Chefe do Estado Maior francês rebate discurso de racistas nas FFAA
O chefe do Estado Maior da França, general François Lecointre, convidou os militares que assinaram uma ‘carta pública’ de conteúdo racista sobre a situação do país a deixarem as Forças Armadas na terça-feira (11), registrou o jornal Le Monde.
Em circular enviada a todos os militares da ativa, o general Lecointre, assinalou que “o mais razoável é deixar a instituição para poderem tornar suas ideias e convicções totalmente livres”.
Pela segunda vez em menos de um mês, a revista neofascista ‘Valeurs Atuelles’ publicou uma carta sobre a urgência de “salvar a França”, supostamente ameaçada pelo “islamismo”, pela vontade de “apagar a história da França”, pelo “ativismo antirracista”, pelas “hordas das periferias” e até pela “guerra civil”.
A primeira carta foi assinada por generais da reserva e outros oficiais e foi tornada pública exatamente no dia em que se completavam 60 anos do golpe fracassado que tentou impedir que De Gaulle reconhecesse a independência da Argélia.
A segunda, atribuída a “militares da ativa”, com “experiência no Afeganistão, Mali e República Centro-Africana”, que já teriam “perdido camaradas” para o islamismo “ao qual vocês estão fazendo concessões em nosso solo”, no entanto não revela os nomes dos que a ela aderiram.
Chamado ao bom senso
Mesmo que os apoiadores da segunda carta não tenham revelado seus nomes, a divulgação do documento levou o chefe do Estado Maior francês a alertar que “durante semanas (…) a obrigação de reserva imposta a todos os militares foi sistematicamente violada”.
O general Lecointre acrescentou que “em nome da proteção de suas convicções pessoais”, os signatários da carta acabaram por “atrair o Exército para debates políticos dos quais não tem o direito nem o dever de participar”.
Lecointre também pediu às tropas que “exercitem o bom senso” e destacou que “todo soldado é livre para pensar como quiser, mas deve distinguir claramente entre seus deveres civis e militares.”
É esta “neutralidade”, acredita o chefe do exército francês, que permite aos militares “incondicionalmente e sem hesitar” cumprir a missão que lhes foi confiada.
Em entrevista ao jornal Le Parisien no final de abril, o general Lecointre havia anunciado que os 18 integrantes da ativa que assinaram a primeira carta teriam de comparecer diante de conselho militar.
Espantalho “islâmico”
As duas cartas foram rechaçadas pela grande maioria das forças políticas francesas, mas acolhidas sem nenhum pudor pela Reunião Nacional, ex-Front National, e sua líder, a eterna candidata a presidente Marine Le Pen, notória pela xenofobia e que costuma fazer do espantalho “islâmico” um chamariz de votos.
Até agora, o presidente Emmanuel Macron deixou a tarefa de responder a essas conclamações em mãos do chefe do Estado Maior francês, general Lecointre, da sua ministra da Defesa, Florence Parly, e do seu primeiro-ministro, Jean Castex.
Embora, de acordo com o periódico Le Canard Enchaîné, haja desabafado no palácio: “A RN ainda é a FN! Anos de esforços para fazer as pessoas acreditarem que Marine Le Pen não é seu pai e, em poucas horas, sua verdadeira face reaparece: a das milícias e dos putchistas!”
O primeiro-ministro Castex, depois de classificar a revista ‘Valeurs Atuelles’como uma “plataforma de extrema-direita”, questionou: “Todos nós podemos nos chamar de soldados e assinar um manifesto sob condição de anonimato! Qual é a prova de que eles são realmente soldados? Quem são eles ? Que se mostrem e que assumam se consideram que está em causa o essencial”.
Castex anteriormente, considerara a primeira carta como “contrária a todos os nossos princípios republicanos”, em referência à preservação da não-partidarização, da coesão e da credibilidade da instituição armada.
A ministra da Defesa, Parly, por sua vez, chamou a carta de “parte de um esquema político rudimentar. Toda a retórica que usa, vocabulário, referências, são de extrema-direita”.
Ela lembrou do caso do general Christian Piquemal, ex-chefe da Legião Estrangeira e o primeiro signatário da primeira carta, que foi afastado em 2016 após ter participado de uma manifestação xenófoba contra imigrantes em Calais.
“A grande maioria dos militares defende os valores republicanos, garante a proteção dos franceses e a defesa da França de acordo com o princípio da neutralidade e lealdade que faz parte e que está no coração de seu status”, destacou.
Segundo a mídia francesa, Piquemal foi repreendido pelo próprio Lecointre, por “contaminar o exército e o enfraquecer, ao torná-lo objeto de controvérsia nacional”. O senador da Reunião Nacional, Stéphane Ravier, disse que a carta fez “a macronia entrar em pânico e afundar no autoritarismo, incapaz de suportar a menor crítica”. Forças de oposição ao governo Macron, como o França Insubmissa, de Jean-Luc Mélenchon, e os comunistas, repudiaram as duas cartas como antirrepublicanas e antidemocráticas.
Quanto às mazelas reais a que as cartas porventura hajam em algum momento se referido, não são sem dúvida as apontadas pelos pescadores de águas turvas franceses.
Não existe nenhuma “guerra civil” espreitando a França por causa de imigrantes muçulmanos ou africanos, embora haja conflitos, uns provocados pela herança colonial, outros, pelas intervenções imperialistas em que a França participou, e mais alguns cuja raiz é a imensa desigualdade que ainda impera no país.
O problema do terrorismo não teria chegado ao ponto que chegou se não fosse a convocação do governo Sarkozy à destruição do Estado nacional líbio, assassinando Muammar Kadhafi, desestabilizando todo o Sahel e tornando o país uma cabeça de ponte para a partida de botes com miseráveis a bordo, empurrados pela prevalência do neocolonialismo e do neoliberalismo no continente africano.
E se não fosse a cumplicidade da França na guerra à Síria por intermédio de mercenários fantasiados de ‘jihadistas’, a soldo de Washington, Riad e Istambul – cumplicidade que, aliás, ainda não cessou.
Quando a França teve a atitude altiva de ser contra a invasão do Iraque por W. Bush em 2003 – honra a Chirac -, não havia islâmicos desvairados nas ruas francesas com facas ou fuzis automáticos.
Fica evidente que se a África não se desenvolver e se industrializar, e deixar de ser miserável, multidões negras e árabes continuarão tentando chegar à Europa opulenta.
Mas foi o próprio Macron que estimulou esse clima doentio na França, ao colocar em discussão sua “lei contra o separatismo islâmico”, só mais tarde tornada “lei de defesa dos valores republicanos”. Entregou de bandeja o mote para os xenófobos.
Também foi ele que optou em governar para a banca, piorar a aposentadoria e arrochar os direitos trabalhistas, apesar de ter sido eleito como “nem de direita nem de esquerda”- com todas as consequências disso no agravamento das contradições na França.
A propósito, nas redes sociais, não faltou quem acrescentasse às mazelas da França atual as medidas de restrição ao contágio do coronavírus e a repressão ao negacionismo. Possivelmente o descuido será consertado na próxima carta.