Basta! Esse era o título do editorial do jornal Correio da Manhã que circulou no dia 31 de março de 1964 e que sintetizou numa palavra o desejo do “sindicato da mentira”, a coalizão que conspirava contra João Goulart, conforme definição do jornal getulista Última Hora. No dia seguinte, 1º de abril, o jornal repetiu a dose: “Fora!”. A mídia vinha entoando um coro muito bem afinado contra Goulart e incitando o golpe.

Por Osvaldo Bertolino*

Folha de S. Paulo de 27 de março de 1964, em editorial intitulado “Até quando?”, indagou: “Até quando as forças responsáveis deste país, as que encarnam os ideais e os princípios da democracia, assistirão passivamente ao sistemático, obstinado e agora já claramente declarado empenho capitaneado pelo presidente da República de destruir as instituições democráticas?” O jornal O Estado de S. Paulo do dia 14 de março disse: “(…) Depois do que se passou na Praça Cristiano Ottoni (…), após a leitura dos decretos presidenciais que violam a lei, não tem mais sentido falar-se em legalidade democrática, como coisa existente.”

Interesses terrenos

No dia anterior, cerca de duzentas mil pessoas participaram do famoso comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, no qual foi anunciado que o presidente acabara de assinar, no Palácio das Laranjeiras, o Decreto da Supra (Superintendência da Política Agrária), que propunha um plano de desapropriação dos latifúndios improdutivos acima de 500 hectares, por interesse social. O presidente mexeu em um vespeiro. No dia 19 de março de 1964 — dia de São José, padroeiro da família — mulheres ricas paulistas lideraram a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, incitando o golpe militar.

Em nome da família, de Deus e da liberdade o movimento estava defendendo os interesses terrenos dos latifundiários, banqueiros e industriais. No dia seguinte, o jornal O Globo comentou: “Sirva o acontecimento para mostrar aos que pensam em desviar o Brasil de seu caminho normal, apresentando-lhe soluções contrárias ao ideal democrático e ensejando a tomada do poder pelos comunistas, que o povo brasileiro jamais concordará em perder a liberdade, nem assistirá de braços cruzados aos sacrifícios das instituições.”

Essa onda começou a se levantar já no governo Jânio Quadros — João Goulart foi eleito vice-presidente pela segunda vez, em 1960, desta vez concorrendo na chapa encabeçada pelo marechal Henrique Baptista Duffles Teixeira Lott —, quando a política externa brasileira não se alinhou ao anticomunismo que os Estados Unidos exportavam para a América Latina — principalmente após a Revolução Cubana. Quando o presidente condecorou o líder revolucionário “Che” Guevara com a Ordem Cruzeiro do Sul, os protestos direitistas se levantaram com força.

Para o regime norte-americano e seus aliados internos, a simpatia que a Revolução Cubana despertava nos povos da região era um fato novo que precisava ser combatido antes de maiores consequências. Em 1963, a OEA (Organização dos Estados Americanos), que Fidel Castro chamava de “Ministério das Colônias de Washington”, aprovou uma resolução, por 14 votos contra um e quatro abstenções, pedindo aos governos maior controle da “subversão comunista no hemisfério”.

Rearmamento Moral

Em 1962, quando o governo norte-americano acelerou a ofensiva para tentar varrer os movimentos comunistas do continente, as posições diplomáticas do governo Goulart irritavam Washington. Os Estados Unidos organizavam encontros de chanceleres para discutir a situação em Cuba e o Brasil sempre manifestava-se contra as medidas propostas. Na OEA, o representante brasileiro votou contra a expulsão de Cuba da organização.

Foi o suficiente para recrudescer a fúria dos prepostos dos Estados Unidos no Brasil, que manifestavam o golpismo sem meias palavras. A cada lance dessa queda-de-braço, as organizações anticomunistas, amplamente apoiadas pela mídia — o jornal Tribuna de Imprensa, por exemplo, anunciou em manchete que a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” foi uma “gigantesca passeata anticomunista” —, tornavam-se mais histéricas.

Os jornais O Globo e O Estado de S. Paulo acolheram com simpatia a chegada no Brasil da organização Rearmamento Moral (RM), sediada nos Estados Unidos, que realizava uma campanha mundial contra os comunistas. O conservador jornal paulista chegou a distribuir gratuitamente um texto da RM como encarte e a organização conquistou adesões na alta oficialidade militar.

