Em pronunciamento pela televisão no domingo (29), o presidente Donald Trump anunciou que as orientações do governo federal sobre o distanciamento social para conter a disseminação do coronavírus, que andara ameaçando implodir até à Páscoa, estão estendidas até 30 de abril.

“Nada seria pior do que declarar a vitória antes que a vitória seja conquistada”, disse Trump. “Essa seria a maior perda de todas. Portanto, estenderemos nossas diretrizes para 30 de abril para diminuir a propagação.”

O recuo acontece após os EUA se tornarem o novo epicentro da pandemia de covid-19 com 135 mil casos, superando em total de contágios a Itália e a China, enquanto é iminente o colapso do sistema hospitalar em Nova Iorque, com o total de casos no estado passando de 59 mil e com quase a metade dos 2.400 mortos pelo novo coronavírus no país inteiro.

Só na cidade de Nova Iorque, são mais de 33 mil casos confirmados. Em 24 horas, os contágios no estado de Nova Iorque aumentaram em 7.200, enquanto as hospitalizações cresceram 16%, para 8.500, com 2.037 em UTI.

Ameaça de colapso que se estende a outras grandes cidades, como Los Angeles, Nova Orleans, Detroit e Miami. As diretrizes de distanciamento social em vigor estavam definidas originalmente para expirar nesta semana.

Com a costumeira desfaçatez, Trump não admitiu que estava recuando de sua desastrada posição anterior, contrária à ciência e às recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), sobre uma pandemia para a qual ainda não há tratamento nem vacina.

Questionado se sua declaração anterior sobre a Páscoa foi um erro, Trump respondeu: “Não. Foi apenas uma aspiração”. A meia-volta de Trump deixa Jair Bolsonaro exposto perante o mundo inteiro como o único chefe de Estado contrário à quarentena e entusiasta de abrir tudo e todos ao contágio do coronavírus.

O reposicionamento de Trump vinha se delineando quando, na sexta-feira, passou a dizer que “primeiro a vida, depois a economia” e até reiterou que as crianças deviam continuar sem voltar às escolas, além do ensaio, sem combinar com o governador Andrew Cuomo, da decretação federal de quarentena obrigatória para Nova Iorque e mais dois estados.

Tirada assim da cartola, a medida foi rechaçada por Cuomo como uma “declaração de guerra aos estados”, aos quais coubera essencialmente, junto com os prefeitos, sustentar a política da OMS de contenção da velocidade de transmissão do vírus, via distanciamento social, para evitar o colapso do sistema hospitalar, a que se soma o processo de testagem, isolamento e tratamento dos doentes.

Foram os governadores e prefeitos que mantiveram de pé o “fique em casa”, quando Trump sabotava essa política. Inclusive passando ao largo da divisa partidária, por região os governadores haviam buscado estabelecer normas comuns para o isolamento social e a manutenção dos serviços essenciais.

A Associação Nacional dos Governadores, presidida por um republicano, já havia se manifestado a favor da orientação das autoridades médicas e da ciência, ao mesmo tempo em que considerava “confuso” o alarde de Trump sobre reabrir tudo na Páscoa.

O principal conselheiro científico da força-tarefa montada pela Casa Branca contra o coronavírus, o renomado infectologista Anthony Fauci, precisou dizer na lata de Trump que quem determina o tempo de duração da contenção “é o vírus, não somos nós”.

Apesar de Trump ter feito das conferências televisadas diárias sobre o coronavírus seu talk show predileto, o país virtualmente ficou sem comando federal em matéria do enfrentamento da pandemia.

Do atraso nos testes à falta de equipamentos de segurança e de máscaras e respiradores, passando pelo absurdo espetáculo de estados, municípios e órgãos federais disputarem os mesmos dispositivos em falta, a preços exorbitantes.

Trump também demorou muito a ordenar que GM e Ford produzissem os respiradores, conforme lei da época da Guerra da Coreia.

Mas a inflexão de Trump é fundamental, tendo em vista que Nova Iorque está – como notou Cuomo – a “duas a três semanas” do pico de contágio – e, portanto, da escalada das mortes – e é alarmante a situação dos hospitais.

Trump anunciou ainda a chegada de 80 toneladas de equipamentos médicos em 20 voos desde a China. Ele também disse no domingo que espera que o pico da taxa de mortalidade do país provavelmente seja atingido em duas semanas e que, em 1º de junho, o país “estará no caminho da recuperação”.

