Deputados comunistas protestam em plenário contra a cassação dos mandatos (1948).

Cabra Marcado Para Morrer é um fantástico filme-documentário produzido e dirigido por Eduardo Coutinho, sobre a vida de João Pedro Teixeira, líder da Liga Camponesa de Sapé, na Paraíba, assassinado a mando dos latifundiários locais em 1962.

Por Altair Freitas*

A obra cinematográfica começou a ser produzida por Eduardo Coutinho em 1964; interrompida pelo golpe militar daquele ano, só foi retomada em 1981 e, finalmente, lançada em 1984, em plena efervescência da luta do povo brasileiro pelo fim da ditadura, expressa na histórica campanha pelas Diretas Já!, que galvanizou corações e mentes do Brasil naquele ano, resultando na eleição de Tancredo Neves, o candidato das oposições, no Colégio Eleitoral em janeiro de 1985. O filme, tal qual o líder camponês nele retratado, foram marcados para morrer.

Assassinado, João Pedro tornou-se lenda, eternizado pelo filme. O filme, também marcado para morrer em 1964, tornou-se obra-prima do cinema documental do Brasil. Ambos seguem vivos!

O Partido Comunista do Brasil, ao longo dos seus 99 anos, também foi “marcado para morrer”. Desde o seu nascimento, no glorioso congresso de fundação em 25 de Março de 1922, desenvolveu-se num país profundamente retrógrado, à época dominado pelo latifúndio assassino, em uma economia dominada pela monocultura de exportação e com incipiente industrialização comandada por uma burguesia trôpega.

O Partido Comunista teve sua primeira “morte” decretada pelo presidente Epitácio Pessoa, em junho daquele ano de 1922, ao decidir que a legenda comunista era ilegal. O Partido não morreu, seguiu se estruturando junto ao operariado, atuando e construindo o movimento sindical,  até viabilizar-se legalmente, criando o Bloco Operário, e elegendo Azevedo Lima para a Câmara dos Deputados em 1927.

Sob novo ataque do governo, desta vez do então presidente Washington Luiz, o Partido reconstruiu sua ação eleitoral e política criando o Bloco Operário Camponês com o qual disputou as eleições de 1928 no Rio de Janeiro, e elegeu Otávio Brandão e Minervino de Oliveira como “intendentes” (vereadores da época).  Em 1929, Minervino foi lançado candidato à presidência da República. Os resultados da eleição de 29, conexos ao início da Grande Depressão a partir da quebra da bolsa de Nova York naquele ano, levaram o Brasil ao colapso da economia cafeeira, resultando na Revolução de 1930, comandada por Getúlio Vargas, que não contou com o apoio do Partido.

O Partido, então PCB, seguiu lutando por uma vida legal, sempre negada pelos sucessivos governos que, de tempos em tempos, decretavam a sua “morte”. Na segunda metade dos anos 30, reflexo da insurreição armada contra o governo de Getúlio Vargas pela Aliança Nacional Libertadora liderada por Luís Carlos Prestes em 1935, com forte presença de militantes e quadros do Partido, Vargas e as forças de segurança do Estado deflagraram uma verdadeira campanha de cerco e aniquilamento da militância comunista. Foram prisões em massa e torturas indizíveis, processo prolongado com o Golpe do Estado Novo, comandado pelo próprio Getúlio em 1937, com fortes características fascistas. Esse processo prolongou-se até 1943.

Naqueles anos, a “morte” do Partido foi proclamada aos quatro ventos por diversas vezes pela repressão estatal. Entre 1941 e 1943, uma nova geração de militantes e quadros comunistas driblou a dura repressão, rearticulou bases e a ação política, culminando na histórica “Conferência da Mantiqueira”, que reestruturou a direção nacional, combateu a tendência liquidacionista, que propunha a extinção do Partido, e traçou uma nova linha política de apoio à entrada do Brasil na Guerra Antinazista. As sucessivas mortes anunciadas naqueles anos, resultaram, na prática, na reafirmação do papel revolucionário do Partido e na sua ação ativa e altiva em defesa do povo e da nação, sempre tendo o socialismo como projeto fundamental.

Os efeitos daquele processo de reposicionamento após a Conferência da Mantiqueira, combinados com a derrota histórica do nazi-fascismo na 2ª Guerra; a esmagadora vitória da União Soviética na Frente Leste; a grande mudança na política interna e externa do próprio governo de Getúlio Vargas, que passou a abrandar o Estado Novo a partir de 1943, conduzindo o Brasil para combater Itália em 1944/45 com a Força Expedicionária Brasileira, que contou com firme apoio do Partido para a sua criação, resultaram na grande virada democratizadora de seu governo no início de 1945. Vargas  decretou  anistia a todos os presos políticos, convocando eleições presidencial e constituinte, autorizando a livre organização partidária, o que propiciou a legalidade do partido, conduziram a um enorme florescimento do movimento comunista,  que passou a realizar grandes comícios em torno da liderança de Luís Carlos Prestes. A eleição de 1945 mostrou um Partido grande, influente entre o povo, elegendo a histórica e combativa bancada comunista composta por quatorze deputados e um senador, no caso, o próprio Prestes , bem como a expressiva votação à presidência da República, obtendo 10% dos votos, com a candidatura de Iedo Fiúza. A força eleitoral do Partido cresceu ainda mais nas eleições estaduais  de 1946.

