Debate sobre cultura na pandemia com coordenação de Jandira Feghali. Foto Reprodução

O Observatório da Democracia promoveu mais uma mesa do ciclo Diálogos, Vida e Democracia, com o tema “Os desafios da cultura em tempos de pandemia”. Sob a coordenação da deputada federal Jandira Feghali (PCdoB/RJ),

o ex-ministro da Cultura, Juca Ferreira, o ator Stepan Nercessian, o roteirista, escritor e dramaturgo, Marcelo Rubens Paiva, e o cantor, compositor, escritor e jornalista, Chico César.

Jandira destacou a orfandade nacional de políticas culturais que o país vive. Desde o golpe em 2016, quando assumiu o governo Michel Temer, o primeiro ministério a ser desmontado foi o da Cultura, e com muita luta do Movimento Ocupa Minc, esse ministério voltou. “Mas as políticas estruturantes do setor não voltaram, e, desde então, só fomos ladeira abaixo”, resumiu, acrescentando que são os estados e municípios que tentam segurar as políticas locais de cultura.

Ele ressaltou que, neste momento, a lei de emergência cultural tenta socorrer artistas, técnicos, oficineiros, produtores, educadores, pontos de cultura, com auxílio financeiro emergencial, assim como os espaços culturais, micro e pequenos produtores, com linhas de fomento.

“A cultura virou alvo desta política ideológica deste governo”, disse ela, mostrando o abandono e desprezo de Bolsonaro pelos artistas e seu papel na economia. Segundo informou ela, uma pesquisa revela que 40% do desemprego nos EUA se localiza na área de entretenimento e lazer.

“Ao relatar a Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, tive a oportunidade de dialogar com esse Brasil profundo, do artesão marajoara, até o ponteiro de cultura gaúcha, artistas de rua, circenses, artistas de coletivos, da religiosidade, em busca de uma saída. Todos falaram da emergência, mas também de estruturar uma agenda diante da orfandade nacional, se estruturar a partir das cidades. Vamos reestruturar uma perspectiva, porque está todo mundo desamparado”, declarou.

Ela se indagou o que vamos jogar para a frente se ninguém mudar nesse momento em que valores coletivos, de afeto, de “jogar para fora esses sentimentos que muita gente não enxerga”, na relação com a natureza. “Não vai mudar nada?”

O que podemos apontar como perspectiva a partir da nossa vivência, nesse momento em que o fascismo tenta se consolidar? A cultura pode ser instrumento de redução da desigualdade? Ela deixou esses questionamentos gerais para os debatedores.

O ex-ministro da Cultura, Juca Ferreira, diz que recebe mensagens pedindo socorro de uma grande parcela de técnicos e artistas que não puderam fazer um pé de meia, como fazem os mais famosos. A lei de emergência cultural conseguiu reunir todas essas demandas, inclusive mantendo pequenos e médios espaços culturais que são a base logística das atividades culturais. Ele admite que a dificuldade de construir um projeto de lei para um setor tão complexo é enorme. “Permitindo que as atividades culturais sejam desmontadas pelo governo Bolsonaro, vamos ter uma dificuldade enorme de retomá-las depois que a pandemia passar”, prevê.

Ele observa que a cultura contribui com capilaridade no setor turístico, no setor editorial, com uma responsabilidade econômica enorme. Ele defende que, para além da ajuda emergencial, é preciso pensar no futuro, pois não se sabe quando vamos poder reunir grandes aglomerações novamente. “Não podemos permitir que isso desmorone, ou teremos um prejuízo enorme”.

Há necessidade da arte ter vínculos com as principais lutas populares, na opinião do ex-ministro. Não dá pra construir democracia, conforme explica Ferreira, convivendo com certas mazelas da sociedade. “As favelas são sequelas da escravidão, em que a polícia entra dando tiro a esmo. Alguns são bem tratados pela polícia e outros são recebidos a bala. Não dá pra fingir que não está vendo esse lado perverso”.

“Essa experiência de um governo fascista, deve nos fazer refletir sobre a retomada da luta contra a desigualdade e a exclusão. É preciso reconstruir o tecido social”, declara.

Ferreira é enfático no Fora Bolsonaro. “Não há saída para a arte e a cultura num governo excludente como esse”. Mas se disse otimista ao perceber mudança de ventos contra o fascismo e Bolsonaro, abrindo perspectiva de retomada da democracia.

“É preciso uma frente ampla, que não exclua ninguém. É preciso chamar o presidente Lula para o debate, pois ele é uma liderança importante na sociedade brasileira. Qualquer projeto sério de democracia precisa incorporar esses 30% de brasileiros que se sentem representados pelo presidente Lula”, concluiu.

