China e Rússia se afastam do dólar no comércio bilateral
A publicação japonesa Ásia Nikkei Review registrou que a parceria entre a Rússia e China para reduzir sua dependência do dólar “pode levar a uma ‘aliança financeira” entre os dois países. No primeiro trimestre de 2020, a participação do dólar no comércio entre a Rússia e a China caiu abaixo de 50% pela primeira vez (para 46%), de acordo com dados recentes do Banco Central da Rússia e do Serviço de Alfândega Federal.
Trata-se de uma drástica redução do uso do dólar no comércio bilateral russo-chinês: há apenas cinco anos, aproximadamente 90% das transações bilaterais ainda eram realizadas na moeda norte-americana. Percentual reduzido para 75% em 2018 e que no ano passado já caíra para 51%.
O uso das moedas nacionais no comércio bilateral atingiu novo máximo no primeiro trimestre de 2020, 24%, enquanto o euro alcançou inédito 30%.
Desde 2014, Rússia e China mantêm acordo de swap cambial no valor de 150 bilhões de yuans (US$ 24,5 bilhões), que permite que cada país tenha acesso à moeda do outro sem ter que comprá-la no mercado de câmbio.
A desdolarização Rússia-China está se aproximando de um “momento de ruptura” que poderia elevar o relacionamento entre os dois países a uma aliança de fato, afirmou ao Nikkei o diretor do Instituto do Extremo Oriente da Academia Russa de Ciências, Alexey Maslov.
“A colaboração entre a Rússia e a China na esfera financeira nos diz que eles estão finalmente encontrando os parâmetros para uma nova aliança entre eles”, disse ele.
“Muitos esperavam que esta fosse uma aliança militar ou uma aliança comercial, mas agora a aliança está se movendo mais na direção bancária e financeira, e é isso que pode garantir a independência dos dois países”, enfatizou Maslov.
A desdolarização tem sido uma prioridade para a Rússia desde 2014, e em menor escala para a China, quando a reunificação da Crimeia, após o golpe CIA-nazistas na Ucrânia, serviu de pretexto para uma escalada de sanções.
No mesmo ano, a China se viu alvo de uma ‘revolução colorida’ em Hong Kong, a ‘revolução dos guarda-chuvas’, e desde 2012 o governo Obama havia declarado seu ‘pivô para a Ásia’, com dois elementos centrais, o deslocamento para o Pacífico de 60% da frota de guerra dos EUA e o Tratado TransPacífico, para excluir a China.
Para a Rússia sob sanções dos EUA, a substituição do dólar nas relações comerciais se tornou imperiosa. Como destacou o economista-chefe do ING Bank para a Rússia, Dmitry Dolgin: “qualquer transação bancária que ocorre no mundo envolvendo dólares americanos é, em algum momento, compensada por um banco americano”.
O que significa – salientou – “que o governo dos EUA pode dizer ao banco para congelar certas transações”.
Em determinado momento, houve ainda a ameaça de Washington de vetar a utilização, pela Rússia, do sistema de pagamentos internacional SWIFT, o que havia sido feito antes com o Irã.
A questão se agravou quando o regime Trump desencadeou a guerra comercial contra Pequim, com tarifas de centenas de bilhões de dólares sobre importações da China.
“Só muito recentemente o Estado chinês e as principais entidades econômicas começaram a sentir que poderiam acabar em uma situação semelhante à de nossas contrapartes russas: sendo o alvo das sanções e potencialmente até mesmo sendo excluídos do sistema SWIFT”, disse Zhang Xin , pesquisador do Centro de Estudos Russos da Universidade Normal da China Oriental em Xangai.
Outro marco desse processo aconteceu durante a visita do presidente chinês Xi Jinping à Rússia em junho do ano passado: o acordo para substituir o dólar por moedas nacionais para liquidações internacionais entre eles.
Durante o encontro com Xi, o presidente Vladimir Putin acusou Washington de “estender sua jurisdição ao mundo” e pediu “repensar o papel do dólar”, que se tornou um instrumento de pressão dos EUA “sobre o resto do mundo”.
Foi nesse encontro no Kremlin que Putin e Xi assinaram uma declaração conjunta sobre o estabelecimento de uma “Parceria Global e Interação Estratégica para uma Nova Era”, coroando o 70º aniversário do estabelecimento de relações diplomáticas entre a China e a Rússia. Parceria descrita pelos dois lados como “sem precedentes”.
O acordo para substituição do dólar também abria caminho para que as duas partes desenvolvessem mecanismos de pagamento alternativos à rede SWIFT – que os EUA controlam – para a realização do comércio em rublos e yuan.