Manchete de “O Globo” defendendo a cassação do registro do partido em 1947
 

Sob o governo do marechal Eurico Dutra, as forças conservadoras do país capitaneadas pelo Superior Tribunal Eleitoral, decretaram nova “morte” do Partido, com a cassação do registro legal em 1947; e dos mandatos comunistas em 1948. O Brasil foi um dos primeiros países do mundo a implantar a lógica da Guerra Fria, comandada pelos EUA contra a União Soviética, e as primeiras e principais vítimas da sua tradução para o Brasil foram os comunistas. Posto na ilegalidade, novamente perseguido duramente pelo governo reacionário de Dutra, que combateu implacavelmente o movimento sindical e popular, à época fortemente dirigidos pelos comunistas, o Partido, longe de morrer, seguiu na sua luta, sob as novas condições impostas pela reação.

Caio Prado Junior recolhendo assinaturas contra a cassação do registro do partido pelo TSE em 1947

Seguiu-se um longo processo de clandestinidade que só seria encerrado com a redemocratização do país pós fim da ditadura militar, em 1985, já nos marcos da Nova República. Mas nesse período de quatro décadas, a “morte” do Partido foi novamente proclamada diversas vezes. A primeira, na postura fortemente reformista assumida pela maioria da direção partidária, resultante da grande cisão do movimento comunista  a partir do XX Congresso do PCUS, quando Nikita Krushov anunciou os “Crimes de Stalin”, resultando numa intensa reorientação da política interna e externa da URSS, a defesa da “Convivência Pacífica” com o capitalismo/imperialismo liderado pelos EUA,  a adesão na prática ao Reformismo como  possibilidade de se chegar ao Socialismo pelas vias não revolucionárias.

No contexto da época, essa movimentação causou enorme impacto no Brasil e no Partido. A adesão à nova linha política capitaneada pelo PCUS, conduziu à reorganização do Partido Comunista do Brasil, agora sob a sigla PCdoB, em janeiro de 1962, processo levado a cabo por dirigentes históricos como João Amazonas, Maurício Grabois, Diógenes Arruda, Elza Monerat, Pedro Pomar, dentre outros (as) militantes e quadros que se puseram a reconstruir o partido com essência revolucionária.

Comemoração do aniversário e reorganização do partido em 1962

A “morte” pelo reformismo assumido, atingiu finalmente o PCB, Partido Comunista Brasileiro, como passou a se intitular a partir de 1961, quando da sua extinção em 1992 com a criação do PPS (Partido Popular Socialista, atual Cidadania), sob os ventos do colapso do Leste Europeu e da União Soviética, nos tormentosos anos finais da década de 80 e início da década de 90. Mas essa “morte” não atingiu o Partido Comunista do Brasil, o PCdoB. Muito ao contrário!

Marcado para morrer pela ditadura militar, que exterminou outras forças organizadas que ousaram enfrenta-la, inclusive travando a luta armada, o PCdoB sobreviveu e se manteve ativo, mesmo tendo sido o partido com maior número de militantes mortos pela repressão dos governos militares, em especial no período da luta guerrilheira do Araguaia (1972-74) e nos anos imediatamente posteriores, até o final dos anos 70. Para a ditadura, matar,  literalmente o PCdoB, tornou-se questão de honra. Nas selvas e nas cidades.

Além dos assassinatos durante o período da Guerrilha, quando o exército matou 76 militantes comunistas, muitos (as) militantes tombaram pela sanha assassina da ditadura, nas cidades, em especial na “Chacina da Lapa”, em 1976, quando mais uma vez a “morte” do partido foi proclamada. E mais uma vez o Partido não apenas não morreu, como se fortaleceu progressivamente  no bojo da luta democrática, aliado a outras forças políticas, participando de amplas frentes de resistência e enfrentamento à ditadura, até a redemocratização iniciada em 1985.

Pedro Pomar assassinado pela ditadura militar no massacre da Lapa em 1976

Cabra Marcado Para Morrer, o PCdoB se defronta novamente com uma aguerrida luta política pela sua manutenção institucional, desta vez enfrentando nãos as armas de fogo de regimes tirânicos, os cárceres, torturas, exílios. A classe dominante brasileira, maneja outros instrumentos de cerceamento da liberdade político-partidária, através de uma legislação eleitoral restritiva que conjuga o fim das coligações entre partidos e o estabelecimento de uma crescente cláusula de barreira. A alegação é barrar o suposto “grande número de partidos” existentes legalmente no Brasil, dentre os quais, o PCdoB.