A chefe da força-tarefa da Casa Branca contra o coronavírus, Deborah Birx, advertiu que “toda a área metropolitana” nos EUA “deve assumir que pode ter um surto equivalente a Nova Iorque e fazer de tudo agora para evitá-lo”.

“É assim que as pandemias funcionam, e é por isso que todos estamos profundamente preocupados e porque estamos alertando”, acrescentou.

Também no domingo o conselheiro científico e infectologista Fauci afirmou que a pandemia pode matar “entre 100 mil e 200 mil” nos EUA e que serão “milhões” os contagiados, de acordo com os modelos estatísticos epidemiológicos. Previsões que podem ser confirmadas ou não, observou, dependendo das medidas de contenção adotadas, diante de uma doença para a qual não há tratamento nem vacina.

O que Trump avaliou como uma situação melhor do que a prevista no famoso estudo do Imperial College britânico de que, se não fossem tomadas medidas de supressão do contágio, e se optasse pelo contágio às cegas, tornando abrupta a curva de contágio (e portanto a superlotação das unidades de tratamento intensivas imprescindíveis diante da ‘pneumonia estranha’), os mortos nos EUA pela pandemia ultrapassariam os 2 milhões.

A título de comparação, na temporada de 2018-19 a gripe matou 34 mil pessoas nos EUA.

Trump parece ter caído na real, mas o quadro a que se chegou nos EUA em razão dos preconceitos e omissões  do presidente norte-americano é dramático, com governadores e prefeitos no país inteiro reclamando da escassez desesperadora de itens essenciais, como máscaras e respiradores, em hospitais superlotados.

A presidente da Câmara, Nancy Pelosi, responsabilizou o presidente Donald Trump pela perda desnecessária de vidas, por ter inicialmente minimizado a pandemia.

“A negação dele no começo foi mortal”, disse ela à CNN. E acrescentou: “Não brinque enquanto as pessoas morrem, senhor presidente”.

Demorou um mês para os EUA passarem de sua primeira morte confirmada, em 29 de fevereiro, para a milésima. Em apenas três dias, de quinta-feira para sábado, esse número dobrou.

No domingo, o prefeito da cidade de Nova Iorque Bill de Blasio advertiu sobre “uma escalada abrupta pela frente” e fez um pedido direto a Trump e ao Pentágono para “encontrarem imediatamente mais pessoal médico militar e levá-lo [para lá] até o próximo domingo”.

Ele acrescentou que o equipamento de proteção à disposição dos hospitais da maior cidade do país é suficiente “apenas para mais uma semana”.

Faculdades de medicina estão antecipando a formatura para levar os novos médicos para o front. Um hospital de campanha foi instalado no Central Park. Caminhões frigoríficos foram deslocados para junto dos maiores hospitais, antecipando o colapso dos crematórios.

O governador de Nova York, Andrew Cuomo, disse que o número de mortos em todo o estado aumentou de 728 um dia antes para 965 – o maior salto de um dia até agora – e ele estendeu por duas semanas o decreto que determina que todos os trabalhadores não essenciais permaneçam em casa.

Também os Centros federais de controle de doenças (CDC) emitiram um comunicado instando as pessoas em Nova York, Nova Jersey e Connecticut a evitarem viagens domésticas não essenciais.

No estado de Washington, o primeiro a ser atingido com força pela pandemia, o governador Jay Inslee descreveu “uma necessidade desesperada de todos os tipos de equipamentos”. A nação precisa ser colocada em pé de guerra, insistiu. À CNN ele disse que “a menos que continuemos um programa de distanciamento social muito vigoroso no meu estado, isso continuará a se espalhar como um incêndio”.

A governadora de Michigan, Gretchen Whitmer, também descreveu um quadro de agravamento, especialmente em Detroit, a maior cidade do estado: “uma situação terrível que piora a cada minuto”. “Tivemos mil novos casos ontem”, disse ela. “Sabemos que esse número será ainda maior hoje”.

O total de estados com mil casos de contágio ou mais subiu de 17 para 20.

Ela pôs em discussão um dos maiores absurdos da pandemia nos EUA, sob uma saúde hiperprivatizada e onde não há limites para a ganância, em que os estados competem entre si e com o governo federal pelas máscaras e respiradores em falta. Anteriormente Pelosi classificara de “mortal” o “atraso contínuo de Trump em levar o equipamento para onde é necessário”.