O ator Stepan Nercessian também considera que a pandemia apenas reflete um processo que vem de longo tempo, agravada pelo fato de que agora não tem só a falta de apoio, mas um governo que atira contra os artistas, nomeando-os como inimigos número um contra a sociedade. “Mas não conseguiram colocar a sociedade contra nós, que continua nos prestigiando”.

Porém, ele considera que a cultura carrega uma herança anterior a isso. “Vários artistas não passaram a ter dificuldades de meia hora pra cá. Evidente que no início do governo Bolsonaro, houve toda uma esculhambação com fim de editais de financiamento e na Ancine, que dificultou a empregabilidade de muitos artistas”, lembra o ator.

“Somos os primeiros atingidos por isso tudo e seremos os últimos a sair disso. O retorno também traz muitas dúvidas sobre as condições em que voltaremos a trabalhar correndo o risco de infecção. Imagina se as produções vão contratar grupos de risco como eu!”, disse.

Nercessian considera que, se em vários e diversos governos, o setor da cultura nunca foi considerado parte importante da cadeia econômica, “não é agora que vou esperar apoio e aceno”. Ele lembrou que o fenômeno do artista milionário é muito recente, porque antigamente, mesmo famoso, o artista vivia em dificuldades.

E terminou com dois poemas expressivos e complementares do seu sentimento sobre o momento:

“Estou exausto, farto de tudo que me falta. E feito uma cobra cansado de carregar o que me sobra de rabo e de veneno, me condeno por crimes que não cometi. Que nojo viver nesse tempo de anormais, animais diferentes, que nascem com o joelho no pescoço, sem mira, sem pontaria. E atingem todo dia uma carta de alforria, sem destinatário, sem remetente. Me excluam dessa raça urdida em traça dessa podre semente. Vamos partir do zero, do canto de um quero-quero, de um canário, de uma sabiá. Me convidaram para uma festa, entrada franca, saída aberta, traje sem rigor. E, de repente, anunciam que o tema é outro: É festa de horror! Não, não aceito, por favor, não insista, retire o meu nome dessa lista. Sou parte daqueles que preferem ficar do lado de fora, no sereno, na paz”.

“Sem justiça, não há paz. Entenda, rapaz, não consigo respirar. Falta ar na minha viela, falta tudo na favela. Desde as antigas caravelas, as balas embalam o som das covardias. Noite e dia, night and day, cansei de ver o nada se mover. Não dá mais pra crer que qualquer coisinha vai mudar. Quero ar, tira esse joelho do meu pescoço. Me tira dessa fila. Tira, tira, tira, atira! O que sai desse cano não vai matar meu coração, minha cabeça, meu amor pela vida, meus ideais. Sou soldado da humanidade e se tenho uma vaidade é dizer que não quero mais. Atira, tira, desperdice a sua bala, e avise ao seu superior, por favor, que a sua tirania me feriu, mas não me calou. Mas não se esqueça tira, que quando você me mira, é em você, que você atira. Então, vê se me erra e, quem sabe assim, você se acerta e me deixa respirar em paz”.

O roteirista, escritor e dramaturgo, Marcelo Rubens Paiva, também ressaltou que a classe artística é a primeira a sofrer as consequências de qualquer crise econômica e governo autoritário, além de ser sempre a última a se reerguer.

Ele relatou que, desde o governo Temer, não se compram mais livros para distribuição em escolas e bibliotecas, que representava 30% a 40% do faturamento do mercado editorial. A Fundação Nacional do Livro era um parceiro importante que conseguia fazer com que o mercado editorial fosse vibrante, com mais de 200 edições por mês sendo publicadas. “Depois tem a Ancine sendo perseguida injustamente pelo TCU, e o cinema que foi esmagado pela burocracia estatal”.

O Brasil tem uma relação estado/cultura complicada, na opinião dele. “A cultura nos define e forma como cidadãos, reverbera mundialmente, como a música que é uma potencia que ocupa lugar de destaque no mercado exterior. O Brasil tem músicas entre as dez mais tocadas do mundo. Martin Scorsese diz que foi influenciado pelo Cinema Novo brasileiro. Éramos um dos poucos países do mundo onde o musical americano não entrava, e foi preciso uma crise econômica para eles pintarem e bordarem aqui. O cinema brasileiro chegou a empregar perto de 600 mil pessoas durante os governos de Lula e Dilma”, pontuou Paiva.