Na prática, a classe dominante e seus partidos, querem constranger o país e o povo a se submeterem a uma oligarquia partidária, ao estilo estadunidense, com seus dois grandes partidos se revezando no poder há  150 anos, e demais países que adotaram legislações profundamente restritivas, como, por exemplo, no Chile, Japão, Inglaterra, dentre outros.  Essa legislação eleitoral, evidentemente “mata” partidos que não têm inserção junto aos trabalhadores e trabalhadoras, nem presença os movimentos sociais, os partidos cartoriais. Mas, creiam, o alvo da classe dominante não é partidos assim, já que ela deles se utilizam conforme suas conveniências. O alvo fundamental dessa ação é a extinção eleitoral do PCdoB. Não se trata de nenhuma arrogância  expressar tal pensamento, mas uma mera constatação: a classe dominante brasileira e seus testas-de-ferro na política, precisam eliminar quaisquer forças políticas que possam representar riscos, no médio e longo prazos, para a sua manutenção como classe dominante. Com sucessivas crises econômicas e políticas cada vez mais agudas, existir no Brasil um partido com clara orientação programática de combate ao capitalismo com assento no congresso, bancadas parlamentares, acesso aos fundos partidário e eleitoral, tempo de rádio e televisão, é um risco que e os verdadeiros detentores do poder no país não querem correr.

O PCdoB é um partido que tem clara identidade programática anticapitalista, logo, socialista. Essa identidade programática é expressa na sua orientação teórica – marxista-leninista – consignada no seu estatuto, na utilização do nome “Comunista”, na sua bandeira vermelha, no seu símbolo, a Foice e o Martelo, expressão da aliança entre trabalhadores (as) da cidade e do campo. Para alguns, nome e simbologia estão ultrapassados, logo, seria fundamental apagá-las. Pressionados pelos revezes eleitorais que o Partido vivencia  nas últimas eleições, realizadas em um quadro profundamente perturbador de avanço da extrema direita no Brasil e em diversos outros países, alguns desenvolvem o raciocínio de que o problema é a existência do Partido Comunista. No âmbito de uma profunda crise estrutural do capitalismo, crise que colheu em cheio forças democráticas e progressistas governando o Brasil, criando um caldo de cultura fortemente reacionário, o que atingiu o PCdoB, mas também outros partidos que se apresentam como sendo “de esquerda”, combinando tudo isso com a atual legislação eleitoral restritiva, alguns enxergam no horizonte a “morte” do Partido como solução, principalmente para seus projetos individuais. Afinal, diante da brutal pressão ideológica, segundo alguns, seria mais fácil eleger-se por alguma legenda mais palatável, mais aceitável pela classe dominante.

“Cabra Marcado Para Morrer” pelo capitalismo a quem se opõe, o Partido trava essa nova luta. Mais uma luta, mais uma etapa de reafirmação do seu papel como força política revolucionária, estratégica, pela reafirmação do seu caráter histórico atemporal enquanto durar o capitalismo, enquanto o Brasil seguir sufocado pelo imperialismo e pela brutal estrutura econômica-social de produção de enorme riqueza concentrada nas mãos de poucos. Mais uma vez, sua “morte” é cantada, anunciada, desejada. É parte da luta de classes. É parte do confronto aberto entre a as forças do atraso e do avanço. Assim como faz parte dessa luta, a renovação do próprio partido, a composição de saídas buscando amplitude, preservando a sua unidade, identidade e autonomia.

Nesse novo embate, indivíduos, personalidades vacilantes, preocupadas com seus projetos pessoais, tendem a deixar o Partido. Outras entrarão para fortalecer a nossa luta. Nenhuma novidade nisso também. A as soluções encontradas pelo Partido para se manter ativo e altivo no passado, sempre foram saídas coletivas, debatidas. Não será diferente agora. Será pela força da sabedoria coletiva que encontraremos as soluções para as limitações institucionais que verificamos auto-criticamente, à luz da análise histórica, à luz das condicionantes da conjuntura política do país nos últimos anos.

Uma força política revolucionária só será extinta quando não houver mais necessidade revolução! Porque não se matam ideias, especialmente quando elas estão assentadas firmemente nas necessidades de transformar a realidade. O Partido Comunista é a expressão material e política da ideia transformadora. O Brasil precisa ser transformado. O Brasil precisa do Partido Comunista do Brasil. E, afinal de contas, pregar a sua morte não significa que ele morrerá. Não morreu antes, não morrerá agora!

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