Uma das entidades que comandavam essa cruzada era a Liga Feminina Anticomunista. Organizações como essa, minúsculas e barulhentas, começaram a brotar como cogumelos depois da chuva — uma tática dos conservadores para divulgar a imagem de que suas ideias expressavam a vontade popular. Outra tática adotada pelos golpistas foi a de organizar as mulheres das classes médias e altas para consolidar a ideia de um movimento em defesa da família, ameaçada pelos comunistas.

Socos de Leonel Brizola

Antes, os conservadores criaram uma onda de que o “comunismo” estava às portas do poder com a posse de João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros. Os comunistas haviam apoiado Goulart nas campanhas para vice-presidente em 1955 e 1960 e os ministros militares tentaram impedir sua posse. Eles divulgaram um manifesto no qual disseram que no governo do vice de Jânio Quadros as Forças Armadas seriam “transformadas” em “simples milícias comunistas”.

Nessa linha golpista, os jornais carregavam na tinta para agitar febrilmente a bandeira anticomunista. A viagem do presidente à China rendeu manchetes berrantes. Uma simples reunião de trabalhadores era “noticiada” como a “marcha da revolução comunista”. Leonel Brizola, que como governador do Estado do Rio Grande do Sul comandou a “cadeia da legalidade” em defesa da posse de Goulart, era um dos alvos preferenciais.

No dia 26 de dezembro de 1963, ele atingiu o jornalista David Nasser, da revista O Cruzeiro e ativo conspirador pró-golpe, com dois potentes socos no saguão do aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. O dono do jornal Tribuna de Imprensa, Carlos Lacerda, promoveu um ciclo de palestra da escritora Suzane Labin, venenosa anticomunista francesa, que veio ao Brasil lançar seu livro Em Cima da Hora. No dia 28 de agosto de 1963, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, ela disse: “O ocidente não compreende que o combate que se deve dar aos comunistas é o da organização contra organização, homem por homem, alma por alma, vontade contra vontade. As nossas pátrias estão como um sonâmbulo à beira do precipício.”

A onda reacionária foi além: Leonel Brizola era impedido de falar em comícios; Miguel Arraes, então governador do Estado de Pernambuco, para participar de um programa de televisão em São Paulo entrou pelos fundos da emissora — na frente encontrava-se um grupo de mulheres de terço na mão e dispostas a insultá-lo. Era o que o historiador Leôncio Basbaum chamou, em sua obra História Sincera da República, de “O terror psicológico”.

Programa do golpe

Essa maré conservadora convergiu para o golpe militar de 1964. O mentor operacional foi o adido militar de Washington no Brasil, general Vernon Walters, ex-oficial de ligação do Exército dos Estados Unidos junto à Força Expedicionária Brasileira (FEB) durante a Segunda Guerra Mundial. Walters era o confidente dos conspiradores militares e encorajou o general Humberto Castelo Branco, chefe do Estado-Maior do Exército que fora seu companheiro de quarto na Itália, a deflagrar o golpe. Uma semana antes da tomada do poder pelos golpistas, o adido militar norte-americano telegrafou a Washington dando os detalhes completos da conjura. Castelo Branco, já como presidente, ofereceu um jantar ao convidado especial Walters.

O programa do golpe havia sido elaborado pela Escola Superior de Guerra, com ajuda de técnicos dos Estados Unidos. A doutrina dos golpistas e de seus apoiadores era a de que o Brasil deveria se alinhar incondicionalmente aos norte-americanos na marcha para a Terceira Guerra Mundial. Uma das primeiras medidas adotadas pela ditadura foi a elaboração de uma “doutrina de segurança nacional”, baseada em dois conceitos: a divisão do mundo em dois blocos antagônicos e a adesão do Brasil ao “bloco democrático e cristão”, sob a direção dos Estados Unidos — dos quais o Brasil deveria considerar-se um satélite privilegiado — para combater o bloco socialista, liderado pela União Soviética.

O golpe militar de 1964 representou o último ato da conspiração contra Getúlio Vargas desde a Revolução de 1930. Quando Goulart morreu, o regime era suspeito de ter provocado a morte da estilista Zuzu Angel — que vinha denunciando o brutal assassinato do filho, Stuart Angel Jones, na Base Aérea do Galeão, Rio de Janeiro — em um acidente de carro na noite de 14 de abril de 1976, e do ex-presidente Juscelino Kubitscheck, também num desastre automobilístico. A suspeita é de que João Goulart morreu por envenenamento.

 

*Osvaldo Bertolino é jornalista

 

(PL)