Ele acredita que não é possível achar que o que está acontecendo é resultado do fator econômico ou do fator pandemia. “É sim um projeto de estado de eliminação da cultura brasileira. Ou acabamos com isso já ou teremos trevas por muitos e muitos anos”, sentencia.

Paiva também analisou que as pessoas estão nas ruas, em plena pandemia, para protestar “contra este estado de coisas em que se concentra cada vez mais riqueza nas mãos de alguns”. “As pessoas estão protestando contra a violência policial, essa fonte de garantia da exploração de uma elite. Esse estado neoliberal não dá mais pra sustentar”, disse ele.

Para ele, é preciso derrubar esse governo, pois isso é fundamental para reconstruir o país. “Ele colocou essa porcentagem enorme de militares no governo como uma chantagem a nossa democracia e ameaça aos artistas, a imprensa, a educação, o Congresso, o STF. Isso é fundamental para toda a classe artística, que deve se mobilizar para educar as pessoas sobre ditadura, fascismo e esse governo”, sugeriu.

Assim como ocorreu no combate à ditadura, unificando todas as forças da sociedade, Paiva acredita que seja preciso priorizar o combate ao fascismo. “Não é possível nem pensar em voltar a atuar como artista, diante desse regime. Precisamos acabar com isso logo, não só na política, como na cultura”, concluiu.

O cantor, compositor, escritor e jornalista Chico César começou cantando sua canção “Lasca, que diz: “Eita capim santo, eita erva cidreira! Mesmo que não queira, a pessoa evolui. É como se o vitamilho pudesse voltar a ser milho, depois que foi cuscuz”.

Chico Cesar afirmou que o Brasil de hoje é a pandemia para os negros, pobres, mulheres, LGBTQ, indígenas, “que precisam ser ouvidos e não emudecidos”. “É preciso pausar essa voz ocidental”. Para ele, o capitalismo é a pandemia para o mundo, no seu modo de consumir e produzir riquezas, vendo a natureza como inimiga.

Ele afirma que a cultura é confundida apenas como arte, e a arte como entretenimento. Gilberto Gil e Juca Ferreira, como ministros, tentaram expandir o conceito de cultura, num momento recente do Brasil, mas encontraram muita resistência do ambiente corporativo da cultura. “Mas, depois, muitos de nós, foram compreendendo essa necessidade de pensar a cultura com os mestres da cultura popular, os ribeirinhos, os indígenas. Foi um momento muito rico do ponto de vista simbólico, econômico, e da identidade cultural, da territorialidade, de nos sentirmos parte daqueles lugares da nossa origem. Isso não era consensual, mesmo em governos petistas, porque governos são conflitos de interesses e fizemos parte disso”, analisou.

Nesse momento, ele conta que se sentiu estimulado a voltar à Paraíba para assumir a Fundação Cultural de João Pessoa, que já existia, e depois criar a Secretaria de Cultura do Estado para integrar a Paraíba num sistema nacional de cultura. Ele criou um fundo estadual de cultura que pudesse dialogar com o fundo nacional e os fundos municipais. “Foi um momento conflituoso, mas bonito e rico”.

Hoje, declara ele, vivemos a negação de tudo isso, da cultura indígena e da cultura negra. “Eu me preocupo com a sobrevivência dos meus colegas, mas o protagonismo neste momento é dos profissionais da saúde. E precisamos aproveitar esse momento para pensar nessas vozes da cultura que tentam silenciar. A cultura é importante para sair de um discurso muito objetivo para buscar e estimular subjetividades”.

Chico Cesar defende que as ruas precisam ser retomadas por quem é de direito. “Quero ver as torcidas organizadas se manifestando na Paraíba, com cuidado pela pandemia”.

Ele terminou sua intervenção cantando “Pedrada”, que diz: Cães danados do fascismo Babam e arreganham os dentes. Sai do ovo a serpente, Fruto podre do cinismo Para oprimir as gentes, Nos manter no escravismo. Pra nos empurrar no abismo E nos triturar com os dentes. Ê república de parentes, pode crer. Na nova Babilônia, eu e você, Somos só carne humana pra moer E o amor não é pra nós. Mas nós temos a pedrada pra jogar, A bola incendiária está no ar (vai voar). Fogo nos fascistas, Fogo, Jah!

Assista à íntegra do debate:

O Observatório da Democracia agrega as fundações partidárias Claudio Campos (PPL), a Lauro Campos e Marielle Franco (FLC-MF do PSol), Maurício Grabois (PCdoB), Perseu Abramo (PT), Leonel Brizola-Alberto Pasqualini (PDT), João Mangabeira (PSB), Ordem Social (PROS) e Astrojildo Pereira (Cidadania).