Cineastas denunciam omissão criminosa no incêndio da Cinemateca
O incêndio que atingiu o galpão da Cinemateca Brasileira, na zona oeste de São Paulo, na noite de quinta-feira (29), foi lamentando por diversos cineastas, artistas e profissionais da cultura.
No local ficavam gravados 1 milhão de documentos da antiga Embrafilme, como roteiros, artigos em papel, cópias de filmes e documentos antigos, artigos altamente inflamáveis, que segundo o corpo de bombeiros de São Paulo, a maioria, se não tudo, pode ter se perdido .
A extensão dos danos ainda está sendo estimada.
Francisco Campera, diretor da Fundação Roquette Pinto, ex-gestora da Cinemateca, afirmou que chegou a dar depoimento ao Ministério Público Federal (MPF), que em julho do ano passado ajuizou uma ação civil contra o governo federal por abandono da Cinemateca e ressaltou a questão da falta de conservação. “O último incêndio anterior a esse foi em 2016 e tinha 13 pessoas do mais alto nível trabalhando de segunda a segunda e mesmo assim teve o incêndio. Porque precisa do monitoramento humano. Eu avisei aos funcionários que tomaram posse. Tem mais de um ano, e até hoje não tem monitoramento humano.”
Segundo Campera, “perdeu-se 4 toneladas de documentação da história do cinema brasileiro. Toda a documentação do Instituto Nacional de Cinema, da década de 1960, até hoje da Secretaria Especial de Cultura, passando pela Embrafilme e pela Concine. Há também cópias de filmes, mas que já estavam em estado pior de conservação”, afirmou.
Ex-diretor da Cinemateca Brasileira e ex-secretário de Cultura de São Paulo, Carlos Augusto Calil, hoje presidente da Sociedade Amigos da Cinemateca, classificou o incêndio como um “desastre” e lembrou que este foi o 5º incêndio sofrido pela instituição – o primeiro ocorreu em 1957. “O que se perdeu agora no depósito foi o que havia sobrevivido à inundação de fevereiro de 2020. O que a água começou o fogo terminou”, disse ao jornal O Estado de S. Paulo.
O cineasta Francisco Martins, diretor da Associação Paulista de Cineastas (Apaci) e membro do SOS Cinemateca, destacou os diversos avisos sobre o risco que o acervo corria pela falta de manutenção e conservação. “Nós estamos falando isso e o governo dizendo que está tomando providências. Nós avisamos sim, a cada dia que passa o risco aumenta. É um incêndio anunciado, portanto essa omissão é uma omissão criminosa”, afirmou.
Pelas redes sociais, Kleber Mendonça Filho, diretor de filmes como O Som ao Redor e Aquarius e membro do júri do Festival de Cannes 2021, também se manifestou. “Um incêndio atingiu a Cinemateca Brasileira na noite passada, em São Paulo. Quatro toneladas de material foram perdidos. Após o incêndio no Museu Nacional do Rio e múltiplos pedidos de ajuda na comunidade do cinema (20 dias atrás, eu falei sobre isso em Cannes), nada foi feito. Não parece que isso foi um acidente”, escreveu ele, no Instagram, em inglês.
A cineasta Laís Bodansky, de obras como Bicho de Sete Cabeças e Como Nossos Pais, citou que o galpão teria mais de “2 mil cópias de filmes da história do audiovisual brasileiro”. Ela também afirmou que é um momento “de luto pro audiovisual brasileiro, pra nossa indústria do cinema brasileiro, porque de fato nossa memória está sendo apagada”.
“É uma tristeza geral. Quando vi a notícia, o choro veio, entalou na garganta porque é inacreditável. É inacreditável porque não é por falta de aviso de forma alguma, não por falta de o próprio setor se movimentar, pedir ajuda, a sociedade civil se mobilizou. Se algumas coisas foram feitas, foi por causa dessa mobilização. Mas não dava pra fazer. Nos grupos de WhatsApp que participo, todo mundo está se perguntando: ‘Faltou alguma coisa que a gente não fez?’. Está todo mundo se culpando: ‘O que a gente poderia também ter feito a mais?’. Então tem muita dor, muita tristeza”, relatou.
