Piñera enviou à Câmara projeto que privilegia empresas estrangeiras na navegação de cabotagem

O presidente do Chile, Sebastián Piñera, tenta aprovar no parlamento alteração de lei para permitir entregar às transnacionais a estratégica e lucrativa navegação de cabotagem – transporte de cargas feito por navio entre portos dentro do país.

Às vésperas de concluir seu mandato, o mandatário enviou à Câmara dos Deputados um projeto de lei (PL) que adultera, em benefício de bandeiras estrangeiras, as atuais leis de Fomento à Marinha Mercante e de Navegação, acabando com uma sólida base para a economia, a segurança e a política ambiental chilena.

“Rechaçamos esta nova tentativa de Piñera de utilizar estes meses que restam da sua administração para avançar em projetos que lesionam interesses de muitos em benefício de poucos”, afirmou a presidente da Central Unitária de Trabalhadores (CUT), Silvia Silva, manifestando na quinta-feira (26) a contrariedade dos chilenos ao avanço do PL.

Segundo Silva, “o projeto que entrou na Câmara altera uma Lei que protege a Marinha Mercante Nacional, estabelecendo condições que permitem a concorrência desleal contra as embarcações nacionais”. “Sabemos da existência de embarcações com ‘bandeiras de conveniência’ [estrangeiras], nas quais os trabalhadores são explorados e que, durante a pandemia, deixaram literalmente as tripulações abandonadas e que podem, aliás, oferecer preços mais baratos às custas dos trabalhadores e de sua proteção”, acrescentou a presidente cutista.

De acordo com o presidente da Federação de Tripulantes da Marinha Mercante do Chile (Fetrich), Diógenes Mancilla, “este projeto de lei faz praticamente desaparecer a bicentenária história da Marinha Mercante Nacional, toda vez que deixa fora as transportadoras chilenas ao não poderem competir com barcos de bandeira estrangeira, em que não se exigem leis sociais nem pagamento de impostos e as remunerações dos marinheiros são muito precárias”. E ainda com o agravante, frisou, de que muitas dessas companhias estrangeiras também serem subsidiadas pelos seus respectivos Estados para avançarem sobre outros mercados. “Assim, operadores estrangeiros poderiam entrar no país com fretes iniciais temporariamente muito baixos, pois – uma vez eliminada a concorrência – seriam aumentados indiscriminadamente, como tem sido a experiência de outros países”, destacou.

“A regra geral é que no mundo todo a cabotagem é uma reserva aos compatriotas e com esse PL se está vendendo a nossa soberania”, advertiu Alejandro Tenório, dirigente da Aliança Marítima do Chile, que congrega várias das principais organizações e associações do setor.

Desemprego

Atualmente, esclareceu Tenório, os navios chilenos são compostos 100% por oficiais e tripulantes chilenos, com algumas exceções que a lei permite. Por este projeto, seriam necessários apenas dois oficiais chilenos: o capitão e os primeiros oficiais. “Hoje, a tripulação média pode ser de 18 pessoas por navio, dependendo da rota, tipo de navio e frequência da viagem. Existem aproximadamente 430 navios maiores. Portanto, com este projeto de lei, apenas 860 empregos são garantidos para capitão e primeiro oficial. O equipamento e a tripulação seriam estrangeiros, pelo custo da mão de obra”, advertiu.

O dirigente da Aliança Marítima recordou que “não é a primeira vez que Piñera tenta abrir a cabotagem marítima a embarcações estrangeiras, situação que levaria inevitavelmente ao desaparecimento da frota mercante chilena, pondo fim à sua transcendência na nossa economia, afetando de forma direta e avassaladora as empresas e trabalhadores nacionais”. Outro ponto, apontou, é que se modificaria a Lei de Navegação no seu artigo 14, “a fim de privilegiar o embarque de marítimos estrangeiros em navios de bandeira nacional, situação que também rejeitamos categoricamente”.

Alejandro Tenório contestou a campanha governamental, reverberada pelos grandes monopólios de mídia, de que o PL traria benefícios para o país. “É inverossímil a intenção de insistir pela terceira vez com um projeto que não conta com o apoio das organizações, sindicatos, nem de empresários do setor naval, e isso se agrava em um cenário de crise pandêmica em que todos os esforços devem contribuir para gerar espaços de recuperação econômica e geração de empregos, em vez de apresentar projetos que atentam e violam a tranquilidade necessária que a nação requer”, assinalou.

A aprovação do PL de Piñera, contestou a Aliança, “implicaria que um massivo grupo de oficiais, tripulantes, trabalhadores portuários, agentes de aduana, caminhoneiros e pessoal administrativo das empresas relacionadas à indústria ficaria desempregado e obrigado a migrar para outras atividades e em alguns casos até para outros países”. Na prática, alerta a entidade, isso se traduziria numa “inevitável perda de qualificação profissional, recursos que seriam muito caros, difíceis e demorados de recuperar”.

Contundente na sua análise, a Federação Internacional dos Trabalhadores do Transporte (ITF) enfatizou que “a única forma de que os navios chilenos poderiam competir seria abandonando a bandeira chilena e substituindo-a por uma de melhor conveniência”, com o que se perderiam os impostos pagos pelas empresas de cabotagem e, em consequência, a arrecadação fiscal. “Também seriam dilapidados 3.720 postos de trabalho de oficiais ativos e outro número maior de tripulantes, deixando anos de luta sindical e décadas de Contratos Coletivos de Trabalho no que os trabalhadores temos avançado para manter um equilíbrio saudável na sociedade, sob a proteção de nossa legislação nacional. Se perde também o emprego indireto que dá trabalho a mais de 20.000 pessoas na indústria marítima e o know how dos 203 anos de experiência da nossa Marinha, não só ao considerar o pessoal embarcado, mas também profissionais da área marítima que trabalham em companhias marítimas, institutos de formação e outros”, concluiu.