Chefe da Estado-Maior reconhece “erro” por presença na encenação de Trump - foto: Reuters

O chefe do Estado-Maior Conjunto das forças armadas dos EUA, general Mark Milley, pediu desculpas por aparecer na célebre foto da caminhada para que Donald Trump posasse com uma bíblia na porta de uma igreja episcopal, depois da violenta repressão a manifestação pacífica na Praça Lafayette, fora da Casa Branca.

Em discurso pré-gravado divulgado na quinta-feira (11), o general reconheceu o ato como um “erro” e disse que sua presença “criou uma percepção dos militares envolvidos na política doméstica”. Na foto, Milley trajava uniforme de combate. Também fazia parte da escolta de Trump o secretário do Pentágono, Mark Esper.

“Eu não deveria ter estado lá. Minha presença naquele momento e naquele ambiente criou uma percepção dos militares envolvidos na política interna”, afirmou Milley no discurso endereçado a um grupo de graduados da Universidade de Defesa Nacional.

“Como líderes seniores, tudo o que vocês fizerem será observado de perto. E eu não sou imune. Como muitos de vocês viram, minha foto na Praça Lafayette na semana passada provocou um debate nacional sobre o papel dos militares na sociedade civil”, assinalou o chefe do Estado-Maior.

Na verdade, um repúdio generalizado das lideranças políticas e das entidades pró-liberdades civis, e que forçou os mais destacados ex-comandantes militares do país e praticamente todos os ex-secretários do Pentágono dos quatro últimos governos a virem a público repelir os arroubos fascistas de Trump, recém autonomeado “presidente da lei e da ordem” e que ameaçava passar por cima dos governadores enviando tropas contra manifestantes, sob uma lei de 1807.

Em seu discurso, Milley também abordou o evento que provocou os protestos, o linchamento de George Floyd pela polícia de Minneapolis, bem como os desafios do racismo na sociedade americana e nas fileiras militares. “Estou indignado com a morte sem sentido e brutal de George Floyd. Sua morte ampliou a dor, a frustração e o medo que muitos de nossos compatriotas americanos vivem dia após dia”, destacou.

Partiu do ex-secretário da Defesa do atual governo, general de marines James Mattis, a mais contundente reprovação ao uso de tropas militares contra manifestantes, que Trump vinha exigindo, tendo até tirado da tumba o grito de guerra segregacionista de ‘quando começam os saques, começam os tiros [no povo]’.

Ao falar de seu juramento de oficial militar de respeitar a constituição, Mattis disse que jamais pensou que “tropas que fizeram esse mesmo juramento seriam ordenadas sob qualquer circunstância a violar os direitos constitucionais de seus concidadãos — muito menos para fornecer uma foto bizarra para o comandante-em-chefe eleito, com a liderança militar ao lado”.

Mattis também condenara “qualquer pensamento de nossas cidades como um ‘espaço de batalha’ que nossos militares uniformizados são chamados a ‘dominar’” – termos em que Trump se referira à situação.

“Em casa, devemos usar nossos militares apenas quando solicitados, em raras ocasiões, pelos governadores estaduais”, afirmou Mattis, quando o ultimato de Trump aos governadores foi de que “dominassem” os manifestantes, ou ele próprio o faria, com tropas federais.

De passagem, Mattis lembrava o juramento da Normandia, contra a estratégia nazista de “dividir para reinar”. E concluía acusando Trump de “ser o primeiro presidente dos EUA que não tenta unir os americanos, nem mesmo finge tentar”.

Não se tratava de uma discussão menor, já que Trump acionou para a capital tropas de uma das principais forças de ataque dos EUA, a 82ª Divisão Aerotransportada, falou em “10 mil soldados”, despachou helicópteros e drones contra manifestantes e deslocou forças sem identificação para a guarda da Casa Branca.

