos povos. As terras indígenas correspondem, no Brasil, a cerca de 12% do território nacional e os indígenas chegam à casa de 1 milhão de pessoas. Os servidores efetivos do quadro de pessoal da Funai não passam de 1 .500 pessoas. A comissão afirma ainda que houve nomeações dos cargos em comissão na autarquia, que inserem no quadro pessoas absolutamente ignorantes de história do indigenismo e direitos dos Povos Indígenas.
Terra Indígena Ituna-Itatá
Os advogados ressaltam ainda a situação dos povos indígenas isolados de Ituna-Itatá, localizada nos municípios de Altamira e Senador José Porfírio, no Pará. A Funai editou portaria em 2011 que vedou expressamente a exploração de qualquer recurso natural nos limites da terra indígena, cuja superfície foi então definida como de 137.765 hectares e, posteriormente, em 142.402 hectares. Em maio de 2017, a fundação negou solicitação da Companhia Elétrica do Pará para a instalação de uma rede de energia elétrica na terra indígena. O impacto sinérgico de grandes empreendimentos planejados para a região levou o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) a divulgar, em dezembro de 2017, um Relatório sobre os direitos da população atingida pela implementação da usina hidrelétrica de Belo Monte e da mineradora Belo Sun. O CNDH recomendou à Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará que, na análise do licenciamento, fosse considerado o “eventual impacto sobre povos indígenas isolados, considerando a proximidade do empreendimento com a Terra Indígena ltuna-ltatá”, requerendo, nessa toada, que fossem procedidas as “adequações necessárias ao projeto, para a garantia da vida e proteção desses povos”.
Contudo, o que se verificou foi o incremento da extração madeireira acompanhado por ações tendentes à grilagem de terras e legalização do desmatamento. Em manifestação enviada ao MPF, a organização não governamental Greenpeace Brasil afirmou que a terra Ituna-ltatá foi “a mais desmatada em 2019, entre agosto de 2018 e julho de 2019, representando quase 30% do desmatamento de todas as terras indígenas na Amazônia neste período”. Após uma série de cruzamento de dados, o Greenpeace teria identificado que a ltuna-ltatá foi palco para triangulação de gado e lavagem de madeira.
O fato de a terra indígena possuir 94% de sua superfície recoberta por cadastros ambientais rurais, mais de um terço dos quais possuía áreas superiores a 1.000 hectares, evidenciaria que “os beneficiários dessas invasões são grandes proprietários e grileiros de terra atuando de forma criminosa na especulação imobiliária”.
O desmatamento detectado no interior dessa terra indígena foi de 73 hectares, em 2015; 233 hectares, em 2016; 1 .337 hectares, em 2017; 1.537 hectares, em 2018; 12.074 hectares, em 2019; e 6. 190 hectares, em 2020. Ainda que o desmatamento na terra indígena tenha zerado a partir de março de 2020, voltou a ser detectado novamente em agosto e setembro do mesmo ano, segundo os dados do Sirad X. De acordo com a análise de um relatório do CNDH, dentre as ações adotadas durante as operações do lbama que colaboraram para a queda do desmatamento estavam o fechamento de serrarias clandestinas, a retirada do gado dos invasores e o fechamento de postos de combustível clandestinos nas vilas próximas. Apesar dos resultados positivos, os coordenadores dessas operações foram exonerados no final de abril de 2020: “fato que tomou evidente a dimensão dos interesses econômicos e políticos por detrás da invasão, desmatamento e esbulho” de terras indígenas no Pará, segundo relatório do CNDH.
Em março de 2020, o diretor de Proteção Territorial da Funai, Alexandre Silveira de Oliveira, expediu despacho decidindo que a próxima reedição da portaria de restrição de uso de ltuna-ltatá deveria “contar como área interditada somente as regiões Sul e Sudeste do atual polígono de interdição”. Aparentemente, a orientação do diretor para a redução da área da terra indígena tomava como “fato consumado e irreversível a recente invasão da terra por grileiros, colonos e madeireiros”.
Tendo em vista as notícias relativas à preparação de uma expedição de localização e confirmação dos índios isolados da terra indígena para a redução dos limites da área, o Ministério Público Federal expediu recomendação afirmando que o ato representaria uma violação aos direitos territoriais indígenas e, “especialmente quando praticado pela Funai, contraria sua própria missão institucional”. O MPF recomendou à fundação a suspensão imediata da realização de quaisquer expedições à ltuna-ltatá “até que fosse realizada a desintrusão e regularização fundiária da área, com a retirada dos invasores que a ocupam ilegalmente e representam ameaça à vida e à integridade física dos servidores públicos e colaboradores em comitiva”; abstenção de ingressar com qualquer comitiva ou servidor em ltuna-ltatá, “até que observe todas as medidas destinadas à prevenção do contágio pe!o novo coronavirus, inclusive, quarentena e testagem prévias”; e prestação de esclarecimento sobre a justificativa técnica para a expedição em teia, “demonstrando seus fundamentos, bem como se há adequação e necessidade de sua realização no presente momento, tendo em vista o contexto da pandemia do novo coronavírus”.
A recomendação foi endossada pelo CNDH, em 20 de maio, por meio de resolução afirmando que “não seria razoável a realização de expedições de servidores públicos da Funai”, assim como “não seria razoável permitir a permanência e a continua entrada de invasores na TI ltuna/ltatá “uma vez que também representam alto risco de contaminação e de morte para os povos isolados”.
