Bolsonaro destilou ódio e rancor na sua live na véspera de Natal

Em sua live natalina, Bolsonaro fez questão de usar todo seu arsenal ideológico, pressionado, como sempre, pela bolha política que age estridentemente nas redes sociais.

Sem nenhum pudor, para deleite da turba bolsonarista, diante da possibilidade, sempre aventada por alguns, frente ao descalabro de seu (des) governo, de encurtamento do atual mandato presidencial, afirmou: “tudo tem limite. Não tenho sangue de barata, lutei para chegar aqui, me livrei da morte naquela facada (…) e jamais vou aceitar, se aparecer um dia algum movimento conspiratório. Me tirar daqui de qualquer jeito, sem motivo, não vai mesmo. Ou para escravizar o nosso povo”.

Até aí a declaração já seria grave, mas o que acrescentou, na sequência, soou como uma clara ameaça de recorrer à milícia para tal desiderato. Disse ele: “por decreto, ajudamos muita gente a comprar armas e munições”, clamorosa afronta às Forças Armadas, instituição dotada do papel constitucional de defender o cumprimento da lei, em especial, da lei maior, a Constituição brasileira.

Não por acaso, na mesma live, Bolsonaro voltou a defender a pauta armamentista. Citou a renovação das mesas do Congresso em fevereiro e indicou a possibilidade de enviar um projeto de lei para revogar o Estatuto do Desarmamento. “Para nós, do Executivo, também temos nossas preferências, a gente não entra de peito aberto na campanha da Câmara e do Senado para respeitar a autonomia deles, mas, no fundo, todo mundo torce”, afirmou, deixando claro sua inclinação, aliás, apoio já explícito e público, ao deputado Arthur Lira, na sucessão do presidente Rodrigo Maia.

Ora, foi e é precisamente a Câmara dos Deputados presidida por Maia, nesses dois anos de governo, que resistiu à sanha golpista e armamentista do presidente contra a democracia, assim como foram os deputados federais que rejeitaram algumas excrescências nos ataques aos direitos do povo e asseguraram importantes conquistas, como o auxílio emergencial de R$ 600, quando Guedes e seu chefe queriam apenas R$ 200; as linhas de crédito ao setor produtivo durante a pandemia, embora sabotadas deliberadamente pela equipe econômica e os bancos; o apoio ao setor cultural (Lei Aldir Blanc); a mitigação dos danos do programa de preservação dos empregos durante a crise sanitária, etc.

A eleição de Lira, para Bolsonaro, entre outros objetivos, parece ter uma meta muito clara: “De acordo com a mesa, a gente pode botar, em votação, um projeto de lei que trata de revogar o Estatuto do Desarmamento”. E justificou, novamente, seu ímpeto armamentista: “os vagabundos” já estão armados. “Eu quero que o povo brasileiro todo se arme porque a vagabundagem já está armada”, declarou.

 Ou, ainda, para defender uma suposta “liberdade” perante, por exemplo, as medidas de restrição adotadas por governadores e prefeitos que se tornaram indispensáveis frente à política negacionista pregada e praticada por Bolsonaro ao longo da pandemia.Bolsonaro, assim, transborda, mais uma vez, todo seu caráter miliciano e sua aversão à instituição a que um dia pertenceu, sendo praticamente expulso por insubordinação militar.

Se o recurso bolsonarista é à milícia, que age nos subterrâneos da sociedade e ao arrepio da lei, e não às forças militares, que tem o papel constitucional de defendê-la, fica muito compreensível sua posição de fora da lei e seu visível incômodo de agir dentro da institucionalidade legal que rege o país.

Estamos, portanto, diante de um presidente da República avesso à Constituição que jurou cumprir, quando deveria ser o primeiro a respeitar. “Lei demais atrapalha”, protestou ele na mesma live, quando também defendeu o ministro Kássio Nunes Marques, indicado por ele ao STF, dos ataques que sofreu por ter tomado, monocraticamente, uma decisão que, na prática, anulou os efeitos da Lei da Ficha Limpa, beneficiando políticos corruptos já condenados que disputaram as eleições municipais de 2020.

Além do mais, essa questão do eventual impedimento, prevista na atual Constituição da República – e não em qualquer manual miliciano, com duas ocorrências após a redemocratização do país, no momento, não está colocada na agenda política do parlamento e nem é pauta da maioria das forças políticas que tem a missão de eleger um presidente da Câmara dos Deputados alinhado com o projeto de preservação da independência do legislativo.

Nesse cenário, a live presidencial, que deveria exaltar o clima de fraternidade e de paz intrínsecos ao Natal, tão caros ao povo brasileiro, especialmente nesse momento em que a pandemia recrudesce e, com ela, a crise econômica e social, serviu para Bolsonaro destilar, reiteradamente, seu ódio contra os adversários políticos, manter sua conduta negacionista e anticientífica ao defender de novo a cloroquina, promover comentários homofóbicos e gordofóbicos, atacar a imprensa, o PT, o MST, as ONGs, além da Venezuela e de Cuba, para não perder o hábito.

 Se alguém esperava um outro presidente por conta do Natal, decepcionou-se. Bolsonaro foi ele próprio. Depois de ter presenteado quase 60 milhões de brasileiros com o fim do auxílio emergencial de R$ 300 – e que não sabem ainda como farão para colocar o alimento de seus filhos na mesa a partir de janeiro, depois de subtraídos à metade pelo próprio governo, optou por uma mensagem de ódio e de incitamento à milícia chefiada por ele.
(PL)