Em paralelo, a Rússia agiu solidamente para eliminar sua exposição ao dólar, transformado por Washington em arma de destruição em massa. No início de 2019, o BC russo anunciou a redução de seus ativos em dólares pela metade.
Ao mesmo tempo em que descartava o dólar, Moscou investiu pesadamente no yuan, com sua participação nas reservas cambiais da Rússia triplicando, para 15%. A Rússia, como registrou o Nikkei, “adquiriu um quarto das reservas mundiais de yuan”.
Também o Kremlin autorizou o Fundo Soberano da Rússia a passar a investir em yuans e títulos do Estado chinês.
Para Maslov, esse esforço russo em relação ao yuan não se trata apenas de “diversificar suas reservas em moeda estrangeira”, mas também ajudar Pequim a se tornar “mais assertiva” diante da hegemonia econômica de Washington no mundo.
“A Rússia tem uma posição consideravelmente mais decisiva em relação aos Estados Unidos [do que a China]”, afirmou Maslov, que acrescentou que a Rússia “está acostumada a lutar”. “Uma forma de a Rússia tornar a posição da China mais decisiva, mais disposta a lutar, é mostrar que apóia Pequim na esfera financeira.”
Para Xu Poling, da Academia Chinesa de Ciências Sociais, a cooperação entre os dois países na aplicação do yuan no sistema de pagamentos faz parte de um plano estratégico para conter a hegemonia dos EUA.
“A Rússia está aumentando a participação em yuans de suas reservas em moeda estrangeira e, ao mesmo tempo, reduzindo a parcela em dólares americanos. Esta é uma escolha muito sábia”, assinalou Xu.
Ele acrescentou que “o dólar está enfraquecendo, seu índice está caindo. Em combinação com a emissão de um grande número de títulos denominados em dólares, os fundamentos econômicos e a solvência do dólar estão se deteriorando”.
Sem essa hegemonia – enfatizou – os Estados Unidos não poderão impor sanções a outros países, obstruir a cooperação econômica internacional ou prejudicar o comércio internacional e os fluxos financeiros. “Neste contexto, o reforço da cooperação entre a China e a Rússia no domínio da circulação do yuan é um passo para restabelecer um sistema monetário internacional mais democrático”.
Por sua vez, Mikhail Beliaev, do Instituto Russo de Estudos Estratégicos, disse ao Sputnik que essa retirada gradativa do dólar também se dá “em função do enfraquecimento e perda da posição dos Estados Unidos na economia global”.
“Quanto mais cresce o volume de comércio entre a China e a Rússia, quanto mais significativo o lugar que uma parte passa a ocupar no volume de comércio, mais interessada ela fica em sua moeda como meio de cobrança e pagamento. Isso, de fato, está acontecendo agora”. No ano passado, o comércio bilateral pela primeira vez ultrapassou os US$ 100 bilhões, e a ideia é dobrar até 2024.
“O papel do yuan no comércio entre a China e a Rússia não só se tornou visível, mas provavelmente se tornará dominante em breve, apesar da participação do yuan nas operações comerciais entre a China e a Rússia agora estar abaixo do dólar. Mas a diferença está diminuindo”, disse Beliaev. No primeiro trimestre deste ano, esse percentual chegou a 17%, dois pontos percentuais acima do trimestre anterior.
Além dessa dimensão financeira, os dois países também avançaram numerosos projetos em tecnologia de ponta, energia nuclear, aeronáutica, ligação por trem de alta velocidade e petróleo e gás.
Sobre a questão do status da moeda norte-americana, o Nikkei ouviu ainda um economista de Harvard, Jeffrey Frankel, que, depois de enumerar as vantagens do dólar, entre as quais os “mercados financeiros dos Estados Unidos”, que são “profundos, líquidos e abertos”, argumentou que até agora nenhuma moeda rival se mostrou capaz de superar a moeda norte-americana.
Frankel admitiu, porém, que seria “tolice” supor que “está escrito na pedra que o dólar será para sempre incontestado como a moeda internacional número um.”
Apesar de considerar a posição do dólar “segura” por enquanto, o acadêmico reconheceu que a supremacia do dólar pode ser corroída no longo prazo por “endividamento crescente e uma política de sanções excessivamente agressiva”.
Quanto às sanções, que chamou de “instrumento muito poderoso para os Estados Unidos”, observou que, como qualquer “ferramenta”, corre-se o risco de que “outros comecem a procurar alternativas se você as exagera.