O cineasta Lauro Escorel, de títulos como Sonhos Sem Fim, afirmou que “não é possível que a gente siga com tantos incêndios. Não é só o acervo do Glauber Rocha, são muitos filmes, parecem que são toneladas de documentação, a história do cinema brasileiro”.
A cineasta Sandra Kogut, destacou o trabalho da Cinemateca, considerada a principal instituição de preservação do audiovisual do país. “Muito importante a gente dizer que a Cinemateca não é um depósito de filmes, é algo muito maior do que isso. A gente tem ali registros de quem a gente é. Eu, por exemplo, só faço filmes porque antes de mim, muitas pessoas fizeram. E foi vendo esses filmes, dessas pessoas, que eu me tornei uma pessoa que faz filme. E a gente tem o registro ali de como as pessoas no Brasil falavam, gesticulavam, viviam, ao longo dos últimos cem anos”, comentou.
Em seguida, ela destacou que “trabalhar em um acervo como esse, requer muito saber, muito conhecimento”. “Os filmes que estão ali pedem atenção constante. Eles precisam ser manipulados, precisam estar conservados em condições muito específica de temperatura, umidade, então é uma tragédia de proporções realmente gigantescas”, acrescentou.
“O que tinha ali é a história do Brasil, a memória do audiovisual, que serve para entender, por exemplo, o que é um governo fascista, de que métodos ele se utiliza e resistir contra isso. Mais do que um desastre, isso foi um crime, pois o governo federal foi alertado e negligenciou sua obrigação de cuidar do patrimônio. Temos esse problema grave: a educação sendo minada como projeto, sabotada, para que as pessoas não reflitam, não pensem sobre o seu país”, disse Eloá Chouzal, pesquisadora e integrante do Movimento Cinemateca Acesa
Artistas também se manifestaram sobre o incêndio e também culparam o governo de Jair Bolsonaro.
Felipe Neto, apresentador e ator denunciou o incêndio como crime. “O incêndio da Cinemateca não é tragédia, não é acidente. É um incêndio causado pela inoperância e vagabundagem do governo federal, através do ministério do turismo. Em 12 de abril, os trabalhadores da Cinemateca AVISARAM que pegaria fogo. ELES AVISARAM COM TODAS AS LETRAS!!!”.
“É muito revoltante perder parte do acervo da cinemateca, é inaceitável e triste”, afirmou a atriz Leandra Leal.
Tico Santo Cruz, cantor: “Uma hora são os dados do CNPq – Ciência ( pesquisa ). Outro dia – Incêndio na Cinemateca Brasileira ( Cultura ). Alguém duvida que isso tudo seja um projeto de destruição?”.
Acervo Perdido
De acordo com funcionários da Cinemateca, pesquisadores e cineastas, o galpão que pegou fogo armazenava grande parte dos arquivos de órgãos extintos do audiovisual, relacionados aos trabalhos da Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme) e do Instituto Nacional do Cinema (INC), ambos criados nos anos 1960, e do Conselho Nacional de Cinema (Concine), criado nos anos 1970.
Além disso, parte do acervo de documentos do cineasta Glauber Rocha, como duplicatas da biblioteca dele; parte do acervo da distribuidora Pandora Filmes, com cópias de filmes brasileiros e estrangeiros em 35mm; parte do acervo produzido por alunos da ECA-USP em 16mm e 35mm; parte do acervo de vídeo do jornalista Goulart de Andrade.
Também estavam no galpão, equipamentos e mobiliário de cinema, fotografia e processamento laboratorial, muitos deles fundamentais para consertos de equipamentos em uso e relíquias que iriam compor um futuro museu.
O acervo ainda continha matrizes e cópias de cinejornais, trailers, publicidade, filmes documentais, filmes de ficção, filmes domésticos, além de elementos complementares de matrizes de longas-metragens, todos estes potencialmente únicos.