Este artigo inicia um “Especial” sobre o centenário do ex-presidente da República João Belchior Marques Goulart, deposto pelo golpe militar de 1964 que implantou o sanguinário regime de 1964.

Por Osvaldo Bertolino

A proximidade com o presidente — primeiro como deputado estadual e federal e secretário do Interior e Justiça, depois como presidente do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e ministro do seu governo — fez dele um personagem intragável para os setores que conspiravam contra o processo político que reconduziu Vargas à Presidência da República nas eleições de 1950. Goulart virou alvo antes do episódio do salário mínimo, quando os jornalões tomaram conhecimento de que sua atuação refletia o pensamento político do presidente.

A campanha de difamação começou tentando opor Goulart a Vargas. Segundo os jornais de oposição, enquanto o presidente pretendia respeitar a Constituição de 1946 e entregar o cargo a seu sucessor livremente eleito em 1955, o ministro do Trabalho não escondia que desejava levar o “peleguismo” (dirigentes sindicais) ao poder e proclamar uma “república sindicalista”.

Sindicato da mentira

Goulart tomou posse como presidente do PTB em maio de 1952, tendo Vargas como presidente de honra do partido. Em mensagem enviada à convenção petebista, o presidente da República disse que aquela eleição unia os trabalhistas em torno da bandeira e do ideal que simbolizavam as lutas da Revolução de 1930. “Durante vinte anos, as leis sociais de proteção ao trabalho, elaboradas no meu governo, lançaram os alicerces do seu programa de renovação econômica e política. Daqui por diante, cabe ao nosso partido assegurar a continuidade das nossas conquistas no tempo e consolidar os benefícios que devem sobreviver à transitoriedade das influências pessoais”, comentou.

No dia seguinte, Vargas recebeu, no Palácio do Catete, Goulart e uma delegação que foi agradecer-lhe pela mensagem. Assim que o presidente do PTB deixou o local, os jornalões começaram a atacá-lo, uma campanha que se estendeu por longo tempo, movida pelo que o jornal Última Hora, getulista, chamou de “sindicato da mentira”.

A bancada petebista no Congresso Nacional publicou uma moção de solidariedade a Goulart, afirmando que o partido nada mais fazia do que seguir a trajetória traçada desde a sua fundação, “qual seja a de apoio à política social e humana do nosso chefe, presidente Getúlio Vargas, a quem fomos buscar no seu retiro em Itu para concorrer às eleições de 1950, como candidato do partido e do povo brasileiro”. “Outra não tem sido a atuação do nosso companheiro João Goulart à frente do PTB, mantendo em toda a sua plenitude os postulados da vitoriosa campanha eleitoral que assegurou a volta do nosso chefe Getúlio Vargas à presidência da República”, disse o documento.

Em março de 1953, Goulart foi reconduzido à presidência do PTB, decisão que fez recrudescer a campanha do “sindicato da mentira”. A Comissão Executiva do partido, em reunião realizada em 23 de abril de 1953, apresentou ao presidente da sigla “integral e irrestrito apoio” e repudiou “a indigna e infame campanha desencadeada contra ele”, visando não “só a sua pessoa” como a “agremiação”. A bancada petebista no Congresso também se manifestou, encaminhando ao presidente Vargas um telegrama comunicando “irrestrito apoio” a Goulart e “seu vivo repúdio à indigna campanha desencadeada contra ele”.

Apoio às greves

Em entrevista à revista Flan, lançada por Samuel Wainer — o dono do Última Hora —, em maio de 1953, Goulart disse que o PTB era “inegavelmente um partido de esquerda, no exato sentido político do termo”. “Assim surgimos naquele informe movimento popular ‘queremista’ da primeira hora, continuamos assim na célebre campanha da ‘Constituinte com Getúlio’, atravessamos, ainda assim, a fase oposicionista até 1950 e assim continuamos hoje”, afirmou.

Segundo ele, a atuação dos representantes petebistas seguia perfeitamente o programa partidário. “Falam em peronada (alusão a um fantasioso ingresso no país do peronismo, denominação dada genericamente ao Movimento Nacional Justicialista criado e liderado a partir do pensamento de Juan Domingo Perón, já famoso pela sua popularidade como presidente da Argentina), em golpismo, em agitação. Nada mais ridículo e inconsistente do que isso. Os que atacam o PTB usando desses refrões não querem enxergar a grande realidade: somos um partido que defende pacificamente as reivindicações dos trabalhadores”, contestou.

Goulart disse ainda que os líderes petebistas deveriam estar onde se encontravam as reivindicações dos trabalhadores. “Não somos uma expressão política conservadora, mas um partido de renovação. Não tememos as greves, quando elas, justas, são inevitáveis. Ao contrário: defendemo-las. Ao invés de asfixiá-las”, enfatizou. “O mal está nisso: querem que o PTB se distancie das massas e tenha o seu programa como um documento bonito para não ser cumprido. Um rótulo trabalhista num conteúdo reacionário. Não: somos hoje uma força que conquistou o seu lugar na vida política nacional porque defende os seus princípios e não se distancia das massas, que são a sua substância eleitoral”, sintetizou.

A entrevista teve enorme repercussão e foi transcrita nos anais da Câmara dos Vereadores da cidade do Rio de Janeiro. Suas palavras foram comentadas e interpretadas de acordo com as conveniências de cada força política. A direita se valeu das afirmações para propagar a ideia de que Goulart era incitador de greves e defensor de um golpe para implantar a “república sindicalista”. Na verdade, a campanha do “sindicato da mentira” estava apenas começando: em junho de 1953, aos 34 anos de idade, Goulart assumiu o Ministério do Trabalho dizendo que pretendia realizar um programa “sob a inspiração das diretrizes que desde 1930 vem norteando a ação do plecaro presidente Getúlio Vargas”.

(PL)