Centenário de João Goulart: a fúria do capital
A posse de João Goulart como ministro do Trabalho ocorreu em 18 de junho de 1953. A cerimônia, realizada às 15 horas no Palácio do Catete, presenciada por autoridades civis e militares, jornalistas, representes sindicais e amigos de Goulart, foi saudada com espocar de fogos. “Quase não se podia andar no 8º andar do Ministério do Trabalho”, registrou o jornal Última Hora. “Ascendo ao posto inteiramente à vontade. Isso porque não tenho outros compromissos senão com o povo, no mais amplo sentido da expressão, e especialmente com o proletariado em cujo seio tenho o orgulho de contar com inúmeras amizades”, discursou o novo ministro do Trabalho.
Por Osvaldo Bertolino
Quando Goulart tomou posse, o Brasil passava por um processo tenso de transformações. O presidente Getúlio Vargas, eleito em 1950, se deparara com problemas complexos. A alta do custo de vida, que se acelerou ainda no governo do ex-presidente Eurico Gaspar Dutra, seu antecessor, agravou os conflitos sociais. A situação da balança de pagamentos se deteriorou rapidamente. O passivo foi coberto à custa de empréstimos contraídos no estrangeiro. Ao mesmo tempo, agravaram-se a falta de energia elétrica e os problemas com o transporte, afetando o desenvolvimento da economia.
O clima de “desassossego”, como disse o presidente, se manifestava no governo, reflexo da luta entre as correntes nacionalistas e entreguistas. A solução adotada por Vargas, de forte intervenção do Estado na economia, respondia à necessidade de “suprir as deficiências da iniciativa privada, ou acautelar os superiores interesses da nação, contra a ação predatória destas forças de rapina, que não conhecem a bandeira nacional nem cultuam outra religião que não seja a do lucro”, segundo mensagem enviada pelo presidente ao Congresso Nacional.
A atenção do governo estava concentrada nas medidas que asseguravam o desenvolvimento pela via da industrialização, apoiado no capital nacional e orientado para o mercado interno. A heterogeneidade, no entanto, às vezes empurrava o governo para a colaboração com o capital estrangeiro, mas o presidente reforçava o controle nacional sobre todas essas operações. Por esse meio, pretendia solucionar os problemas da falta de divisas, do desemprego e da soberania do país. Para atingir esses objetivos, o presidente apelou para a colaboração dos trabalhadores e dos empresários, sob a arbitragem do Estado.
Molde da Guerra Fria
O país que vagueava sem rumo começava a ter nova feição. Vargas atendeu a algumas reivindicações dos trabalhadores das camadas inferiores das cidades, angariando considerável popularidade. Em 1951, uma lei proibiu os bancos e pessoas particulares de cobrar juros anuais sobre créditos superiores a 12%. Em janeiro de 1952, o salário mínimo, sem aumento desde 1943, recebeu um reajuste considerável. Apesar dessas medidas, o impulso da onda grevista que surgia no país aumentou. Em 1951, 264 mil trabalhadores participaram de greves. Em 1952, esse número subiu para 411 mil e, em 1953, chegaria a 800 mil.
O Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) não dispunha de maioria no Congresso Nacional. Para ter governabilidade, o presidente formou uma ampla coalizão. Mas os partidos de direita, os jornalões e muitas organizações empresariais formaram uma aliança conspiradora e passaram a hostilizar Vargas. O apoio limitado à lógica da Guerra Fria e o estabelecimento do controle nacional sobre o petróleo com a criação da Petrobras provocaram irritação nos Estados Unidos que, em 1953, retiraram seus técnicos de uma comissão americano-brasileira de cooperação econômica criada por Dutra.
Quando Getúlio Vargas voltou à Presidência da República, o país já estava enquadrado no molde da Guerra Fria. Ele iniciou uma administração dúbia, cedendo aos setores golpistas das Forças Armadas, porta-vozes dos interesses militares norte-americanos, com o acordo militar Brasil-Estados Unidos, ao passo que amainava a repressão política. Com o passar do tempo, o governo também enfrentou o imperialismo, criando uma lei de remessa de lucros para obrigar as empresas estrangeiras a investirem no país. O clima golpista se instalou. O pavio começou a arder atrás de Vargas.
Trincheira dos trabalhadores
Goulart assumiu o Ministério do Trabalho no auge desse clima golpista. A União Democrática Nacional (UDN) — com suas faces conspiradores gráfica, fardada e política, segundo o historiador Nelson Werneck Sodré —, que se autointitulava ”o partido da eterna vigilância”, disse que sua posição em relação ao novo ministro do Trabalho seria de “expectativa vigilante” e que considerava a indicação de Vargas uma “gravíssima ameaça, um sério perigo para o regime”. Goulart, segundo a UDN, era “o homem que estava preparando o golpe” para implantar a “república sindicalista”, além de ser “inexperiente e desconhecido”.
A UDN surgiu da união de lideranças políticas estaduais da República Velha, pré-Revolução de 1930, no dia 7 de abril 1945. A data foi cuidadosamente escolhida para lembrar outro 7 de abril — o de 1831, quando D. Pedro I abdicou. O partido reuniu adversários dos tempos imperiais e da República Velha com a finalidade única de derrubar Getúlio Vargas. E Goulart, como o mais expressivo representante do seu legado, foi eleito o alvo principal. “Enquanto eu for ministro, o Ministério do Trabalho será a trincheira dos trabalhadores”, respondeu Goulart.
Falando numa cerimônia de posse de novos diretores no Sindicato dos Operários Navais, o ministro do Trabalho disse: “Preciso dos trabalhadores para levar a efeito uma obra de paz social, para reforçar a unidade operária e para, também, vencer os focos de reação. As portas do meu gabinete estão abertas a todos que representam, de fato, a massa trabalhadora.” Ele acabara de conduzir as negociações de uma greve dos trabalhadores da Marinha Mercante que em junho de 1953 paralisou por doze dias as atividades em praticamente toda a extensão do litoral brasileiro.
Alto capitalismo
Getúlio Vargas, falando a um grupo de marítimos que foi ao Palácio do Catete agradecê-lo por seu “espírito de justiça com que atendeu às reivindicações” da categoria, disse que Goulart era “um espírito sempre voltado para as lutas em defesa da justiça social”. “Tem ele uma sensibilidade à flor da pele para compreender e sentir como poucos as necessidades e os problemas dos trabalhadores”, afirmou. “Naquilo que ele vos disser estará me representando, podem confiar nele, como seu eu próprio fosse”, complementou.
Aquele episódio recrudesceu a campanha do “sindicato da mentira”, como caracterizou o jornal Última Hora, contra Goulart. “Não recuarei. Certa imprensa está me atacando justamente porque estou marchando ao lado dos trabalhadores. Mas não intimidarei e não recuarei no cumprimento do meu programa”, disse ele na solenidade de abertura do 1º Congresso Brasileiro da Previdência Social, que acusou os jornalões da oposição, “defensores do alto capitalismo”, de sonegação previdenciária.
A escalada golpista contra Goulart se acelerava e chegou a um editorial do jornal norte-americano The New York Times. “João Goulart, ministro do Trabalho de 37 anos de idade e afilhado do presidente Vargas, aspira organizar o trabalhismo brasileiro de forma parecida com a Confederação Geral do Trabalho, que é o principal instrumento do general Perón para manter seu domínio na Argentina”, disse o editorial.
(PL)