De acordo com o parecer da OAB, o MPF continuou a insistir em tratativas interinstitucionais com a Funai; mas “tudo aponta para a desídia da alta administração da Funai no assunto ora explicitado que envolve, conforme amplamente reiterado, a vida de comunidades indígenas voluntariamente sem contato com a sociedade e, portanto, extremamente vulneráveis a todo tipo de contaminação por patógenos vários, mormente o Sars-Covid neste ciclo altamente letal”.
Em relação às medidas de atenção à saúde necessárias em razão da pandemia do coronavírus, a deliberada omissão dos agentes políticos e públicos, com responsabilidade funcional na proteção dos bens indígenas e para que sejam respeitados, foi alvo de ação proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB apelos seguintes Partidos Políticos: PSB; PSOL; PCdoB; PT; Rede Sustentabilidade e PDT.
“Com efeito, a gestão do atendimento à saúde indígena foi assumida pelo Supremo Tribunal Federal; diante da determinação do Poder Executivo da União, em não cumprir com suas obrigações constitucionais e legais. Trata-se da evidência quanto ao propósito dos agentes políticos que integram a administração pública da União, notadamente o Presidente da República, o Ministro da Justiça, o Ministro da Saúde, o Ministro de Meio Ambiente, o presidente da Funai, o Presidente do ICMBI0, o Secretário da Saúde Indígena e os agentes públicos que concorrem, nestes órgãos e sob direção dos referidos agentes públicos, para que os Povos e Comunidades indígenas sejam expostos e submetidos a condições de completa ou precária assistência, de forma que sejam contaminados pelo coronavírus”. A elaboração e o monitoramento de um Plano Geral de Enfrentamento à COVID-1 9 para Povos Indígenas foi determinado na Medida Cautelar concedida pelo relator e referendada pelo Supremo.
O STF baseou-se nas estatísticas que apontam que houve excesso de mortes entre indígenas e não indígenas, sendo maior entre a população indígena. O aumento da mortalidade indígena ocorreu entre 1 de abril a 31 de dezembro de 2020, sendo seu pico em junho, aproximadamente um mês após o pico de mortes em não indígenas. A estimativa de mortes em excesso de indígenas, em 2020, foi de 1. 149 mortes, representando um aumento de 34, 8% da mortalidade esperada nessa população. O aumento de mortalidade em não indígenas foi de 18,1%, com estimativa de 207.765 mortes em excesso. A taxa de excesso de morte por 100. 000 habitantes em 2020 foi maior entre indígena (106) do que em não indígenas (98) entre junho e novembro.
Além disso, durante a pandemia de Covid-19, o orçamento da Saúde Indígena foi reduzido e, ainda assim, apenas 55% do total destinado para a compra de medicamentos, equipamentos de proteção individuai, testes e outros materiais de consumo foi executado em 2020. Em 2021, o valor empenhado para Saúde Indígena corresponde a 56% do valor empenhado em 2020, do qual apenas 57% havia sido executado até agosto do corrente ano, evidenciando o baixo investimento em proteção sanitária, adequação de estrutura física e aquisição de equipamentos.
Estudo elaborado pelo Cepedisa (Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário da Universidade de São Paulo) em parceria com a Conectas Direitos Humanos, também revela a existência de uma estratégia institucional de propagação do coronavírus, promovida pelo governo federal sob a liderança do presidente Jair Bolsonaro a partir das análises de 3.049 normas federais e 4.427 normas estaduais relativas à Covid-1 9, com o intuito de avaliar o seu impacto sobre os direitos humanos.
Na conclusão do parecer, a comissão da OAB afirma ser perniciosa a orientação político-administrativa do Presidente da República e reforça que, submeter ou sujeitar intencionalmente determinado grupo social a condições de vida, com vista a provocar sua destruição física total ou parcial, consiste, portanto, numa das condutas que incorrem no crime tipificado como genocídio. “Os atos normativos infralegais, que a Funai tem adotado, somado à perseguição de funcionários, evidenciando prática de assédio moral, com redução e precarização da estrutura administrativa disponível, além da omissão, seja na demarcação e proteção das terras indígenas e demais bens indígenas, seja na omissão no atendimento à saúde indígena”, que passou a ser determinado pelo STF, configuram “inédita e surpreendente determinação e propósito do Chefe do Poder Executivo da União, Senhor Jair Messias Bolsonaro, em efetivamente sujeitar, ou submeter os Povos e Comunidades Indígenas no Brasil a precárias condições de vida, favorecendo invasões de madeireiros e garimpeiros, bem como proporcionando contaminação do coronavírus, que expõem os Povos e as Comunidades indígenas a circunstâncias comprometedoras de suas integridades físicas, morais, culturais e étnicas”.
A comissão da Ordem destaca que, em relação a povos de pouco ou recente contato, o risco de extinção é altíssimo. E quanto aos demais Povos e Comunidades Indígenas, que se encontram em situações vulneráveis, em especial os Kaiowá-Guarani, no Estado Mato Grosso do Sul, além de outros Povos vítimas de agressões e invasões de suas terras, como os Yanomami, os Munduruku, os Awá-Guaja, dentre outros, as condições de existência às quais estão sendo expostos, tendem a comprometer seus integrantes, se não no todo, em parte.