Ainda, antes de posar para a foto com a Bíblia, em cadeia nacional Trump chamara os manifestantes de “terroristas”, “saqueadores”, “incendiários” e “antifas”.

O secretário de Defesa, Mark Esper havia ficado contra o uso das tropas federais sob a lei de 1807, defendendo que as operações ficassem, como é o procedimento normal nos EUA nessas situações, a cargo da Guarda Nacional por pedido dos governadores.

O uso de soldados ativos para patrulhar cidades dos EUA, disse Esper, deve ser um “último recurso e apenas nas situações mais urgentes e terríveis. Não estamos em uma dessas situações agora”.

Esper também já lamentara ter caminhado ao lado de Trump na operação ‘Tira Foto com a Bíblia’, que certas redes sociais apelidaram de “marcha a Jericó de Trump”.

“Eu não estava ciente de que uma foto-op [foto para propaganda] estava acontecendo”, admitiu, acrescentando que tenta “ficar fora de situações que podem parecer políticas, e às vezes eu sou bem sucedido em fazer isso, e às vezes eu não sou tão bem sucedido”.

O chefe do Estado-Maior da Força Aérea, David Goldfein, também se manifestou no calor dos acontecimentos, contra usar tropas para esmagar manifestações. Quase 90 ex-altos mandos e os ex-chefes do Pentágono, de governos republicanos e democratas, Leon Panetta, Chuck Hagel, Ash Carter e William Cohen, repudiaram a ação de Trump.

Também se pronunciarem contra a repressão maciça às manifestações, e a favor da empatia para com a dor causada pelo linchamento de um cidadão que suplicava “não consigo respirar” todos os quatro ex-presidentes vivos, W. Bush, Jimmy Carter, Bill Clinton e Barack Obama.

O ex-chefe do Estado Maior Conjunto, almirante Michael Mullen, disse que tinha se tornado impossível para ele manter o silêncio diante do atropelo na Praça Lafayette. “Chegamos a um ponto de inflexão. Seja qual tenha sido o seu objetivo em fazer a visita, Trump deixou claro seu desdém pelo direito ao protesto pacífico e coloca em risco de politização aos homens e mulheres de nossas Forças Armadas”.

A amplitude das manifestações nas ruas e o repúdio nos altos mandos acabaram por isolar Trump e seus arreganhos fascistas.

Passado o complexo momento, agora o chefe do Estado-Maior Milley considera, quanto às manifestações contra o linchamento de George Floyd, que “todos devemos nos orgulhar de que na grande maioria foram pacíficas”.

“Os protestos que se seguiram não só falam de sua morte, mas também dos séculos de injustiça contra afro-americanos”, assinalou, acrescentando que “nunca introduzimos tropas federais nas ruas da América como resultado dos esforços combinados da Guarda Nacional e da aplicação da lei para acabar com a violência e desescalar situações muito tensas”.

O general Milley também se expressou sobre a desigualdade dentro do exército dos EUA. “Todos nós precisamos fazer melhor. Por exemplo, embora os militares dos Estados Unidos tenham uma proporção maior de afro-americanos servindo em nossas fileiras do que na sociedade em geral, apenas 7% dos oficiais são afro-americanos”, disse ele, acrescentando que “devemos, podemos e faremos melhor”.

Para a CNN, os comentários marcam “um momento extraordinário do mais alto general da América se desculpando por uma aparição com seu comandante-em-chefe, e fazendo isso enquanto falava a futuros oficiais militares e líderes”.

“Os comentários do general Milley sobre a necessidade de manter os militares fora da política foram oportunos e – muito tristemente nos dias de hoje – apropriados às pressões sob as quais nossas tropas operam”, disse o analista militar da CNN John Kirby, contra-almirante aposentado da Marinha. “Não devemos perder de vista a importância do que ele disse. Muitas vezes, os militares se sobrecarregam com uma mentalidade de defeito zero, o que não facilita a admissão de erros de julgamento”, acrescentou.